O VW Passat foi lançado em junho de 1974, apenas 11 meses depois da Alemanha, e representou uma nova Volkswagen em sentido estrito por razões que conhecemos: em vez do “tudo atrás” e motor boxer arrefecido a ar, “tudo à frente” e motor de quatro cilindros em linha arrefecido a líquido.
Além de concessionário VW à época, eu estava ligado à Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA), por ser presidente da Comissão Nacional de Pilotos. Atendia regularmente as reuniões do Conselho Técnico-Desportivo Nacional (CTDN), presidida pelo saudoso Amadeu Girão. Uma dessas reuniões foi num sábado em maio de 1973, na sede da Sociedade Hípica Brasileira, na Lagoa.
Uns 20 minutos antes de começar a reunião chegou um engenheiro da Volkswagen. Ele decidira viajar com um Passat, modelo que ainda se encontrava no processo de tropicalização. Esse engenheiro era o alemão Otto Kuetner, velho conhecido e ex-colega meu na Vemag, o responsável pelo desenvolvimento dos motores DKW de competição.
Foi ele chegar e eu imediatamente pedir-lhe a chave do Passat, tal era minha curiosidade em conhecer o carro. Como eu tinha tempo — a pauta de reunião na minha parte me dava uma hora e meia de folga — o Otto prontamente me atendeu e sem nenhum tipo de recomendação, mesmo sabendo que ceder o carro para mim contrariava as normas da engenheira da fábrica, na época chamada de Pesquisa e Desenvolvimento, simples tradução do alemão Forschung und Entwicklung. Internamente e engenharia era a FE.
O Passat, versão L, era verde médio, Saí com ele para uma demorada volta, Fui até a Estrada das Canoas, um linda serra pavimentada em concreto, depois Estrada do Joá, Barra da Tijuca, estrada Rio-Santos. Oportunidade melhor para conhecer um automóvel, impossível.
Naquela experimentação o futuro da Volkswagen descortinou-se diante de mim. Era uma nova dimensão para a fabricante de Wolfsburg, que sabiamente fez uso da tecnologia da fabricante adquirida em 1965 da Daimler-Benz AG,, a Auto Union GmbH,ocasião em que criou a Audi-NSU AG depois passando a Audi AG.. Era a única saída para enfrentar a concorrência e sair vitoriosa nos anos a frente que despontavam como um período de forte regulamentação dos automóveis no tocante a emissões e segurança veicular.
O Passat me empolgou duplamente. Tanto pelo que era como produto, quanto por eu saber que brevemente iria vendê-lo na concessionária VW Cota da qual eu era sócio. As perspectivas eram animadoras.
Uma nova dimensão em Volkswagen
Tudo era admirável no Passat em comparação com o que existia no mercado, a começar pelas linhas de sedã fastback com carroceria monobloco assinadas por Giorgetto Giugiaro, e pelo package, como o designer Luiz Alberto Veiga comumente vem citando nos dois anos que escreve com exclusividade para o AE: como é constituído, “arrumado”, o interior de um carro.
Mesmo sem ser grande, 4.180 mm de comprimento com entre-eixos de 2.470 mm, era espaçoso mesmo no banco traseiro e o porta-malas era de 470 litros pelo padrão VDA. Os bancos dianteiros, ainda importados, eram perfeitos de conformação, baixos e revestidos de vinil preto com uma convidativa textura. A posição de dirigir e a ergonomia eram perfeitas. O Passat me parecia ser um velho conhecido..
Mas o melhor estava na dianteira, sob o capô relativamente curto para um motor longitudinal. Este era o EA827 de 1.471 cm³ (76,5 x 80 mm), quatro cilindros em linha arrefecido a líquido, montado inclinado 20º para a direita, e ao seu lado — não à frente — estava o radiador, o que explica o capô mais curto do que se esperava. E o radiador, como todos, tinha um ventilador, só que acionado por motor elétrico em vez de correia trapezoidal a partir da polia do virabrequim, a prática até então. O ventilador entrava em ação automaticamente em função da temperatura do líquido de arrefecimento, medida por um sensor na caixa d’água inferior do radiador.
Isso significava que o ventilador só funcionava quando era necessário, como em baixa velocidade ou carro parado com motor ligado, pois andando mais rapidamente — a partir de 60 km/h — o vento relativo era mais que suficiente para a troca de calor do líquido para o ar. Ou seja, máximo fluxo de ar quando precisava, o que o sistema de acionamento do ventilador por correia não provia, desligado quando não precisava. Não por acaso é o sistema universal hoje.
O motor era de uma suavidade e de um silêncio de funcionamento ímpares em relação aos boxer arrefecidos a ar. E potente na época: 65 cv a 5.600 rpm e 11 m·kgf a 3.200 rpm, com taxa de compressão de apenas 7:1 devido à gasolina comum de então de apenas 91 octanas RON com 5% a 8% de álcool. Os boxer 1600 de dois carburadores desenvolviam 54 cv e10,8 m·kgf. Só o SP2 1700 igualava-se em potência e tinha torque ligeiramente superior, 11,5 m·kgf.
O comando de válvulas era no cabeçote com acionamento por correia dentada, solução inaugurada no Brasil um ano antes pelo Chevette. Mas diferentemente do Chevette a atuação de válvulas era direta sobre tuchos tipo copo, enquanto no Chevrolet era por alavancas-dedo.
Era leve, 930 kg, seu desempenho oficial no lançamento era 0 a 100 km/h em 17 segundos e velocidade máxima de 150 km/h, excelente para a época.
O câmbio de 4 marchas era curto para os padrões atuais, v/1000 de 26,6 km/h, 4.500 rpm a 120 km/h e 5.600 rpm à velocidade máxima (150 km/h), denotando cálculo perfeito da VW.
Suspensão, direção, freios e rodas
O Passat também se destacava.nesses itens.
A suspensão dianteira era independente McPherson com braço triangular, mola helicoidal, amortecedor hidráulico e barra antirrolagem. Esta tinha apenas essa função, já que o braço triangular garantia a perfeita localização longitudinal da roda. Não era como o conceito McPherson original de barra antirrolagem servir também manter a roda posicionada longitudinalmente, como veríamos no Fiat 147 em 1976.
A suspensão traseira era por um eixo inteiriço semirrígido, tinha alguma torção, as molas eram helicoidais com amortecedores hidráulicos. O eixo era atrelado ao monobloco por braços tipo lâmina (como os facões do Fusca e localizado transversalmente por barra Panhard em ângulo de aproximadamente 30º da direita do eixo para o lado esquerdo do monobloco.
A direção era por caixa de pinhão e cremalheira, sem assistência, sua relação era de 19:1. As rodas esterçavam bastante o diâmetro mínimo de curva era 10,3 m, muito bom para a distância entre eixos de 2.470 mm (nos VW de entre-eixos de 2.400 mm era 11 m). Mas a direção trazia uma geometria desconhecida no Brasil, a de raio negativo de rolagem. Com isso a estabilidade direcional era garantida no evento de uma roda dianteira topar com algum objeto na pista, cair num buraco mais fundo, ou ter um pneu esvaziado subitamente.
Outro aspecto da direção que me impressionou foi sua leveza apesar de não ser assistida e estar na dianteira todo o conjunto motriz. E outra característica notável foi a total ausência de interferência da tração dianteira com a direção (bem conhecida no DKW-Vemag), resultado das juntas homocinéticas nas semiárvores de tração ante as cruzetas no DKW.
O freios, também sem assistência, eram dianteiros a disco sem ventilação, com pinça flutuante, e traseiros, a tambor. Havia no sistema outra novidade, o circuito hidráulico duplo, ainda não obrigatório, disposto em diagonal, de tal maneira que no evento de falha hidráulica num dos circuitos sempre se contaria com freio numa roda dianteira. Na disposição de duplo circuito dianteiro e traseiro, ficar com freio só nas rodas traseiras pouco adianta. Essa solução só foi possível graças à solução do raio negativo de rolagem, uma vez que com raio positivo de rolagem a puxada de direção, no caso de falha hidráulica, provocaria uma guinada para o lado do freio atuante difícil ou mesmo impossível de corrigir.
As rodas eram de aço 4,5Jx13, com o centro saltado justamente para compor o raio negativo de rolagem.Sua fixação por quatro parafusos dispostos num círculo imaginário de 100 mm de diâmetro. Nelas vinha outra grande novidade em Volkswagen que não fosse o SP2: pneus radiais A medida era 155SR13 (hoje grafado 155/80R13S).. Os pneus radiais contribuíram para minha impressão naquele Passat verde, a de uma resposta de direção admirável.
Um ano depois dessa experiência o Passat era lançado no Rio de Janeiro, no Hotel Nacional Rio, em meio a uma chuva com vento torrencial. Afinal, Passat é o nome de um vento alísio que sopra dos trópicos para o equador…. Presente ao evento, vi, estupefato, vários concessionários serem contra o novo VW por bater de frente com a filosofia de produto da marca.
Problemas
Uma vez lançado, as vendas foram logo fortes. Quando nem se falava de test drive, aparafusei as placas de experiência no locais próprios para os clientes experimentarem o Passat. Tanto eu quanto meus sócios Eduardo Ribeiro, seu irmão Maurício, e Luca Bernardi, convidávamos os clientes que apareciam na concessionária para dar uma volta no novo carro.
Quando o piso estava molhado eu aproveitava para mostrar as virtudes do raio negativo de rolagem: freava travando rodas, tirava as mãos do volante e mostrava ao cliente como o volante se mexia ora para um lado, ora para outro, para manter a trajetória. Não havia quem não ficasse impressionado e em mais de uma centena dessas saídas só um não comprou o Passat,
Mas houve problemas no início.
• A ligação do ventilador elétrico era mediante um relê ao receber o sinal do sensor de temperatura do líquido de arrefecimento citado acima. Acontecia de o relê não interromper a corrente ao desligar o motor, os contatos colavam. O ventilador ficava ligado com o carro estacionado e a bateria descarregava. Ou então o relê não funcionava e o ventilador não ligava, advindo superaquecimento.
A troca do relê, em garantia, não levava mais que cinco minutos, mas a imagem do sistema de acionamento automático do ventilador ficou abalada ao ponto de proprietários mandarem instalar um interruptor no painel para eles mesmos ligarem ou desligarem o ventilador. E o pior, devido à demanda por relês o fornecedor não estava conseguindo suprir a fábrica. Faltavam relês na rede autorizada.
Como para mim, sócio-gerente que cuidava do pós–venda, era inconcebível um carro não poder ser utilizado, tratei de arranjar uma solução. Um shunt (uma ponte) nos contatos do relê original e envio de corrente para um relê de buzina comum resolveram o problema. Fiz até um kit de relê, arame para o shunt, fio e terminais. A instalação não levava 15 minutos. A Volkswagen autorizou o remédio, em garantia (por meio do representante regional de assistência técnica Ronaldo Berg) e o carros continuaram rodando.
• O eixo traseiro se soltava do monobloco no lado esquerdo (nunca peguei esse problema). A causa era o parafuso de fixação, rosqueado no suporte no monobloco, se soltar com o movimento vertical do eixo no curso de compressão da suspensão. A solução, da fábrica, foi os parafusos passarem ser passantes no suporte, com porca e freno com cupilha no outro lado..
• O ventilador do radiador funcionava mas não puxava ar, soprava;. Motivo, ligação invertida, de fábrica. No trânsito lento havia superaquecimento, claro. Peguei dois ou três carros assim, no primeiro informei ao escritório regional.
• Um cliente retirou seu Passat 0-km e ao frear uns bons quilômetros adiante o pedal de freio caiu. Por sorte havia espaço e ele conseguiu parar com o freio de estacionamento. A causa foi o eixo dos pedais de embreagem e freio, que fica em cima, ter saído de fábrica sem uma trava-mola na extremidade do eixo. Não poderia ser visto por haver uma capa sob o painel e também por não ser item de revisão de entrega. Fiz a Comunicação Urgente de Irregularidade à fábrica (correio, nem faz existia) e avisei imediatamente o escritório regional. Por muitos meses retirar a capa sob o painel para verificar se faltava a trava. Nenhum dos Passat em estoque havia vindo sem ela.
• A boia do carburador duplo-corpo 32/55 TIDTA do TS encharcava, ficava mais pesada diminuindo sua flutuabilidade e causando elevação do nível de combustível na cuba. A marcha-lenta ficava irregular com o gotejamento,além de aumentar or consumo.. Não haviam boias suficientes na fábrica para reposição, pois o carburador Solex-DVG era importado.. Resolvi, com aprovação da VW, adaptando a boia do carburador de corpo único Solex-Brosol H35 PDSTI do motor 1500, que era oca e não maciça, portanto não encharcava,
• Alavanca de câmbio de articulação frágil era um problema sério do Passat. Ela era comprida, “espetada” no assoalho e em pouco tempo surgia uma folga em que os movimentos da alavanca deixavam de corresponder ao “H”. Era comum engatar primeira e na verdade ser a ré. Nunca houve solução de campo para esse problema, que só seria resolvido em 1977 com novo sistema de comando, que de problemático passou a ser referência.
• Durante cerca de dois anos suspensão do Passat era muito rumorosa e áspera. Tanto que passei a recomendar aos clientes reduzir a pressão dos pneus de 26 lb/pol² para 22 lb/pol², mitigando o problema. Isso não sem antes testar bastante a menor pressão, inclusive pegando a Via Dutra entre o topo da Serra das Araras e o início da reta de Resende, repleta de curvas de alta velocidade, para certeza de que a minha recomendação era segura.
• A falta de servofreio de servofreio era reclamação recorrente por todo o país e por isso a Freios Varga desenvolveu um kit para retroinstalação. O trabalho era um pouco demorado, cerca de uma hora, por ser necessário remover carburador e coletor de admissão para fazer um furo neste para o niple da mangueira de comunicação com a câmara de vácuo. Eu soube que havia quem fizesse o furo com o coletor no lugar. Limalhas? Ora, limalhas.., No ano seguinte o servofreio passou a ser de série.
Sem planejamento ou orientação (ou ordem) da fábrica, a Cota (Comercial Técnica de Automóveis Ltda.) se tornou um “serviço especializado Passat” pelo volume de atendimento ao modelo. Era comum haver apenas Passat em serviço. Chegamos ao ponto de sermos a concessionária que mais vendia Passat em relação à sua quota..
BS