A cultura dos carros esporte independentes, feitos em pequenas fábricas que caberiam dentro do depósito de parafusos da GM ou da Chrysler, foi largamente difundida pelos ingleses. Era muito comum cruzar com carros artesanais andando pelo Reino Unido, dada a quantidade de marcas existentes até pouco tempo atrás.
Lotus, Caterham, Ariel Motors, Morgan, dente várias outras, todas vieram de bravos visionários que construíram seus próprios carros e criaram um mercado consumidor capaz de absorver seus pequenos volumes anuais de algumas centenas ou poucos milhares de unidades.
A Itália deu sua contribuição neste nicho com o nascimento de diversos pequenos fabricantes independentes dos anos 50 para frente. A concentração de empresas especializadas em criar desenhos e carrocerias especiais, os chamados carrozzerie, ajudou na expansão do mercado de carros independentes. Intermeccanica, Bizzarrini, Cisitalia e Iso são bons exemplos do que os carrozzerie conseguiram ajudar a criar.
Cada um destes pequenos fabricantes tinha sua identidade própria, seguia seus princípios e criava automóveis como acreditavam que deveriam ser, longe do burocrático e muitas vezes incompreensível mundo dos gigantes da indústria, repletos de normas e padrões.
Muitas vezes, os gostos e pensamentos destes visionários acabam trombando de frente com a realidade do mercado consumidor, ferrenho por custos otimizados e produtos de alta qualidade com preços acessíveis. Fabricar carros fora de série de fato não é para qualquer um.
Fora do círculo Inglaterra e Itália, a cultura dos esportivos independentes foi menos marcante, mas não inexistente. Ao longo das décadas, muitos abriram e fechar as portas, mas sem antes deixar marcas que ficaram na história para que fossem lembrados por seus belos automóveis, feitos com paixão e dedicação.
Abaixo dez deles que merecem destaque, em ordem alfabética.
ALPINE
A francesa Société des Automobiles Alpine SAS, criada por Jean Rédélé em meados dos anos 50 na cidade de Dieppe, ao norte da França, foi uma das maiores forças do automobilismo francês. Partindo de Renaults modificados, a Alpine evoluiu até chegar aos seus modelos mais conhecidos.
O lendário campeão do Rali de Monte Carlo com o A110 e também com o seu antecessor, o A108, muito conhecido no Brasil pelo seu irmão distante, o Willys Interlagos, fabricado por aqui licenciado para a Willys Overland, a forma da pequena berlineta é inconfundível.
A proximidade da Alpine com a Renault vem do tempo da fundação, quando Jean manteve contato com a fábrica e conseguiu fornecimento de motores para seus carros. Em 1973, a Alpine foi comprada pela Renault e manteve o nome até os anos 90.
Tanto o A108 como o A110 tinham suas características próprias que, devido ao bom projeto, deixavam o carro com um ótimo equilíbrio entre tração e dirigibilidade. O motor traseiro, como no Fusca e nos 911, davam ao carro uma boa tração, mas exigiam um pouco mais de habilidade por parte dos motoristas.
Mesmo sendo comprada pela Renault, a marca manteve seus projetos de carros esporte, como o A310 que viria a substituir as Berlinetas. O novo modelo manteve o layout do motor traseiro, até mesmo incorporando uma unidade V-6 ao longo de sua existência.
A Alpine representa bem o que os pequenos fabricantes traziam ao público: opções únicas, com personalidade e fora dos padrões das fabricações de automóveis em massa.
CUNNINGHAM
Briggs Cunningham era um visionário norte-americano de Ohio, com uma paixão sem limites pelas competições. Em respeito ao medo de sua mãe com os perigos do automobilismo, ainda no fim dos anos 20, Cunningham disputou muitas provas náuticas com seu padrasto, com relativo sucesso.
Depois do falecimento de sua mãe, Briggs partiu para uma carreira como piloto, inicialmente correndo com carros adaptados e outras criações próprias, como os famosos Cadillac que correram em Le Mans em 1950, os quais já contamos aqui.
A busca por um carro que fosse competitivo, mas que fosse feito do jeito que ele queria, levou à compra da empresa Frick-Tappett Motors, que se transformou depois na empresa que levava seu nome e produziria pequenos esportivos.
Os primeiros Cunninghams, chamados de C-1 e C-2, foram construídos para competições, depois seguido pelo modelo C-3, que teve uma produção de pouco menos de trinta unidades necessárias para homologação da versão de corrida. Enquanto o C-1 era equipado com motor Cadillac, os próximos modelos seria feitos com o novo Chrysler Firepower de câmaras hemisféricas.
Seus modelos foram feitos apenas de 1951 a 1955, com pouco menos de quarenta unidades no total, mas representaram a força de um homem decidido a vencer com seu próprio carro. Em um mercado dominado pelas Big Three (Três Grandes – GM, Ford e Chrysler), o que Briggs fez foi incrível, e além de conseguir vencer nas competições, deixou carros de passeio incríveis.
DONKERVOORT
A empresa criada por Joop Donkervoort nos anos 70 está nesta lista por uma questão interessante. Tudo começou na pequena vila de Tienhoven, na Holanda, quando Joop iniciou a produção de carros do tipo kit car, que são como réplicas mas que geralmente são vendidas parcialmente desmontadas.
Donkervoort montava estes kit cars de réplicas do lendário Lotus Seven de Colin Chapman. O Seven por si só é um conceito mágico, trazendo a leveza e simplicidade com o verdadeiro prazer em dirigir. Junto com o Cobra de Carroll Shelby, talvez seja o carro mais replicado do mundo.
O motivo da Donkervoort estar nesta lista é que, mesmo tendo começado sua jornada como um fabricante de réplicas de Seven, com o passar do tempo, a empresa deu sua própria interpretação do que deveria ser um Seven moderno.
Ao longo dos anos, o projeto foi evoluindo, mudando, tomando uma nova forma, mas até hoje, vendo um modelo D8 (o mais atual da fábrica), sabemos sem sombra de dúvida que é um Donkervoort, e ao mesmo tempo, sabemos que tem um Lotus Seven ali.
Esta combinação de moderno com o clássico, a concepção clássica do Seven de longo capô, cockpit recuado e rodas dianteiras expostas, não mudou, e está mais atual do que nunca. E isto, poucos conseguem fazer com a honestidade e capacidade que a pequena fábrica holandesa alcançou.
ISDERA
A Alemanha é o berço de boa parte das grandes empresas automotivas dos tempos modernos, mas que não foi fácil para os pequenos construtores. No começo da era do automóvel, o país viu inúmeros pequenos fabricantes, como Adler, Horch, DKW e Maybach crescerem, mas também fecharam as portas ou foram incorporados por outras marcas.
A cultura que cresceu bastante no Reino Unido não foi tão adepta aos germânicos. Assim como a Ruf, que contamos aqui no AE, muitos partiram para a preparação de carros das três grandes, Mercedes-Benz, Audi e BMW.
Uma empresa com o complicado nome de Ingenieurbüro für Styling, Design und Racing, traduzindo do alemão para Companhia de Engenharia para Estilo, Design e Competições, ou apenas abreviando para ISDERA, manteve-se firme, fabricando seus próprios modelos.
Criada oficialmente em 1981 por Eberhard Schulz, um visionário projetista que ainda nos anos 60 já havia construído seu próprio modelo do GT40 e teve passagem pela Porsche, como forma de colocar em produção os carros de seus sonhos. Pouco tempo depois do lançamento da mraca, os primeiros projetos já estavam saindo do forno.
Um pequeno Spyder foi o primeiro, logo depois veio o mais conhecido Imperator 108i, primo do conceito CW311 da Mercedes. Schulz teve uma relação boa com a Mercedes, que foi fornecedor de motores para seus projetos. Na verdade, a Mercedes até usou a Isdera como uma forma de aplicar seus motores em carros exclusivos, sem ter que propriamente fabricá-los.
O mais famoso Isdera pode ser considerado o Commendatore 112i, supercarro dos anos 90 que também tinha motor Mercedes, um V-12 de 6-litros, que futuramente seria usado no Pagani Zonda. Até hoje a empresa trabalha em projetos especiais (geralmente em sigilo), o que significa que a qualquer momento um novo carro pode ser lançado.
MONTEVERDI
Peter Monteverdi, nascido em Binningen, na Suíça, foi o responsável por colocar o país no mapa mundi automotivo do período pós-Guerra. Com origens italianas, Peter tinha a ambição de ser piloto, mas com uma curta carreira por conta de acidentes, partiu para a fabricação de carros, seu segundo grande sonho.
Depois de alguns modelos especiais de corrida, a Monteverdi direcionou seus esforços para criação de carros maiores, grand turismos potentes, em linha com outros modelos como Aston Martin e Ferrari. Utilizando os serviços de estúdios de design italianos como a Frua e Fissore.
Os carros faziam uso de motores americanos de grande cilindrada, especialmente os Chrysler V-8, tendo versões com o enorme 440 pol³ e também com o lendário HEMI 426 pol³. A linha chamada High Speed era voltada principalmente aos GTs, mas também teve um grande sedã de quatro portas.
O carro mais marcante da empresa foi o HAI 450, um supercarro de 1970 equipado com motor central HEMI, capaz de chegar perto dos 300 km/h. Seria o modelo para competir com os principais carros esporte da Europa, com Ferrari e Lamborghini na mira.
Ao longo de quase vinte anos de vida, a empresa foi de pequenos carros de corrida até grandes sedãs, passando por SUVs de luxo (próprios e também versões especiais da Range Rover) e um supercarro capaz de fazer frente ao Miura. Isto, sem falar de ter participado na Fórmula 1 em 1961 e 1990.
Peter não desistiu de sua empresa até o final da vida, tentou diversos nichos, sempre com objetivo de ter carros exclusivos, mas o mercado cada vez mais duro e as crises econômicas e de combustíveis jogaram contra os grandes motores V-8 de seus automóveis.
PANOZ
A empresa que leva o nome da família Panoz é uma das que aventuraram a fabricar carros esporte nos Estados Unidos nos anos 90, em meio aos grandes conglomerados da GM, Ford e Chrysler. Dan Panoz, filho do conhecido Donald “Don” Panoz, queria investir em competições com carros próprios.
No começo, Don Panoz, grande nome do ramo farmacêutico, achava que seria só uma perda de tempo e dinheiro passageiro, mas ajudou a investir no negócio. E deu certo. A Panoz iniciou a produção de carros esporte com o modelo Roadster, criado inicialmente por Frank Costin que vendeu os direitos do projeto à Panoz.
Depois vieram modelos como o Esperante, que ficou conhecido mundialmente pela sua versão de corrida chamada Esperante GTR-1, um modelo GT que disputou muitas provas de campeonatos de endurance com relativo sucesso. Até mesmo uma versão híbrida foi feita, que ainda contaremos aqui no AE.
Outros modelos vieram depois do Esperante, mas boa parte dos investimentos de Panoz relacionados ao mundo automotivo foram para criação e manutenção de novas categorias, como a American Le Mans Series, a versão norteamericana do campeonato de endurance europeu, e também a criação de projetos especiais, como o Deltawing que contamos aqui no AE no passado.
Panoz era um verdadeiro entusiasta. Depois de entrar na onda do projeto de seu filho, viu-se intimamente ligado ao automobilismo. Seus carros de passeio nunca fizeram grande sucesso, talvez por seu design extravagante e concorrência forte de Mustangs e Corvettes, e mesmo assim ele continuou a trazer novas versões. Seu pequeno público era fiel. Mesmo com poucas vendas, a marca continua viva, apostando em projetos ousados no automobilismo e na fabricação de carros de corrida para outras categorias.
Infelizmente Don Panoz faleceu em 2018, mas a empresa continua viva, de vez em quando com novidades nos carros de passeio.
PEGASO
Uma marca espanhola fabricante de caminhões, ônibus e até veículos militares entrou nessa lista por conta de um curto período da história em que apostaram nos carros esporte. Wifredo Ricart foi o criador da marca, que no passado esteve relacionado diretamente com Enzo Ferrari, o qual era seu subordinado na Alfa Corse e se odiavam, e acabou resultando na demissão de Enzo da Alfa e o nascimento da Ferrari como marca própria.
Ao sair da Alfa Romeo no final do período da Guerra, literalmente fugido para a Espanha com medo de ser morto como alguns colegas de trabalho, Ricart foi contratado para dirigir a estatal ENASA, fabricante de veículos pesados que começaram a receber a marca Pegaso.
Para renovar a fábrica e trazer novas tecnologias para os produtos, Ricart iniciou o projeto de um carro esporte com tecnologias de ponta para a época, supervisionado por ele próprio, que contava com uma boa educação técnica de engenheiro formado. Desta forma, a equipe de projetos conheceria novas técnicas e formas de produção.
O primeiro carro feito foi o pequeno Z-102, um esportivo de dois lugares com um moderno motor V-8 de apenas 2,5-litros, todo em alumínio, duplo comando de válvulas e cabeçotes com câmaras hemisféricas. A transmissão de cinco marchas era montada no eixo traseiro (transeixo), com a lubrificação sendo feita por um duto passando dentro do eixo de transmissão que levava o óleo do motor até a unidade traseira.
Poucas unidades do Z-102 foram feitas, com diversas variações de carroceria e também versões para corrida. Foi um dos carros mais modernos de seu tempo, mas que foi morto pelo governo espanhol. A estatal não deveria gastar dinheiro em carros esportivos, e sim focar na produção de veículos pesados.
Uma curiosidade: um ex-funcionário da ENASA que também trabalhou no projeto do Z-102 foi Rigoberto Soler, ex-professor da FEI e que foi responsável pelos principais projetos que trouxeram grande reconhecimento à Faculdade nos anos 60 e 70, como o FEI X-1 e o FEI X-3.
TOMMYKAIRA
A marca japonesa criada em 1986 na cidade de Kyoto, no Japão, leva o nome de seus dois fundadores combinados: Yoshikazu Tomita e Kikuo Kaira. Inicialmente uma empresa dedicada à preparação de carros de terceiros, com o tempo, os japoneses criaram seus próprios modelos.
Para uma empresa que começou preparando modelos da Mercedes-Benz, Nissan e Subaru, partir para a fabricação de seu próprio modelo foi um grande passo. Diferente da Ruf, que seus modelos próprios ainda na base são Porsches, a Tommykaira criou um projeto próprio de carro esporte, chamado ZZ, em meados dos anos 90.
O ZZ era um pequeno esportivo de dois lugares, conceitualmente similar a um Lotus Elise, e foi fabricado por quase quinze anos, passando por algumas evoluções e detentores de seus direitos. O projeto era japonês, mas a fábrica era na Inglaterra.
Ao longo dos anos de produção, a empresa criou algumas variações do ZZ, que ainda teve a migração para a Leading Edge Sports Car Company, empresa que assumiu a fabricação do carro (renomeado para Leading Edge 190 RT) depois de uma crise que a Tommykaira enfrentou no começo dos anos 2000, por conta dos altos custos logísticos de fabricar o ZZ na Inglaterra e enviar para o Japão, seu principal mercado consumidor.
Atualmente, a Tommykaira voltou ao mercado, em parcerias com outras empresas japonesas, com uma versão elétrica do ZZ totalmente reestilizada.
VECTOR
Outro nome desta lista vem dos Estados Unidos, a Vector Motors, criada por Gerald Wiegert. Nos anos 70, ele montou a empresa chamada Vehicle Design Force para construir nos EUA um carro esporte de alto nível. Os conceitos criados por ele remetem a um supercarro que seria equipado com motor rotativo tipo Wankel e seria chamado de The Vector.
Com o desenrolar do projeto alguns anos depois, a empresa foi renomeada para Vector Aeromotive e o The Vector passaria a ser o Vector W2, que por sua vez, passaria ser o W8 quando entrou em produção em 1989. O motor Wankel havia sido descartado em prol de um V-8 Chevrolet biturbo. Menos de 20 foram feitos no total.
Conseguindo investidores para seu negócio, Gerald teria verba para continuar a investir em projetos, mas ao longo do tempo sem conseguir firmar um mercado consumidor para os carros caríssimos, os investidores passaram de ajuda à problema. Um belo dia, barraram a entrada de Wiegert na empresa, dizendo que ele poderia apenas retornar se entregasse o controle da marca e ficasse apenas responsável pelo design, o que não foi aceito. Obviamente, foi demitido de sua própria empresa.
A Vector trabalhou em alguns modelos depois da saída de Wiegert, como o M12 com motor Lamborghini V-12, quando a empresa Megatech assumiu a Vector (a mesma Megatech que comprou a Lamborghini em 1994 e revendeu para a Audi em 1998, ganhando milhões de dólares).
Anos depois, Gerald Wiegert conseguiu recuperar sua marca, renomeada para Vector Supercars e depois Vector Motors, que em 2007, apresentou um conceito chamado WX-8 que até hoje está “em desenvolvimento”. Ao longo da história, poucos Vectors foram fabricados, mas foram marcantes para a época e seu criador lutou (e continua lutando) por seus carros.
VENTURI
A marca registrada no principado de Mônaco, criada pela dupla francesa Claude Poiraud e Gérard Godfroy, fabricou GTs de motor central dos anos 80 até 2000. A proposta de criar modelos próprios com carrocerias elegantes e bom desempenho direcionou os esforços de Poiraud e Godfroy por anos.
Boas relações com a Renault deram a eles fornecimento de motores, como o famoso PRV que vimos em inúmeras aplicações, do DeLorean até o carro que bateu os 400 km/h em Le Mans.
Os modelos mais conhecidos hoje são os 400GT e Atlantique dos anos 90, sucessor dos modelos 200 e 260. A Venturi ficou mundialmente conhecida quando seus carros entraram no automobilismo, tanto com uma categoria monomarca como quando participaram do campeonato chamado BPR Series dos anos 90, onde os Atlantique enfrentaram cara a cara Ferraris, Porsches e Lotus, com relativo sucesso.
Ao longo dos anos 80 e 90 a empresa fabricou seus carros em pequena quantidade, lutando contra os custos e o duro mercado de carros esporte, onde não só os pequenos fabricantes disputam clientes, mas também os grandes estão no jogo, com armamento pesado, e geralmente, com os custos à favor.
Por conta dos custos e dificuldades financeiras, a Venturi foi vendida em 2000 para Gildo Pallanca Pastor, empresário de Mônaco, que mudou o foco da empresa para criação de carros elétricos. Foi, inclusive, uma das primeiras equipes a entrar na Fórmula E.
MB