Como meus caros leitores já sabem, sou uma pessoa pragmática e direta. Tenho dificuldades em entender como é que 11 ministros da Suprema Corte, que tem como missão apenas decidir o que é ou não constitucional, passam sei lá quanto tempo discutindo se é possível a reeleição do presidente da Câmara ou do Senado se há um artigo na mesmíssima Constituição que diz que a reeleição é vedada. Parece mais coisa para professor de Português discutir do que de ministro da Suprema Corte.
Tenho muitos amigos estrangeiros, alguns moram aqui, outros no exterior, e sofro para explicar coisas desse tipo. Claro que a maioria já sabe que nestas paragens toda resposta começa com um “veja bem…”. Ou, um igualmente hilário “eu tenho certeza que eu acho que…” — nesse caso, imagino que a pessoa esteja convicta de sua dúvida. Só pode. Mas, na verdade, diz isso porque por terras tupiniquins tudo admite uma interpretação, embora o idioma seja tão claro quanto qualquer outro.
Mas, porém, todavia,contudo, entretanto, há coisas que realmente são dúbias na nossa legislação. Uma delas é a circulação de motos no corredor entre os carros, algo deveras nebuloso no Código de Trânsito Brasileiro, que não define regras. Ainda com estas dúvidas, e sem que tenha entrado em vigor a nova redação de alguns artigos do CTB, o editor de Testes do AUTOentusiastas Gerson Borini encontrou diversas placas ao longo das rodovias dos Bandeirantes e Anhanguera, no Estado de São Paulo vedando o trânsito de motos no corredor entre as faixas. Eu mesma vejo as mesmíssimas placas na Castello Branco, na altura de Alphaville até Jandira, há tempos.
Novamente, falta clareza. As placas dizem que o motociclista que andar no corredor pode ser multado. Afinal, é proibido ou não? Será que o “pode ser multado” é uma admissão de que não há fiscalização efetiva e isto pode ou não acontecer? Algo como “eu tenho certeza que acho que…”. Afinal, é permitido ou não? Se é, não cabe multa. Se não é, a pessoa tem que ser multada — não cabe o “pode ser multado”.
De novo, voltamos na questão das leis — temos muitas e com frequências elas colidem entre si. Seria necessário regulamentar o trânsito de motos nos corredores se a legislação já diz que deve-se manter uma distância mínima entre veículos? (artigo 192 informa que o motociclista não poderia deixar de guardar distância de segurança lateral e frontal entre o seu veículo e os demais). Mas, novamente, o CTB não diz que isso seja apenas em rodovias então, as multas que “podem” ocorrer nas rodovias “podem” ocorrer nas cidades? A minha lógica cartesiana me diz que não deveria ser necessária uma norma para regulamentar o trânsito nos corredores, mas nesse caso deveria ser alterada a norma da distância segura, não?. Só que no Brasil temos o “veja bem…”. Temos também a tal regulamentação. Fazem-se primeiro as leis, mas até que elas não sejam regulamentadas não entram em vigor — algo que pode levar anos. Afinal, por que se escrevem leis de forma a que dependam de outro passo posterior? Não seria possível já escrever a lei e ela entrar em vigor imediatamente? Acredito que sim. Mas nesse caso seria necessário fazer algo certo desde o início, em vez de capengar e depois tentar arrumar.
O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) não proíbe o uso de motocicletas entre as faixas de trânsito, mas o projeto de lei que culminou na Lei 14.071 foi aprovado em setembro pela Câmara dos Deputados e pelo Senado e sancionada com vetos em outubro. E aí vai um espóiler: ela não entrou em vigor, ainda – algo que só deve acontecer lá por abril de 2021. Alguns dos assuntos tratados na redação do projeto de lei acabaram sendo vetados pelo presidente da República por isso o próximo passo agora é que o texto final e os vetos sejam votados, novamente, no Congresso Nacional para então entrar em vigor.
O texto do relator, o deputado Juscelino Filho (DEM-MA), dizia que a proposta tem como objetivo “regulamentar o tráfego de motocicletas, motonetas e ciclomotores pelo corredor quando o trânsito estiver parado ou lento. Nessas situações, as motocicletas poderão trafegar entre os veículos, mas deverão transitar com velocidade compatível com a segurança dos pedestres e demais veículos”.
Obviamente, normas para isto atingem não apenas quem trafega sobre duas rodas mas todos os outros veículos que são impactados por isto.
Entre as bizarrices encontrei uma que supera muitas, muitas outras: questionado sobre a legalidade de multas aplicadas a motos nas rodovias, o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) diz que o CTB não prevê a circulação de motos no corredor, por isso ela estaria “implicitamente proibida”, mas reforçou aos motociclistas, em uma cartilha de 2009, que não havia restrição. O problema é que enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa “poder fazer assim”; para o administrador público significa “deve fazer assim”. Ou seja, mais uma vez inverteram a lógica e a legislação.
Ainda assim, há outras determinações. A nova lei determina que os motociclistas só poderão circular entre as duas faixas mais à esquerda e nunca entre a faixa da direita e a calçada e que é infração gravíssima o descumprimento das regras. Mas, claro, não é completo. Normas mais específicas, como a velocidade máxima permitida no corredor, precisam ser regulamentadas pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran). Algumas das regras propostas e que devem vigor a partir de abril de 2021 me geram novas dúvidas:
– Quando será permitido andar no corredor: quando o trânsito estiver parado ou muito lento;(aí esta que vos escreve pergunta; o que define trânsito lento? Uma estrada, com velocidade máxima de 120 km/h com trânsito andando a 90 km/h é trânsito lento?)
– Como será permitido: a passagem da moto no corredor deverá ser realizada em velocidade reduzida e compatível com a segurança de pedestres, ciclistas e demais veículos; (novamente, tenho dúvidas: afinal, qual é a velocidade que seria “compatível com a segurança dos pedestres e demais veículos”?)
– Onde será permitido: havendo mais de duas faixas de circulação, a passagem somente será admitida no espaço entre as duas faixas mais à esquerda, estando vedada a passagem entre a pista da direita e a calçada. Caso haja faixa exclusiva para veículos de transporte coletivo à esquerda da pista, esta será desconsiderada para fins deste dispositivo (haja exceção à regra. Cada vez que se complica muito fica difícil o cumprimento de uma lei).
A lei prevê também a possibilidade de se adotar áreas de espera para motocicletas à frente da linha de retenção dos demais veículos – aquele bolsão já comum em São Paulo. Mas, mais uma vez, tem pegadinha: para chegar nessa área, o motociclista tem de circular pelo corredor, passando por outros veículos o que já infringiria o artigo 192 do CTB. O recado é: pilote no corredor para chegar até a área de espera e ganhe uma multa. Algo como aqueles comerciais do “ligue já”.
Pragmática que sou, fui consultar números e encontrei um estudo publicado pela Universidade de Berkeley, Califórnia, nos Estados Unidos, que concluiu que rodar com motos no corredor, entre duas faixas de trânsito, pode ser relativamente seguro e com menor probabilidade de ferimentos ao usuário. Dos 6 mil acidentes de motos analisados entre junho de 2012 e agosto de 2013 naquele estado americano, 997 estavam relacionados a motociclistas andando entre os veículos, correspondendo a 16,6% do total.
Segundo o estudo, comparado aos outros usuários de motos, os motociclistas que se acidentam nos corredores têm menores chances de sofrer ferimentos na cabeça (9% ante 17%) e no torso (19% ante 29%). Tem também menor risco de sofrer acidente fatal — exatos 1,2% para os acidentes no corredor, e 3% para aqueles que não andavam no corredor. Uma razão que parece óbvia é que os motociclistas que estão entre as faixas tendem a estar mais devagar, pois rodam em tráfego congestionado — senão, ocupariam uma pista inteira, não?
Mas não é tão simples assim. Não basta andar no corredor para ter menos risco de acidentes. De acordo com o estudo, o “lane-splitting” (andar no corredor) pode ser consideravelmente seguro se o tráfego de veículos estiver a cerca de 80 km/h ou menos e o motociclista não exceder 24 km/h além da velocidade dos carros, caminhões e ônibus. Exclusivamente nessas condições. Ou seja, não adianta o trânsito estar a 80 km/h e a moto passar no corredor a 120 km/h. Resumindo, a diferença de velocidade entre as motos e os veículos a sua volta é o maior motivo para lesões e acidentes — mais do que a velocidade por si só. No entanto, o mesmo estudo apontou que a maioria dos motociclistas que trafegam no corredor (69%) excede a velocidade do tráfego em 24 km/h ou menos, mas 14% dos usuários do corredor circulam em velocidades que superam em 40 km/h a de outros veículos. No Brasil, diversos especialistas recomendam que a moto não circule a mais de 16 km/h acima da velocidade dos demais veículos.
No entanto, mesmo com esse estudo, vale a pena ressaltar que nos Estados Unidos em todos os Estados, exceto na Califórnia, é ilegal andar no corredor, de onde deduzo que deve haver estudos que concluam diferentemente deste de Berkeley. Outra diferença fundamental é que por lá motos de pouca potência são raridade, enquanto no Brasil são a ampla maioria.
Resumindo, talvez nem a nova lei traga luz a este cenário de sombras e eu continue sem poder explicar a meus leitores se moto no corredor nas estradas pode ser multado ou não, apesar das placas das concessionárias das rodovias indicarem isso em tom de ameaça. Como diria o jornalista francês Jean-Baptiste Alphonse Karr: “plus ça change, plus c’est la même chose” (“Quanto mais se muda, mais fica igual”).
Mudando de assunto: como não podia deixar de ser, meu comentário vai para o GP de Sakhir de Fórmula 1. Gostei da iniciativa de usar um mesmo circuito em semanas seguidas, mas com outro traçado. Certamente reduz custos para as equipes, sem tirar a emoção dos telespectadores. Claro que isso depende de como foi projetada a pista, mas em vários casos daria para incorporar esta novidade. Gostei muito da pilotagem do Russell e do Pérez — que tem qualidades. Pena que passou tanto tempo choramingando do companheiro de equipe, pedindo para que o Ocon lhe desse passagem mesmo quando mal conseguia acompanhar o ritmo do francês. Se tivesse se dedicado mais a dirigir como fez no domingo certamente teria conseguido mais pontos nos campeonatos e a vitória poderia ter chegado mais cedo. Quanto ao resultado da corrida, tenho várias impressões conflitantes sem descartar, é claro, uma treta. Pode não ser nada disso e ter sido apenas uma enorme, gigantesca, tremenda lambança da Mercedes, mas ainda não entendi como o inglês conseguiu fazer a melhor volta com um furo no pneu. Resumindo: gostei muito da corrida, mas não muito do resultado.
NG