Já sei que este texto vai sofrer ataques dos dois lados das trincheiras. Afinal, juntar defensores dos veículos elétricos com amantes de carros antigos é como convidar para a mesma festa fãs de música clássica e apaixonados por funk.
De um lado, a nostalgia do design e o culto à gasolina. Do outro, a apoteose da tecnologia e a sustentabilidade da eletricidade. Entre esses dois mundos em choque, a conciliação veio por meio de um delicado equilíbrio, que deu origem a uma nova tendência do mercado: converter automóveis clássicos para rodar com motores elétricos.
Antes que o leitor, partidário de um clube ou do outro, torça o nariz achando que a combinação desses universos é como misturar água e óleo, vamos entender como o fenômeno começou.
Já percebeu como algumas relações de consumo recentes têm sido embaladas por um tipo de resgate do passado? Pode chamar de vintage, revival ou retrô, porém cada vez mais segmentos da economia estão aderindo ao conceito.
O setor de discos de vinil ressurgiu. Enterrado pela chegada do CD e do streaming, o velho LP cresce tanto que hoje já fatura tanto quanto em 1986, num mercado que movimenta US$ 500 milhões apenas nos EUA. O vinil ficou tão desejado que há selos como a Electric Recording, que faz novas tiragens que custam US$ 600 cada.
Na construção civil, temos o retrofit, prática de reformar construções antigas mantendo o charme do passado com o conforto e a tecnologia de hoje. Os lançamentos nessa área têm crescido no Brasil mais que o dobro em relação aos novos empreendimentos.
Agora é a vez dos automóveis clássicos de entrarem de cabeça no retrofit automobilídtico. Mas qual é a lógica por trás dessa moda?
O fenômeno tem sido mais forte na Europa, onde a infraestrutura de recarga é maior e a consciência socioambiental, mais presente. Em alguns lugares por lá, já não pega bem você usar carro a combustão moderno, imagine um modelo naturalmente superpoluente como um carro antigo. Não é à toa que os países discutem a proibição da venda de automóveis a combustão, como Alemanha (em 2030), Reino Unido (2035) e França. Até no Brasil há um projeto para proibi-los em 2030.
A história se repete
Parece que a história funciona em ciclos, pois hostilizar quem tem veículo poluente não é novo. Antes da crise do petróleo de 1973, os EUA viviam a apologia da potência com os muscle cars, como Mustang, Camaro, Pontiac GTO. Nos anos seguintes, esbanjar gasolina e poluir em excesso já não pegava bem e seus donos passaram a ser mal vistos.
Agora estamos vendo surgir empresas que produzem ou convertem automóveis clássicos para rodar com eletricidade. Na última semana, foi relançado o AC Cobra, um mito dos anos 60. É um zero-km clássico com baterias de 54 kWh e um motor elétrico de 308 cv e 51 m·kgf (também há uma opção com motor convencional).
No ano passado, outra companhia inglesa fez barulho ao mostrar seu trabalho de converter antiguidades para a nova fonte de energia. A Lunaz revelou um Jaguar XK120 (foto de abertura), esportivo lançado em 1948, que recebeu dois motores elétricos, somando 375 cv e 71,4 m·kgf. O portfólio da Lunaz inclui ainda Bentley e Rolls-Royce com mais de 60 anos de idade. A empresa diz que o processo é todo reversível. Ou seja, o dono pode voltar a colocar o motor original se desejar.
Sei que para muitos tudo isso é um contrassenso. Os críticos alegam, com toda razão, que o retrofit automobilístico vai contra o conceito de preservação da história do modelo, ao eliminar as características técnicas originais e o prazer de dirigir condizente com a época em que nasceu. Afinal, motor e câmbio sempre foram a alma da experiência de guiar um automóvel, mesmo nos dias de hoje. Assim, esse retrofit seria como pintar um novo sorriso no rosto da Monalisa.
Os apoiadores discordam. Dizem que o processo permite que os veículos sejam usados com mais frequência porque os custos de manutenção são bem inferiores, há menor risco de pane e não polui o ar. Outro argumento a favor é o brutal aumento de desempenho. O Jaguar XK120 acima acelera de 0 a 100 km/h em menos de 5 segundos, sem comparação aos 10 segundos da versão original, que usava um motor de seis cilindros e 3,4 litros com 160 cv. Mas os fãs não têm como negar que a autonomia é limitada: são só 400 km. Porém isso não é um problema na prática, pois a maioria dos donos que não costuma rodar longas distâncias com essas raridades.
A maioria vai dizer que isso é uma grande heresia, mas é bom lembrar que a tradicional realeza britânica deu o exemplo de consciência ambiental. Em 2018, o príncipe Harry e Meghan Markle usaram no seu casamento um Jaguar E-Type 1968 elétrico. Parece que foi o ponto de partida dessa febre. No Salão de Frankfurt de 2019, a empresa alemã eClassics apresentou sua versão de Fusca elétrico e já tinha projetos para Kombi e Porsche 356. Nos EUA, a Zelectric Motors faz o mesmo para antigos Porsche 911, Fusca e Kombi. E há ainda muitas outras empresas.
Porém toda essa modernidade nostálgica tem um preço e ele é bem alto. Apenas a conversão do Jaguar XK120 custa cerca de US$ 440.000 (R$ 2,4 milhões). E a transformação de modelos mais simples, como o Fusca, não sai por menos de US$ 112.000 (R$ 600.000) na Europa ou US$ 62.000 (R$ 330.000) nos EUA.
Brasil segue a tendência
Mesmo o alto custo não impediu que a moda se chegasse ao Brasil. Por aqui, porém, os projetos são mais amadores, feitos por pequenas oficinas ou pelo próprio dono na garagem de casa. Basta procurar no internet e você vai achar de quase tudo: Fusca, Kombi, Gurgel, Gol, Palio, Uno, Fiorino, entre outros.
O perfil da tendência no Brasil é um pouco diferente. É uma combinação de curiosidade e pioneirismo, para estar à frente da tendência, mas também de preocupação ambiental e redução de custo de rodagem (a economia pode ser de mais de 85% na conta de gasolina no fim do mês).
De olho nesse nicho, o mercado nacional já abriu o olho. A fabricante de motores elétricos WEG anunciou uma parceria com a FuelTech, especializada em injeção eletrônica, para fazer esse tipo de conversão. E a Electro já começou a vender kit para os donos adaptarem seus carros a combustão para a eletricidade por apenas R$ 29.000.
Se tudo isso é bom ou ruim, não cabe na minha argumentação. Para isso, convido os amigos internautas a deixar sua opinião abaixo. O importante é perceber que essa tendência está alinhada com a nova mentalidade de consumo e que existe hoje uma demanda crescente, indicando que ela veio para ficar. Mesmo que isso seja tão estranho quanto colocar no mesmo disco de vinil música clássica em um lado e funk no outro.
ZC
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