Albert Camus (1913-1960), francês que foi Prêmio Nobel de Literatura, esteve no Brasil na década 1950 e suas impressões de viagem fizeram parte de seu livro “Camus, o Viajante”. O francês esteve em Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Apesar de, na época, o país ainda estar engatinhando em termos de trânsito, automóveis e motoristas (sequer tínhamos uma indústria automobilística), ele relata suas impressões sobre nossas ruas: “Os motoristas brasileiros ou são alegres loucos ou frios sádicos. A confusão e a anarquia deste trânsito só são compensadas por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar”. Dá para imaginar o tamanho do seu espanto se tivesse oportunidade de repetir a visita em tempos mais recentes.
Camus de certa forma profetizava que o Brasil viria a conquistar o desonroso título de país incluído entre os campeões mundiais de acidentes e mortes no trânsito. Que nem código de trânsito, projeto da ONU para redução de mortos na década, Lei Seca ou campanhas de entidades públicas ou civis atingiram seu propósito, de aplacar essa violência rodoviária.
O escritor francês nem poderia imaginar que o trânsito presenciado por ele não representava a mais pálida imagem do que viriam a se transformar nossas ruas e rodovias.
Camus acertou na mosca ao comentar que o objetivo do motorista brasileiro é “chegar primeiro, custe o que custar”. Exatamente a mesma conclusão a que chegou o antropólogo Roberto da Matta mais de meio século depois. Ele tem uma explicação para o complicado comportamento do brasileiro ao volante em seu livro “Fé em Deus e Pé na Tábua”, da Editora Rocco. Diz que nossos motoristas abominam a igualdade no trânsito e que não suportam se comportar como iguais nos espaços públicos. “Esse complexo de superioridade — diz Da Matta — tem raízes na própria História do Brasil”. E afirma que nossos motoristas “dirigem no melhor estilo Carlota Joaquina”, alusão ao protocolo real que obrigava, na época do Império, que todos parassem para reverenciar a corte quando esta passava pelas ruas. Querem hierarquizar as ruas e lamentam que “não dá para instalar sinalização semafórica especial para quem é rico”. Querem “entrar na frente e tentar encontrar espaços onde não existem” e que obedecer a lei é sintoma de inferioridade. Segundo Da Matta, nosso terrível comportamento nas ruas é fruto de uma sociedade que ainda não aprendeu a ser igualitária e a se libertar de seus traços aristocráticos.
O antropólogo diz que o brasileiro normal dirige, em geral, com estilo agressivo. Temos impaciência em ficar ao lado do carro daquele sujeito que, para a gente, é um atrapalhador porque dirige devagar demais. Enquanto isso, ele olha para você e pensa “Aquele cara é um débil mental porque está querendo correr”.
No nosso trânsito, vale a teoria de que são todos iguais perante a lei, mas “eu sou mais igual que os outros….” e as ruas viram palco de disputas entre todos. Ônibus fecha automóvel, taxista é mais importante que particular, motoqueiro despreza o ciclista e este o pedestre…
Motorista entra na vaga de frente antes do outro que vinha de ré. Não dá passagem. É “ishperto” e foge do congestionamento pelo acostamento. ”Costura” os demais ziguezagueando entre faixas. É egoísta ao volante: pragueja contra o trânsito mas para em fila tripla pois tem que deixar seu filho e-xa-ta-men-te defronte ao portão da escola. Reclama contra o governo que “não faz nada para melhorar o trânsito” mas xinga o policial que o adverte por estar bloqueando o cruzamento.
O motorista não vai respeitar o pedestre na faixa enquanto se julgar mais importante que ele. Não teremos paz no trânsito enquanto cada motorista se julgar um ser superior, desrespeitar as leis e dirigir no melhor estilo “Carlota Joaquina”.
BF
A coluna “Opinião de Boris Feldman” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
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