Foi no tempo da Autolatina, a união Ford e VW, e quando eu trabalhava na Cofap, que conheci alguns dos mais experientes avaliadores do desempenho de veículos, principalmente da suspensão. Da mesma plataforma saíam dois carros, dois modelos, cada um com características do ëmblema-logotipo da marca que ostentava; o chamado de DNA da marca.
Era um trabalho simultâneo de calibração dos componentes da suspensão, mas com quesitos distintos conforme o objetivo do modelo. Os fornecedores se desdobravam para atender as diferenças, às vezes sutis. Quando possível, o ideal era um só ajuste para as duas marcas.
E assim lá fomos nós atender um teste conjunto num protótipo “Frankenstein”; chassis de uma, motor de outra e nova suspensão em relação ao modelo anterior. O local escolhido foi uma remota fazenda para avaliar condições normais de uso urbano e rodoviário.
Como se tratava de um protótipo, o veículo foi levado até a sede da fazenda em caminhão-baú. Outra razão para ser transportadofoi evitar qualquer impacto e desconfiguração do alinhamento de rodas lacrado na fábrica e fruto de cinemática em computadores.
O trabalho seria o de refino de amortecedores, pois pneus, molas e buchas já estavam definidos e as primeiras calibrações já haviam sido testadas em simulações. O objetivo desse refino era uma configuração única para as duas marcas.
Os protótipos de amortecedores eram preparados ali mesmo, num furgão-labotatório, montados no carro e dois avaliadores saiam para um percurso predefinido e voltavam com as impressões e percepções, se fosse o caso pedindo alterações, e novos amortecedores eram preparados para repetição do processo.
Um dos avaliadores não parecia satisfeito depois de poucas idas e vindas, mostrava-se descontente com o comportamento do trem dianteiro, aquele que viera lacrado.
Como era especialista no tema, não se fez de rogado e resolveu modificar o que os computadores haviam elegido como adequado. Foi aí que assisti algo improvável:chamou o capataz da fazenda e pediu um barbante.
Em seguiida, com algumas ferramentas comuns, ele mesmo alterou ângulos de posicionamento das rodas apenas com a ajuda do barbante nas medições.
Novas idas e vindas no percurso, mais alguns ajustes com o barbante, e então, satisfeito, partiu para acerto dos amortecedores.
O que ele buscou, e conseguiu, foi a melhor reação do conjunto para distribuir as forças impostas à suspensão e direção do veículo de forma que os demais componentes também trabalhassem mais adequadamente.
O carro voltou de caminhão para a fábrica e lá o alinhamento foi colocado na simulação e se mostrou mais adequado também para os testes de durabilidade.
Questão de precisão e durabilidade
As rodas não ficam perfeitamente verticais ao solo nem paralelas ao eixo longitudinal do veículo.
Os ângulos em relação a esses planos, com o veículo parado, visam buscar perpendicularidade e paralelismo quando do veículo em movimento.
Recebe os nomes de geometria do trem dianteiro ou geometria da suspensão ou, ainda, geometria de direção; também confundida com alinhamento de direção — o que se alinham são as rodas.
A geometria de direção depende do ângulo que o braço chamado Pitman integrado à manga de eixo forma com ela e que recebe movimento da barra de direção, dependendo de fatores como distância entre eixos e as bitolas dianteira e traseira.
A geometria de direção é que determina o quando a roda interna à curva esterça mais do que a externa, necessário devido aos raios diferentes descritos por cada uma. Não pode ser alterada por operação de regulagem.
Já o alinhamento de rodas é relativo ao retângulo imaginário no qual o veículo se insere e os ângulos que as rodas formam em relação a esse retângulo, e também ao solo.
Por sua vez, a geometria dos componentes do conjunto dianteiro, aquele responsável não só pela suspensão, mas também pelo direcionamento do veículo, é um grupo de grandezas que define a posição das rodas em relação à carroceria e ao solo.
O objetivo é desempenho e evitar arrasto dos pneus, com este a perda de aderência e controle direcional, além de maior desgaste. Busca ainda esforço suave e progressivo em curvas e facilitar o realinhamento após elas; tudo com a maior estabilidade possível dada por maior área de contato dos pneus com solo nas mais diversas condições.
Há de se lembrar que também existe o conjunto traseiro que, embora mais limitado em ângulos e grandezas geométricas, tem função complementar ao dianteiro.
Os ângulos da questão
Inclinação do pino-mestre
As rodas diretrizes não são esterçadas em torno de um eixo vertical, mas sim ao redor de um eixo real ou imaginário com inclinação transversal para dentro. Como o carro se eleva em função dessa inclinação quando as rodas são esterçadas, a força de gravidade ajuda no retorno ao centro após uma curva.
Cáster
Já a inclinação longitudinal do pino-mestre (real ou imaginário), o cáster, auxilia na manutenção da linearidade direcional qualquer que seja o esforço, mesmo lateral (exemplo: vento). Também influencia no esforço de direção: quanto maior o ângulo, maior o esforço para esterçar. Em outras palavras, maior estabilidade direcional.
Este ângulo quase sempre é positivo — inclinado para trás — e seu prolongamento imaginário encontra o solo adiante do ponto de contato do pneu, o que resulta na roda se manter reta à frente por si só. Quanto maior for essa distância, chamada avanço, maior o efeito de autoalinhamento..
Garfos de bicicletas e motocicletas agem igual na questão do avanço e, embora num arranjo diferente, os rodízios dos carrinhos de supermercado também produzem o avanço e se autolinham.
Há casos de cáster negativo para tornar a direção mais leve, caso dos gigantescos caminhões de minério, que trafegam em velocidade reduzida e não precisam de estabilidade direcional..
O efeito do cáster negativo pode ser sentido ao dar ré num automóvel, em que o avanço contrário deixa a direção completamente boba.
Câmber
Quando em movimento retilíneo, as rodas não se mantêm necessariamente perpendiculares ao solo. Em geral, quando estáticas, têm uma inclinação predefinida olhando-se o carro de frente, que pode ser tanto para fora do carro (câmber positivo) quanto para dentro (câmber positivo).
As carroças têm câmber positivo para manter as rodas posicionadas naturalmente nos cubos e evitar seu desgaste.. Nos motorizados, a tendência é de câmber zero, ou até mesmo negativo, para aumentar a aderência em curvas e diminuir o desgaste dos pneus nelas.
Em muitos casos não há previsão do fabricante para ajuste do câmber, isso significando que se houve variação ela é devida a deformação de elementos da suspensão ou de molas que cederam, reduzindo a altura de rodagem, o que sempre altera o câmber.
Convergência
Quando olhamos de cima e as rodas apontam para a linha central da trajetória, dizemos que são convergentes; quando ocorre o contrário, são divergentes.
Em princípio, a convergência serve para manter as rodas paralelas com veículo em movimento em decorrência da resistência ao rolamento dos pneus, que faz com abram e fiquem sem convergência..
A convergência tem relação direta com o raio de arrasto da direção. O caso acima aplica-se, em geral, a direção com raio de arrasto positivo, em que as rodas tendem a abrir com a resistência ao rolamento. Com raio de arrasto negativo a tendência é oposta, as todas tenderam a fechar, a aumentar a convergência.
Mas na determinação da convergência ideal entra a questão de as rodas dianteiras serem motrizes, em que tracionando a convergência tende a aumentar (raio de arrasto positivo) ou diminuir (raio de arrasto negativo).
A convergência pode ser ajustada em todos os carros, sem exceção. Pelas variáveis envolvidas pode-se ver que convergência é um assunto complexo e requer muita experimentação para se chegar a um ideal.
É possível um ajuste de convergência para alterar o comportamento em curva, mesmo em detrimento da estabilidade direcional. Em geral, alguma divergência mitiga o subesterço (saída de frente). De novo, é assunto que requer experimentação.
Lembrando que isto pode, e é, aplicado às rodas traseiras também quando existe ajuste de convergência. Com eixos de torção pode ajustar a convergência na maioria dos casos interpondo arruelas entre a ponta de eixo e o corpo do eixo.
No ajuste todos esses ângulos é preciso lembrar que o fabricante do veículo estabelece uma altura de rodagem padrão para que tenham valia.
O que vimos, portanto, trata-se de um tema bem complexo que requer conhecimento e experiência no projeto e testes do veículo…e na aquele teste havia especialista de sobra.
E não é que na produção aquele carro saiu com o alinhamento…a barbante?!
MP
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