Quando chegou o ano 2000, um velho amigo e parceiro de desenvolvimento da área de superfície matemática, me disse: “A partir de agora tudo será diferente.”
Uma frase meio redundante, mas que se mostrou verdadeira.
Neste momento estávamos já começando a produzir automóveis com a primeira leva de aprendizado da nova tecnologia digital.
Estávamos mergulhados no projeto do Fox, que foi o primeiro carro brasileiro da marca Volkswagen realizado completamente com a tecnologia digital.
Isto significa que tínhamos o carro completo, até os últimos detalhes, dentro do computador.
Milhões de informações geométricas, num espaço virtual que podia ser acessado ao mesmo tempo por todas áreas autorizadas da companhia.
Com estas novas ferramentas, com novos materiais e novos processos industriais, que também foram se adaptando à nova tecnologia, tínhamos o controle completo do projeto.
Nesta nova organização o Design ganhou uma imensa responsabilidade, já que todos ficaram dependentes da liberação das superfícies matemáticas por nÓs geradas para iniciar e desenvolver os seus trabalhos.
Por outro lado, mais do que nunca era urgente rever a imagem das grandes marcar, se adaptar à nova realidade de um mundo extremamente volúvel e sedento de novidades.
Havia grandes ameaças vindo do Oriente, nos Estados Unidos uma apatia dominada pela falência de criatividade, tosada pelas reduções de custo e na Europa, uma competição ferrenha para ver que era o melhor : o Norte contra o Sul da Alemanha.
Claro, existia a escola francesa e Italiana, porém a francesa procurando sua linguagem (talvez até hoje) e os Italianos concentrados nas marcas esportivas de luxo e design exclusivo.
Embora a grande maioria das marcas tenha um desenvolvimento constante de novos modelos e linguagem visual da marca (branding), com a nova tecnologia invadindo todas as áreas do processo produtivo veio a demanda de uma grande mudança, um marco na história do automóvel.
2000
Volkswagen Passat
O Passat 2000 era um carro marcante e com um caráter próprio, o que era quase uma marca da Volkswagen.
Por exemplo, este Design fora do padrão vigente (stream) era muito apreciado nos EUA, onde os produtos da marca eram “simpáticos”, simples e confiáveis.
Muito do que foi por aqui também, com a diferença que nós sempre desenhamos os nossos Volkswagens aqui no Brasil (Família Gol e Fox, por exemplo).
As superfícies deste Passat continham um tentativa de escultura com mais curvaturas, cantos arredondados e elementos “flush”, ou seja, faceados entre si.
Na verdade, uma fase de transição entre a linguagem criada manualmente versus a superfície criada pelos “alisadores de superfície” ou modeladores virtuais, que passaram a ter uma importância quase que maior do que o próprio designer+modelador, que criavam o modelo físico esculpido em massa clay (plastilina).
2000
Audi RS4
A Audi tinha também uma linguagem de transição entre a superfície curva, mas não tanto, e linhas mais econômicas e muito bem balanceadas.
O grande segredo da qualidade visual do carro está na interpretação de suas formas, as passagens entre as superfícies, na maneira como e para onde as linhas fluem, e como as peças individuais lidam com suas vizinhas.
Na Audi já era visível está pureza de conceito da superfície e o uso intensivo de elementos geométricos na sua construção.
Construindo o corpo de uma máquina, porém ainda muito civilizada e tímida.
2000
Audi Stepenwolf concept
Porém, dentro da área de Design a cabeça era outra.
No Stepenwolf, os designers já mostram superfícies muito mais planas, que embora dinâmicas são ditadas por linhas geométricas puras e definidas (Bauhaus) além de truques visuais, como a grande área em plástico preto texturizado, dividindo a carroceria em dois e deixando a parte “body color” ou pintada esguia e rápida.
Tetos pintados já estavam na mira dos designers, mas somente duas décadas depois é que se popularizaram.
Na verdade, você pode esculpir uma Pietà à mão, mas reproduzir uma Pietà com um programa de computador, usando elementos geométricos, é uma tarefa quase impossível.
Então, estávamos aprendendo a lidar com as novas ferramentas e, ao mesmo tempo, inaugurando uma nova linguagem visual dos automóveis.
2000
Mercedes-Benz – CL55 – AMG
Já a Mercedes, como sempre tinha conseguido chegar a uma ótima solução com sua linguagem limpa, porém exuberante em proporções e desempenho.
Reparem que nesta época a Mercedes tinha uma grade pequena e 4 faróis duplos e circulares, com um complicadíssimo recorte no capô, que envolvia os quatro faróis.
A coluna C caía exatamente sobre a roda traseira, e um perfil, dinâmico e simples dos vidros laterais, bastante estreitos em comparação com a área de chapa da carroceria.
Os automóveis começaram a receber sensores e muitas funções mecânicas estavam se transformando em eletrônicas ou eletromecânicas.
2001
Ford Mustang 2
Do outro lado do oceano as coisas iam de mal a pior.
Nós, designers baseados na Alemanha, não conseguíamos compreender como ícones como o Mustang podiam chegar a este ponto.
Sem identidade visual, com superfícies mecânicas e sem “feeling”, ou seja, sem refinamento, sem “dinâmica e com péssimas proporções, quando comparado aos primeiros Mustangs.
2002
Ford Focus
Na Europa, se viam melhores resultados para a Ford.
Os ingleses e alemães foram capazes de criar sua própria identidade, bem marcante e equilibrada.
As linhas mais nítidas e precisas e elementos bem dinâmicos e equilibrados posicionaram o Design da Ford relativamente bem no mercado europeu.
Mesmo assim pôde-se sentir a falta de refinamento em alguns detalhes e passagens de superfície, causadas justamente pela incapacidade de dominar completamente as novas ferramentas eletrônicas, como os programas dedicados ao desenvolvimento de superfícies.
2000
Chevrolet Suburban
Não podemos deixar de mencionar o início da grande onda das SUVs.
Enquanto os designers europeus sonhavam com os SUV (Sport Utility Vehicles), nos States eles já eram realidade.
Posição bem mais alta do solo, espaço para toda família com bagagens, formato imponente e às vezes até brutal.
Normalmente estes veículos tinham design bastante funcional.
Devido à necessidades específicas de pessoas que moram longe da cidade, frequentam lugares remotos, com estradas nem sempre pavimentadas, este era o carro ideal.
Portanto, nada de fricotes, mas formas que mostrem força, áreas protegidas (parte inferior em plástico preto, grande rodas e pneus, muitas vezes uso misto, com muita borracha para melhor “grip” ou seja, aderência.
Notem que a linha de abertura das portas está acima do centro da roda, o que mostra um ótimo vão livre, preferivelmente com tração nas quatro rodas.
Manequim sentado bem vertical e muito espaço ao redor dele, passando aquela sensação de conforto e segurança.
Quem soube escutar os designers que insistiram nesta composição (SUV) se saiu bem, pois ele se tornou o body style mais vendido dos últimos anos.
A SUV saiu da roça para as grandes cidades e até para os grande condomínios de luxo.
Ela fundiu a necessidade das grandes famílias, que tinham uma van, body style considerado “careta”, com os aventureiros, viajantes e até os que gostam de se impor no trânsito com estas enormes barcas.
Fazendo um aparte, este body style infectou todas as grandes marcas, que hoje oferecem várias versões e tamanhos de SUVs e pseudo-SUVs.
Além disso, ela se tornou a única opção de variação para grandes marcas esportivas como a Lanborghini, Porsche e, dizem as más língua, até a Ferrari.
2002
Bentley Continental GT
Neste ano a Bentley apresentou o Continental GT, que foi desenhado por um brasileiro, o Raul Pires.
Esta história já é conhecida, mas o Raul foi um ex-estagiário que eu indiquei para o renascimento da marca Škoda.
Ele não só foi o designer de exterior da família Fabia, como mais tarde ganhou a competição para o modelo da Bentley e se tornou o chefe de Exterior da marca.
Embora ele seja mais novo do que eu, também pegou esta transformação do análogo para o virtual e se tornou um mestre em desenvolver superfícies belíssimas, dignas de serem chamadas de esculturas ambulantes.
O Continental GT veio e é considerado por algumas revistas especializadas muito respeitadas um dos automóveis mais bonitos jamais produzidos.
Pois no caso do GT foi um “pingue-pongue” entre o modelo esculpido junto com os modeladores físicos e através dos loopings de correções feitos via programa virtual.
Os novíssimos meios de criação virtual são espetaculares, mas nada..valem se o “piloto” do programa for “braço duro”.
Outra coisa que eu considero importante foi que o estúdio de Design da Bentley era em Crewe, uma cidade no meio do nada na Inglaterra.
Houve um convite para um dos designers de ponta do grupo da VW para ser o designer-chefe da Bentley.
Este designer (não vou citar o nome) sugeriu que só aceitaria o cargo se o Design fosse transferidos para Londres, onde, segundo ele, estavam as tendências da modo, este tipo de conversa..
O Dr. Piëch não gostou e o tal designer foi dispensado do seu trabalho no grupo.
Nesta, o designer-chefe da época, chefe do Raul, era um Inglês incorporado e estava pronto para dar o próximo passo no grupo.
Foi indicado e aceito como designer-chefe da marca Bentley.
A primeira coisa que ele fez foi convidar o Raul, que era na época a grande mente criadora da Škoda.
E lá foi ele, transferir toda tralha para o interior da Inglaterra e desenhar verdadeiros “puros-sangues”.
2000
Cadillac Imaj concept
Mas parece que nem tudo está perdido nos States.
Simon Cox foi um designer Inglês, formado no Royal College de Londres, que foi convidado a tocar alguns projetos avançados na Cadillac.
Designer polêmico, que andava de tênis, camiseta e calça jeans rasgada (um pecado mortal em companhias como a GM), que mostrou um caminho muito bom de como poderia ser um Cadillac no futuro.
A marca que possuiu os maiores ícones de luxo do passado estava passando por uma crise de perda de personalidade.
Cox apontou a direção, mas imagino que na época a pressão dos financistas e burocráticos impediram que seus sonhos se tornassem realidade.
2002
Cadillac Cien
É outro carro conceito do Simon Cox na mesma linha do Imag.
A partir destes dois conceitos a Cadillac conseguiu recuperar um pouco de seu orgulho, nada comparado com o passado brilhante da marca, mas hoje a marca Cadillac tem carros que me agradam bastante do ponto de vista de design.
2005
Citroën C Sport Lounge concept
Muitas vezes é melhor olhar para os carros-conceitos do que para os carros de produção.
Primeiro, porque carros de produção são limitados por uma série de fatores e em um dado momento podem não representar a direção de uma marca.
O Sport Lounge foi um carro importante para demonstrar que a criatividade e personalidade da marca Citroën não estava totalmente perdida.
Deste carro vemos elementos muito interessantes como a linha inferior dos vidros (belt line?) que sai da linha do farol e corre precisa e determinada até à coluna C (neste caso), onde dá uma caída brusca para novamente voltar no alinhamento, formando o recorte do vidro traseiro.
Este “feature” está sendo usado nos dias de hoje por algumas marcas.
As proporções dos vidros versus o corpo do carro é quase que exagerada (1/4) já mostrando a tendência da diminuição da área envidraçada.
A jogada do friso que sai do farol e forma a segunda coluna A, em uma segunda cor (alumínio polido) é um toque de gênio e uma quebra de paradigma.
A superfície é “bombada”, mas na medida para sofrer cortes geométricos onde são criados “nichos” para os frisos, faróis e entradas de ar.
A proporção entre rodas e pneus x corpo é um sonho, pelo menos para um veículo com este conceito de “Lounge”.
A ideia de um interior tipo “lounge” cai como uma luva para os futuros carro autônomos e é a principal aplicação para um transporte deste tipo.
Sou um grande admirador da escola francesa de Design, muito criativos e com personalidade muito forte.
2005
Renault Vel Satis
Patrick Le Quement, que foi um ex líder de estúdio avançado da VW, tentou imprimir sua assinatura nos veículos da marca Renault, sem grande sucesso.
Ele propunha uma linguagem quase que arquitetônica, com linhas fluidas e superfícies planas.
Sua escultura suprimia os arcos de roda, e superfícies lapidadas eram a tônica.
Quando se compara o carro-conceito com o carro que no fim saiu na produção, dá para imaginar os tipos de problema que ele teve que enfrentar dentro da marca.
A permanência dele foi relativamente curta, mas bastante polêmica.
Eu gostava do carro-conceito, que à primeira vista parecia estranho, mas por isso mesmo interessante.
A proporção era muito boa, com longa distancia entre eixos, para-brisa inclinadíssimo, e uma coluna C extremamente radical.
Os faróis minúsculos e a grade esculpida no corpo do carro era enorme.
O que ele tentou era se livrar dos clichês automobilísticos e partiu para inventar um estilo novo, sem traços de tradição, baseado em construções arquitetônicas,
O carro de série foi destruindo o conceito em todos os sentidos.
A proporção não ficou lá estas coisas, o desenho lateral se tornou uma monotonia só, a coluna C virou um não sei o quê, enfim no fim não havia mais nenhum vestígio da passagem do Patrick pela Renault.Renault Vel Satis concept car
2005
Mercedes Benz CLS 500
Eu sou gamado por este carro, e se um dia morasse lá por perto eu compraria um destes com certeza, só para para ficar queimando gasolina Super Plus pelas estradinhas secundárias que cortam toda Europa do Norte.
Alguns engraçadinhos chamam este sedã de “estilo banana”, o que eu acho de muito mau gosto.
Na verdade, a Mercedes com este carro enfiou o pé na jaca, e partiu para proporções estarrecedoras, dinâmica e qualidade de linhas e superfícies de muito bom gosto.
Olhe a proporção do vidro versus corpo e como a luz se comporta na parte superior do carro.
A cabine é bem recuada e a coluna C superdinâmica, elegante e forte.
“Tornado line” é como eu chamo está linha que sai do arco da caixa de rodas e corre toda extensão do carro até à lanterna traseira.
Graças à “seção”, o desenho deste detalhe que provoca uma sombra bem marcada de baixo da linha em si, que é formada por um raio bem pequeno. (2 mm ou 3 mm de raio ).
Dizemos que a linha é precisa por causa deste efeito e visualmente realmente o é.
Enfim, este é um carro que podemos realmente chamar de “NAVE”.
Eu acho que subestimei esta série: vou precisar de mais capítulos até chegar ao dias de hoje.
No próximo capítulo vamos ver o que aconteceu no design de automóveis de 2005 a 2010.
Até à próxima!
LV