Na minha última coluna aqui no AE, contei um pouco da história do motor criado nos anos 30 pela equipe do Dr. Ing, h.c. Ferdinand Porsche. Um motor arrefecido a ar que fazia parte do grande projeto encomendado pelo governo alemão de um carro que servisse às necessidades e coubesse no bolso dos trabalhadores alemães. Em alguns anos depois da guerra esse carro transformou-se em um sucesso mundial e aqui no Brasil foi rebatizado oficialmente como Fusca em 1983 — depois de cerca de 30 anos na boca do povo, nome popular pelo qual as pessoas chamavam o simpático carrinho nas ruas.
Nos 51 anos em que o Fusca foi fabricado pelo mundo, a simplicidade e o conceito de seu motor traseiro de quatro cilindros arrefecido a ar fez dele um dos motores mais versáteis conhecidos da história.
Vamos mostrar um pouco do que foi feito com esse conceito de quatro cilindros contrapostos arrefecidos a ar ao longo desses cerca de 51 anos. Originariamente, um motor conhecido popularmente como “motor a ar”, nasceu 1 litro ou 985 cm³. (70 x 64 mm) e produzia parcos 20 cv de potência: o objetivo era economia de combustível e longevidade no carro criado para o trabalhador alemão e para motorizar o país que estava saindo de uma crise financeira mundial.
Mas Porsche logo viu que era potência aquém do ideal, principalmente na estrada, e também para o veículo militar que começava a ser fabricado em 1940, o jipe Tipo 82 Kübelwagen. Como era fácil, tratou de aumentar a cilindrada para 1.131 cm³ aumentando o diâmetro cilindros de 70 mm para 75 mm. A potência do 1100 subiu para 25 cv.
Mas a medida que o passar do tempo exigia, ficou fácil perceber que o fato de ser um motor modular, garantia-lhe aumentos fáceis de cilindrada, bastando para isso a adoção de novos conjuntos de cilindros e pistões de diâmetro maior.
Assim, foi fácil para os técnicos aumentarem a cilindrada do versátil motor de 1.131 cm³. Em dezembro de 1953 foi feito outro aumento da cilindrada, de 1.131 cm³ para 1.192 cm³ — o motor 1200, de 30 cv, mediante aumento do diâmetro dos cilindros para 77 mm.
Foi com essa configuração que o motor foi produzido até 1966 no Brasil, motorizando boa parte da frota brasileira com o Fusca, a Kombi e o Karmann-Ghia, contribuindo com o empenho de presidente Juscelino Kubitschek desde que tomou posse, em 31/01/1956, de cumprir sua promessa de campanha de acelerar a implantação da indústria automobilística no Brasil vislumbrada alguns anos antes por Getúlio Vargas.
Em 1967 o motor “a ar” passou por sua grande alteração de projeto: mantendo o conceito básico de quatro cilindros contrapostos arrefecido a ar, a Volkswagen projetou um novo motor que, esse sim, é o motor da qual a criatividade humana fez de tudo. Foi utilizando em toda sorte de carros de pequena produção, até em aviões ultraleves e girocópteros, passando por embarcações e motores estacionários para bombas d’água em sítios e fazendas e até como motor de arranque de enormes máquinas de movimentação de terra nos canteiros de obras.
Na Alemanha surgiu o novo 1200, de mesmos diâmetro e curso, mas com 4 cv mais, passando a 34 cv. A VW brasileira nessa nova fase do motor boxer decidiu começar pelo motor 1300 (1.285 cm³/38 cv), cujo aumento de cilindrada se dera pelo aumento do curso dos pistões de 64 mm para 69 mm. Com isso abriu-se novo leque de possibilidades de elevação da cilindrada.
Montando jogo de cilindros e pistões de 83 mm tinha-se o motor 1500 (1.493 cm³/44 cv), surgido inicialmente, em 1967, na Kombi e no Karmann-Ghia. Mesma operação com 85,5 mm e chegava-se ao motor 1600 (1.584 cm³/50 cv, a potência do VW 1600 4-portas, porém os cabeçotes tinham dois dutos de admissão em vez de apenas um.
O mesmo motor com dois carburadores desenvolvia 54 cv, seja o de turbina radial (Brasília, VW 1600) ou axial (Variant, TL, Kamann-Ghia TC, SP1). Mantendo o virabrequim de 69 mm de curso dos pistões e montando jogo de cilindros e pistões de 88 mm chegava-se ao motor 1700 (1.679 cm³/67 cv) do SP2.
O fato é que novo motor boxer arrefecido a ar abriu muitas possibilidades de aumento de cilindrada valendo-se de jogos de cilindros e pistões e virabrequins de firmas especializadas em preparação de motores usando a mesma carcaça ou mesmo recorrendo a carcaças especiais
Dependendo da aplicação, o mercado adotava cilindrada, comando de válvulas e sistema de alimentação mais adequado. No uso aeronáutico, por exemplo, utilizava-se a configuração 2-litros alimentado por um único carburador e um comando de válvulas com pouco cruzamento entre admissão e escapamento. Nesses casos, o motor deveria gerar grande potência a baixos regimes de rotação, 3.500 rpm no máximo, para as pontas da hélice não entrarem em velocidade tangencial supersônica, o que aniquila sua eficiência. Além disso, as baixas rotações asseguravam a confiabilidade exigida pelo uso aeronáutico. Mais ou menos parecido, com as poucas aplicações marítimas desse motor que nesse caso exigiam o uso da turbina que produzia o ar necessário para o arrefecimento do motor.
Nas competições, os preparadores fizeram verdadeiros milagres com esses motores “a ar”. A cilindrada variava de acordo com o regulamento da categoria onde o motor era utilizado, mas as modificações eram extensas: utilizavam-se cabeçotes que de tão alterados e modificados, eram verdadeiras novas peças que nada a tinham a ver com o componente original. As câmaras de combustão ganhavam formato hemisférico, as válvulas de admissão e escapamentos tinham grande diâmetro, os dutos eram retrabalhados e polidos e os balancins substituídos por outros mais leves e resistentes do que os originais.
Havia versões de virabrequim forjados que possuíam roletes nos moentes de biela em vez de monentes lisos. Tudo com o objetivo de reduzir o atrito e melhorar o desempenho. Nos comandos de válvulas, perfis de ressaltos que permitiam um grande cruzamento entre as válvulas de admissão e escapamento inviabilizavam o funcionamento correto do motor abaixo de 4.000 rpm.
Esses motores, alimentados por enormes carburadores duplos de até 48 mm, geravam potência máximas ao redor de 7.500 rpm. Certamente, o Dr. Ing. h.c..Ferdinand Porsche ficaria de olhos arregalados se pudesse ver onde chegou o seu simples conceito de um motor pequeno, econômico e durável para equipar um carro popular. Certamente ficaria admirado ao ver até onde chegou a criatividade humana, quando o assunto é desenvolver e tirar o máximo proveito de uma máquina térmica.
O legal de toda essa história é saber que os homens partiram de um motor básico e, dependendo da aplicação, tiraram dele a máxima eficiência. Isso só foi possível, porque o conceito básico original criado lá nos anos 30 estava correto. Esse fato permitiu que aquele conceito fosse desenvolvido e gerasse frutos por cerca de 50 anos, ajudando a humanidade a se desenvolver por onde quer que esse bom conceito do motor a ar tenha passado.
O mais admirável é o motor boxer de quatro cilindros contrapostos dois a dois, embora arrefecido a líquido, continuar mais vivo do que nunca nos Porsche Boxster e Cayman 718 em cilindradas de 2,0 e 2,5 litros, ambos turbo, e em vários modelos do japonês Subaru, de 1,6 a 2,5 litros, aspirado ou turbo.
DM
A coluna “Perfume de carro” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
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