Uns bons anos atrás eu cheguei a contribuir para a revista Fusca & Cia.,dedicada a VW.. Nela eu tinha uma coluna dedicada a causos de leitores onde o mote era “há espaço para muitos outros”. Pois foi assim que em outubro de 2004, praticamente no fim dessa contribuição,recebi um envelope do Rio de Janeiro, capital, com um material surpreendente enviado pelo arquiteto Roberto Ponce Otto, já falecido. O material veio com um recado que reproduzo em homenagem ao Roberto:
“Envio uma matéria contando minha história com o “Fusquinha”. Aqui no Rio, não sei se devido ao maneirismo da “bossa-nova” não falávamos apenas “Fusca”, mas sim com o diminutivo carinhoso, transparecendo mais intimidade.
Como o Sr. escreveu na sua coluna “que há espaço para muitos outros” eu aproveito essa oportunidade democrática de contar “meus lances” com o genial projeto de Ferdinand Porsche.
E “conto” também com desenhos feitos por mim, visto que apesar de “jurássico” (os desenhos são coloridos a nanquim) me expresso melhor com o que tenho “em mãos”.
E espero que goste e eu cá na “São Sebastião do Rio de Janeiro” aguardo ansioso outra edição da revista para ler sua coluna.
Obrigado pelo “espaço democrático”, saudações rubro-negras!!!”
O material que ele enviou estava editado, como poderia ser colocado em uma revista, mas não era bem o que se costuma receber para editar um causo. Para poder preservar cada um dos desenhos únicos e o texto foi necessário repaginar o trabalho, ai vai o resultado deste esforço:
AMOR AUTOMOBILÍSTICO PLATÔNICO (RAM MAM MAM)
Por Roberto Ponce Otto
E! O Tempo passou! Muitas coisas passaram na minha vida … Em 18 de setembro último fiz minha “quinta” repetição numérica, ou seja, 55 anos de idade. Puxa! Quantas histórias eu já tenho ‘pra’ contar; mas vá lá, vamos falar do amor do homem pelo automóvel.
Os Rolling Stones não diziam somente “o tempo está do meu lado” (Time is on my side), eles também diziam que “o tempo não espera por ninguém” (Time waits for no one), nosso inquieto Cazuza dizia “o tempo não para”, já o meu saudoso pai dizia num tom militarista, após saber da minha separação (aliás a 1ª, já que tive 3 casamentos) “só o tempo irá te ajudar”, meu filho.
De fato; meu coronel, … o cadete n° 528 da última Escola Militar de Realengo me dizia muitas outras frases de efeito.
Pois é! Meu pai hoje está no céu e o papai aqui já tá com ‘pinta’ de vovô: You Know?? Quanto tempo realmente existe neste amor, homem & automóvel, ‘Who‘ Knows?? Alguém é capaz de me responder? Nós motoristas somos animais ‘emocionais’ de cabeça, tronco e rodas (?!)
Eu, Arquiteto, já sou um senhor e… não um garotão sonhando em ter um carro! Presentemente enquanto escrevo… escuto ‘Titãs’ cantando em meu radinho de pilha, na janela do meu quarto: “Sexo, eu quero sexo”… “Como e que eu fico sem sexo??!!” E, juro, tô escutando: “Carro! Eu quero carro” … “Como é que eu fico sem carro ?!!?”
Na revista de domingo de 18 de julho de 2004 do Jornal do Brasil, o tema era “A juventude vai de Fusca”; Subtítulo: “O bom e velho carrinho cai no gosto dos modernos”, excelente reportagem (hoje se diz ‘matéria’, ne?) onde os jovens redescobrem o amor pelo “Besouro”.
Bem… tenho algo em comum com jovens, pois sexo eu também tenho! Não tenho é Fusca. Pô!
“Pô!” Era palavra inovadora nos anos ’60’ … dizia muita coisa e ainda diz… “Pô!”
Hoje o automóvel faz parte da paisagem.
Caramba, meu 1° carro foi um Fusca (agora sim começa minha narrativa: Meu amor ‘platônico’ por este simpático carrinho com cara de unha encravada). Pois é! Meu primeiro automóvel foi um “Fusquinha” … Lindo! 1975, modelo ‘76 cor bege Alabastro (um manteiga bem clarinho) ….
Portanto meu 1º carro foi sugestão da minha primeira ex-mulher… (tive muitos casamentos e muitos carros, nada a reclamar).
Após esta feliz sugestão passei a ‘sonhar’ com ‘ele’.
Nossa! Como era gostoso sonhar com ele … Me aparecia com uma corzinha verde-oliva em ‘visões’ (o verde-oliva foi uma cor que convivi por causa do ‘militarismo’ do meu velho). Aquela “manchinha verde” percorria minha imaginação… Alegre ou triste estas visões me apareciam constantemente (ainda bem!) Sonhei … Sonhei até se tomar realidade …. Então eu abria sua porta, sentava e dirigia… dirigia e dirigia!…
Dirigia o tempo todo… pudera! Naquela época a gasolina era barata nos sonhos e na vida real! Não tínhamos filhos e então eu passeava de Fusca com minha ex por todo o Rio nos finais de semana;
Morava na Tijuca e íamos muito à Barra da Tijuca que naquela ocasião era repleta de dunas.
Íamos sempre assistir a ‘famosa’ “Corrida de Submarinos”, na qual os casais “torciam” tanto que podíamos sentir os Fusquinhas se balançando freneticamente com os seus vidros embaçados, sobre as dunas.
Meu Fusca era bege e parecia sorrir quando eu me aproximava dele; ele parecia ter noção da dimensão exata de nossos corpos, um verdadeiro caso de amor:
Certa vez “bateram” nele, cataram seu para-lamas do lado direito… e vi que era um outro Fusca, que sumiu me deixando pesarosamente triste.
Bem, não restou outra alternativa senão levá-lo para o hospital… quer dizer lanterneiro.
Tempos depois ele voltava “faceiro”, que dizer, “inteiro”.
Bem, então, a Nadir, minha ex, tirou carteira e, passado pouco tempo da primeira ‘porrada’, o Fusca estava assim na garagem:
Depois que ‘ele’ teve alta raspei a barba, mas mantive um moustache meio cafajeste que combinou com o novo visual do ‘fusquinha’.
Bem, nosso ‘herói’ continuou nos prestando bons serviços e ele continuava … Vindo …e indo…
Mas quando eu o estacionava num parqueamento do tipo da antiga Praça Quinze era brabo! …
Após meu brado retumbante e a aflição de muitos outros felizes proprietários dos “Fusquinhas” em igual situação, as vagas passaram a ter identificações.
Era uma época boa, tempo gentil; era como o Caetano cantava: “O sol nas bancas de revistas… me enche de alegria e preguiça.” … era muito bom.
Meu ex-cunhado ‘Tito’ era português e no finalzinho dos anos 70 ele tinha uma Kombi ‘Verde clarinha’ e me deixava dirigir … “o pão de forma”; ela tinha um jogo de volante incrível (tem até os dias de hoje) e eu adorava dirigir esta ‘máquina’ multiuso. Sempre que podia íamos do Rio a Vespasiano, MG.
Era o gostoso pequeno microônibus … rumo a Minas, à noite …
Eu achava fácil ‘pilotar’ seu volante e saímos tipo 23:00hs e chegamos a Vespasiano tipo 6:00hs do dia seguinte; eu, a Kombi, seu volante deitado e todos, bolas!…… Todos deitados, pô!
O ‘Tito’ costumava voltar muito a Portugal também e certa feita não conseguiu entender de ‘jeito maneira’ por quê ao sairmos juntos eu tinha que levar comigo o “rádio do carro” ao teatro, chopinho, cinema etc. bem “aí, então”…
Ai então vieram os anos 80, de ‘brabo’ passamos pra ‘brabeza’, “o que era doce acabou-se” assaltos, furtos, todo tipo de instabilidade nos atormentava e ainda nos atormenta com uma força muito brutal.
O ‘Tito’ regressou mais uma vez de Portugal… e por aqui não só roubavam os ‘tapes’ dos carros como também o “dito cujo”.
Daí eu disse a ele que teríamos que ir ao cinema com o Fusca em ‘segurança’ e mais tarde ele nos disse que imaginou algo assim:
Na realidade a segurança eram os malditos flanelinhas que se proliferam infelizmente na nossa “São Sebastião”.
Mas por todo tempo, e em paralelo a isto, não sei determinar ao certo quando foi, outras marcas, outros tipos começaram a aparecer e o panacão aqui vendeu seu fiel ‘bólido’ bege Alabastro para comprar um outro carro, de estilo cubista.
Mas passado todos estes anos sinto sua falta e quando me deparo com outro ‘fusquinha’ … Eu, que agora estou sem nenhum carro — sinto-me novamente seduzido pelo seu teto alto todo furadinho:
Por suas linhas arredondadas, sua carinha safada de ‘unha encravada’, sua ‘bandejinha’ natural para refrigerante quando você abre o porta-luvas seu escudinho “Paulistarum Terra Mater“. Seu ronco ‘mil e trezentos’ seus dois mostradores, um redondo e outro pasmem quadrado e até seu estribo ‘demodê’.
Nos dias atuais moro em Laranjeiras— Rio e trabalho com meus amigos na Prefeitura da Cidade de Nova Iguaçu – RJ. Aí quem passou a ir e vir fui eu …
E enquanto a paisagem passa na janela do ônibus eu penso, e roncando chego a entrar em ‘alfa’…
E eis o que acontece…
Outro Fusquinha invade meus sonhos, outro RAM MAM MAM MAM.
Entendo que estou vivendo uma nova velha paixão … ou melhor um amor “Automobilístico Platônico”. Já que hoje estou “a pé” …
Se o “sonho é o princípio de uma realidade” – Sonho em voltar a ter um carro
particular… Adivinha qual? Este não se fabrica mais, mas todos nós ainda o mantemos vivo, de uma maneira ou de outra.
Quanto a cor … Bem a cor sempre me foi o elemento surpresa.
O Projeto de Ferdinand Porsche é genial pela sua simplicidade … Tão genial como ovo e sua ‘casca’…
Sinto muito John Lennon, mas o “sonho não acabou”… pois “a imaginação é mais importante que o conhecimento” segundo Albert Einstein.
Cenas finais:
THE END
O tempo passou e esta publicação acabou sendo uma homenagem póstuma ao Roberto Ponce Otto, tanto que eu fiz questão de reproduzir a assinatura dele no fim de seu movimentado causo.
Junto com o seu causo o Roberto enviou o seu currículo, que reproduzo abaixo:
Roberto Ponce Otto
Brasileiro. Divorciado, Nascimento 18/09/1949
Rua Alice 1130 Ap. 101 – Laranjeiras
Rio de Janeiro – Cep 22241-020
Tel: (21) 2205-9049
Pref. Municipal de Nova Iguaçu (Setor Técnico): 2667-1252
QUALIFICAÇÕES:· Foi vencedor Brasilit em 1981. pelo Instituto de Arquitetura do Brasil – IAB. Região Centro, tendo como tema o projeto de casas unifamiliares para pessoas de baixa renda, sendo selecionado por incorporar uma solução de aproveitamento/ocupação de lote com raízes na tradição popular. Com o total de 348 cases, em terreno fornecido pela Prefeitura de Nova Odessa-SP. num total de 112.007 m².
Recebeu prêmios de 1º e 2º lugares conferidos pelo II Salão de Artes Plásticas em Desenhos Artísticos, no Faculdade de Arquitetura de Barra do Pirai, RJ. Participou do Concurso UIA-União Internacional de Arquitetos, sobre o projeto do Centro Cultural Islâmico, em Madri, Espanha editado em livro pelo UIA. Participou, do concurso do UIA, projeto de um Centro Cultural em La Villete, Paris, França.
FORMAÇÃO: 3º Grau • Arquiteto • (Faculdade de Arquitetura de Barra do Piraí, RJ)
CURSOS COMPLEMENTARES:
Paisagismo Urbano – (IAB, RJ)
Conforto Ambiental – (FERP-CENPHA)
Construção Industrializada do Pontifícia Universidade Católica • (CENPHA)
EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL:
Gyula Kurthy Arquitetura, Engenharia e Construção Ltda – 1974 a 1975
Cargo: Arquiteto
Banco Nacional S/A – 1975 a 1984
Cargo: Arquiteto setor do Engenharia
Unibanco S/A – 1985
Cargo: Arquiteto setor da Engenharia
Fundação Habitacional do Exército – Poupex – RJ – 1986
Cargo: Fiscal de Obras
Neoespaço Arquitetura & Construções Ltda – 1990 – 1995
Cargo: Sócio Diretor
Ponce-Otto Arq. Design Ltda – 1996 a 1998
Cargo: Sócio Diretor
Obs.: Como Sócio Diretor tinha como principais clientes:
Banco Nacional S/A, CIA Brasileira de Petróleo Ipiranga Ltda, Esso Brasileira de Petróleo Ltda, Bernardo Figueiredo Arquitetura e Stands, Condomínio ED. Morada do Sol – Botafogo (Contal), Engearte Construções Ltda, Mesbla S/A, Editoro Abril, Sesi-Serviço Social do Indústria RJ, Unibanco S/A, Varig I – Aeroporto Santos Dumont. Varig II – Est. Das Canárias Ilha do Governador, Prefeitura Municipal de Nova Iguaçu R.J – SICT – Secretaria Municipal de Meio Ambiente.
Solares; Design no Ilha Plaza Shopping – 2001
Cargo: Vendedor Projetista
Celina Design – 2002
Cargo: Vendedor Projetista
Prefeitura Municipal de Nova Iguaçu
Setor Técnico – 2004
Até o momento este causo é o mais peculiar que eu tinha recebido — pelo detalhado trabalho de ilustração feito, exclusivamente com desenhos feitos a nanquim. Para quem chegou a trabalhar com nanquim fica claro o trabalho que deu, realmente incrível. Não foi aproveitado antes, pois deixei de colaborar com a tal revista, depois ele acabou incorporado ao “grande arquivo de correspondências e assemelhados” em meu escritório. Mas agora chegou a vez de aproveitá-lo.
Inicialmente eu tentei contato com o Roberto no telefone que ele deixou, que deu como inexistente. Depois comecei uma busca pela internet e o que veio foi uma notícia do processo de seu espólio, uma pena. Mas, acredito que esta homenagem póstuma lhe faz jus de maneira condizente.
AG
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A coluna “Falando de Fusca & Afins” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.