Em matéria há quinze dias, “Acordo VW & Chrysler – base para a vinda do VW Fusca para o Brasil“, contei como as notícias sobre o “Carro do Povo”, impulsionado na Alemanha pelo III Reich, haviam capturado o interesse de José Bastos Thompson, um dos diretores da Brasmotor, que logo ficou adepto do carro. Mas, como foi que isto aconteceu? Alguém no Brasil falava do projeto alemão de carro popular? Se falava, desde quando?
Mas, por mais surpreendente que isto possa parecer para nós, as notícias sobre o “Carro do Povo” eram publicadas na imprensa brasileira quase que “online” (!?!). Como isto era possível? Naqueles tempos obviamente não havia internet, porém havia a ligação com a Europa por cabo submarino de telegramas e as agências internacionais de notícias enviavam uma grande quantidade de releases por dia sobre os mais variados assuntos. Alguns jornais, como O Globo, se davam ao luxo de ter várias edições diárias, chamadas de “clichés”, atualizando por meio de edições ao longo do dia seus leitores sobre o que ocorria no mundo.
A evolução da técnica de comunicação ocorria a grande velocidade, vindo a telefoto, depois o teletipo, e assim por diante. Sim, estamos acostumados com a internet e a informação instantânea com a qual nem se sonhava nem na década de 1960 aqui no Brasil, o que dirá três décadas antes. Mas as informações mundiais vinham em grande velocidade para cá, como veremos no relato que se segue. Também é certo que muitas destas notícias ficavam mais restritas ao meio impresso, o que limitava o seu alcance.
Nesta matéria, que será publicada em duas partes, apresento uma realidade que poderá surpreendê-lo ou surpreendê-la muito. O material que será apresentado foi pesquisado pelo jornalista e amigo Jason Vogel, um exímio investigador da nossa história automobilística.
Recebi as notícias como fotografias, e tive que transcrevê-las para o meio digital para que ficassem legíveis (também nas traduções para meus leitores do estrangeiro). A transcrição foi realizada com a grafia atual, ditada pelo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
Pode-se dizer que a primeira apresentação pública da ideia de se fabricar um “Carro do Povo” na Alemanha ocorreu em março de 1934 durante a solenidade de abertura o Salão do Automóvel de Berlim, quando o recém-empossado chanceler da Alemanha, Adolf Hitler, falou disso em seu discurso.
É bom lembrar que naquela oportunidade essa era uma ideia firme de Hitler, mas não havia nada de concreto a respeito, Ferdinand Porsche ainda não havia sido contatado, e o contrato para o desenvolvimento dos primeiros protótipos do “Carro do Povo” do III Reich só viria a ser assinado três meses depois!
Mas pouco tempo depois da realização deste salão os brasileiros já foram informados sobre a ideia do III Reich, como mostra a notícia abaixo:
O Jornal de 27 de maio de 1934
AUTOMOBILISMO
A EXPOSIÇÃO DE AUTOMÓVEIS NA ALEMANHA
Não é ainda tarde demais para falar do Salão do Automóvel, que teve lugar em Berlim no mês de março próximo passado. Estas Exposições monográficas da indústria automobilística não são meras exibições, cuja finalidade resida em si própria, escreve o sr. Karl Schwartz. São pelo contrário, certames industriais, cuja repercussão se prolonga durante um ano inteiro pelo menos, e em alguns casos por mais tempo. Depende da importância das novidades que em cada Salão se apresenta.
A nova passagem dos construtores alemães para a vanguarda na esfera das inovações e aperfeiçoamentos do automóvel, data já de alguns anos. Mas foi só este ano, no Salão de Berlim, que o fato, certo em si mesmo, ficou irrefutavelmente demonstrado. A indústria norte-americana — a mais poderosa e, ao mesmo tempo, a mais conservadora — teve de render-se, após longos anos de persistente resistência, perante a superioridade dos novos princípios construtivos assentes pela engenharia alemã, ou pelo menos — tudo está em começar — teve de aceitar e adotar um destes princípios. Dos 15 tipos de carros norte-americanos exibidos no Salão de Berlim, 11 estavam munidos de eixos oscilantes e somente 4 de eixos rígidos. Dos 50 tipos de automóveis que hoje fabrica a indústria alemã, têm eixos oscilantes — nas diversas variedades deste sistema de construção — 36 modelos, e eixos rígidos apenas 14. A proporção é exatamente a mesma nas duas indústrias. A primeira brecha aberta pela originalidade dos construtores alemães na sólida muralha do tradicionalismo americano foi, portanto, formidável.
Mas enquanto algumas das suas inovações começam a adquirir reconhecimento universal, a indústria alemã persiste no caminho empreendido e ensaia outras novidades. No Salão de Berlim foram apresentados este ano nove modelos de carros com tração dianteira, cinco modelos com o motor colocado na parte traseira do carro e um número considerável de carros — sobretudo de pouca força — com sistema de refrigeração por ar. O futuro encarregar-se-á de dizer-nos até que ponto estas novidades construtivas estão chamadas a se impor, num dia mais ou menos longínquo, como aconteceu com o eixo oscilante. O mesmo cabe dizer das formas aerodinâmicas, cujo triunfo parece aproximar-se cada vez mais, à medida que os construtores nos seus desenhos conseguem harmonizar mais afortunadamente os princípios da aerodinâmica com as exigências da estética.
No ramo das carrocerias, merece assinalar-se o renascimento do carro aberto, que tinha sido desalojado quase completamente do mercado pelo carro fechado, limusine e cabriolé conversível. As causas deste renascimento até certo ponto são políticas. O chanceler Hitler e os grandes vultos do Partido Nacional-Socialista são amigos decididos do auto aberto e, em geral, do automobilismo como desporto. O seu exemplo parece conquistar terreno entre os automobilistas.
O carro do povo — “Volkswagen” dizem os alemães sinteticamente — deu no Salão de Berlim um novo e importante passo tendente a colocar o automóvel ao alcance das massas populares. Carros por 1.800 por 1.500 e até por 1.300 marcos. Não se pode pedir muito mais no caminho do barateamento. Tudo parece indicar, em suma, que quando fique terminada a imponente rede de autoestradas em construção, a Alemanha será um país altamente motorizado. Governo, indústria e povo colaboram harmonicamente para o conseguirem.
O AUTOMÓVEL DO FUTURO
Pelos tipos de automóveis apresentados este ano pelos fabricantes europeus e americanos, pode-se deduzir que o automóvel de 1935 terá as linhas aerodinâmicas que apresenta o “cliché”.
O Globo de 17 de agosto de 1936
O GLOBO INAUGURA A TELEFOTOGRAFIA NO BRASIL
Em meio à realização dos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936 o jornal O Globo inaugurou o serviço de telefoto estampando no mesmo dia do fato a seguinte imagem na primeira página do sexto cliché — ou 6ª edição, assim indicado na testada do jornal e com a hora em que a edição saiu — em 17 de agosto de 1936:
Em 1936, a nadadora Piedade Coutinho, então com 16 anos de idade, conquistou um feito histórico para o esporte brasileiro, ao se classificar para a prova final dos 400 metros nado livre na Olimpíada de Berlim. Piedade chegou em quinto lugar, mas sua proeza só seria igualada em 2004, em Atenas, quando Joana Maranhão também chegaria às finais da natação olímpica.
Reproduzi estas imagens para mostrar o progresso tecnológico da época, coisa que hoje em dia é um fato corriqueiro. Naquele tempo era um feito para ser comemorado e envolvia um batalhão de pessoas para que o procedimento pudesse ser realizado.
A Noite 22 de outubro de 1937
Automóveis para todos
Motores traseiros e capotas de couro de peixe¹
Berlim, 22 (United Press) Os engenheiros estão presentemente ocupados com as experiências do já há muito prometido “auto do povo”, ou seja um carro pequeno, econômico e barato, pelo qual o Sr. Hitler está ansioso e espera que represente para a Alemanha, o que os carros baratos representam para os Estados Unidos. Tendo falhado a criação de um modelo satisfatório de automóvel², o Sr. Hitler fez todo o possível no sentido de estimular a compra e o emprego de automóveis, isentando de impostos os novos carros, mandando construir novas estradas e melhorar o sistema de garages.
O carro do povo encontrou fortes oposições, inclusive a do Sr. Schacht, ministro da Economia Nacional, que segundo foi noticiado, combateu a ideia por considerar que a mesma implicava no desvio em demasia dos fundos para a compra de matérias-primas, e para maiores importações de gasolina e borracha.
Entretanto na pista de corridas de “Nürburgring”³, perto de Colônia, os carrinhos de quatro lugares, motores traseiros, acabamento interno de lã artificial e capotas de couro de peixe, estão correndo a uma velocidade de 50 milhas à hora (80,5 km/h) e fazendo 40 milhas (64,4 km) com um galão de gasolina, fator importante, considerando-se que na Alemanha a essência custa um marco e cinquenta “pfennings” (centavos de marco) o galão – 60 centavos em moeda americana. O preço do carro é de 960 marcos — 384 dólares ao câmbio atual.
O sistema de pagamento a prestações, que foi elaborado, permite a compra do carro por pessoas de várias categorias de salários. Um homem que ganhe 350 marcos mensais, por exemplo, pagará uma prestação mensal de 30 marcos, depois de uma entrada de 120 marcos. Entretanto, só depois do pagamento da quarta prestação o carro será entregue. O Dr. Ley, da Frente do Trabalho, que foi encarregado de cuidar daqueles que recebem pequenos salários, vai criar “bancos de economia para automóveis”, nos quais os trabalhadores depositarão semanalmente uma pequena parcela dos seus ganhos, mesmo que só consigam a entrega do carro depois de dois anos. Já foi montada uma fábrica4 para produzir carros do povo, embora o futuro comercial dos mesmos dependa de numerosos fatores, inclusive a atitude daqueles que se opõem, e os resultados das experiências técnicas que estão sendo efetuadas.
(1) – O termo “capotas de peixe” não faz muito sentido no caso, a não ser que esta foi a denominação que foi dada aos protótipos VW 30 construídos para o megateste de dois milhões de quilômetros. Estes carros tinham venezianas traseiras ao invés de janelas e isto pode ter lembrado as guelras de peixes, levando a esta denominação.
Uma outra possibilidade é que o redator da notícia tivesse imaginado que, ao invés de uma capota de aço, o VW 30 tivesse uma cobertura de couro do tipo “Fishleder” (couro de peixe); mas o único protótipo de carro popular com cobertura de couro, ao invés de aço, foi o protótipo feito para a Zündapp, que não vingou. Daí por diante só carros com carroceira em aço.
(2) – Aqui certamente a notícia se refere ao atraso do projeto do KdF como sendo uma falha, mas o projeto definitivo, já com suas janelinhas traseiras, foi apresentado no ano seguinte em 1938. Boa parte deste atraso se deveu ao limite de 990,00 marcos do III Reich que Hitler havia imposto para preço do carro — algo impossível de ser alcançado, mas que causou idas e vindas em várias definições do projeto em busca de se alcançar tal preço final, o que acabou consumindo um tempo precioso.
(3) – Os dois milhões de quilômetros de teste foram rodados num circuito misto de autoestradas (Autobahnen) e estradas de montanha, não se tem notícias de testes realizados em Nürburgring. Os testes foram feitos de maneira sigilosa com os carros sendo conduzidos por pessoal da “SS” – esquadrão especial alemão. O redator da United Press deve ter imaginado que Nürburgring seria uma pista “lógica” para a realização deste teste, só que não o foi.
(4) – Outra informação desfocada deste redator, pois a pedra fundamental da fábrica foi lançada em 26 de maio de 1938 e em 1937 só haviam protótipos como os VW 30.
Esta notícia foi uma dose grande de desinformação para os leitores do “A Notícia” – Fake News em grande estilo, sob o “patrocínio” da United Press.
Na Parte 2 concluirei a apresentação das notícias que falavam do “Carro do Povo” anos antes que ele se materializasse no Brasil.
Ressalto o excelente trabalho de pesquisa do Jason Vogel, com quem divido esta matéria como meu agradecimento.
AG
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