Se eu fosse o presidente mundial da Ford, também fecharia as fábricas do Brasil. Aliás, qualquer executivo responsável faria o mesmo. Tenho visto alguns especialistas do setor indignados com o que consideram falta de visão da marca, por encerrar as unidades de Camaçari, BA (onde são feitos EcoSport e linha Ka), Taubaté-SP (motores e transmissões) e Horizonte, CE (Troller T4).
Para eles, não faria sentido a empresa gastar US$ 4,1 bilhões para fechar as três unidades, perder vendas nos modelos restantes (devido à queda da confiança dos clientes) e abrir mão do que já foi investido nos projetos que estavam em gestação, além da possibilidade de poder recuperar mercado com esses lançamentos.
Sim, a engenharia local da Ford não sabia da decisão e, por isso, já estava em fase avançada do desenvolvimento de três SUVs (inclusive o novo EcoSport), que seriam lançados até 2023.
Sou obrigado, no entanto, a concordar com a direção da Ford. Todos os contratempos acima não são suficientes para compensar os seis motivos que obrigaram a empresa a decidir pelo fim da produção no país. Vamos a eles.
1) Mercado brasileiro
A vocação do Brasil ainda é de hatches e sedãs compactos, que representam 59% do segmento de automóveis. É a fatia do mercado onde estão as menores margens de lucro. Para complicar, 67% das vendas da Ford estavam nessa faixa.
Além disso, o país consumiu em 2020 apenas 2 milhões de veículos, pouco perto dos 3,8 milhões de 2013. Com os sete anos de queda ou baixo crescimento do PIB, a ociosidade da indústria acima dos 50% e a crise agravada pela pandemia, alguns analistas estimam que levaremos cinco anos para atingir 3 milhões de unidades.
Por último, há o problema do tamanho do mercado da Ford brasileira: hoje representa apenas 4,1% do que a empresa comercializa no mundo.
2) Custo Brasil
Se o mercado nacional não for suficiente para assustar um executivo americano, vamos ver como ele encararia nosso ambiente de negócios. O chamado “custo Brasil” não é uma desculpa usada pela indústria para implorar por subsídios. Esse custo é real e impacta pesadamente todas as empresas nacionais. É a combinação de diversos fatores, mas dois deles são os mais críticos: imprevisibilidade jurídica e insanidade tributária.
Só a parte tributária tem dois efeitos muito nocivos. O primeiro é o alto custo do carro por causa dos impostos. Não se trata de uma defesa dos fabricantes de carros, pois o problema afeta a economia como um todo. Quem não soube de gente que foi aos EUA atrás de um enxoval ou de eletrônicos porque era mais barato do que comprar aqui, mesmo com o custo da viagem?
O imposto representa 6,8% do preço de um carro nos Estados Unidos (Califórnia), segundo estudo da Anfavea. No Japão é menos de 9,9%, na Europa varia de 16% a 18% e na Argentina e Chile fica em 20%. No Brasil é de 30,4%, na média.
O segundo efeito nocivo é a complexidade desses tributos. Há tantas regras, benefícios e exceções que algumas marcas chegam no Brasil a ter um departamento contábil maior do que o time da engenharia. É um sistema tão intrincado que a consultoria Becomex calcula que 50% das empresas exportadoras do país poderiam pagar menos imposto se soubessem explorar todas as filigranas jurídicas nas esferas municipal, estadual e federal.
Sobre a imprevisibilidade, imagine explicar a um exectivo-chefe alemão ou japonês que as regras do ano passado já não se aplicam mais porque algum governo mudou os planos ou não cumpriu o prometido.
Veja o caso do estado de São Paulo, que de uma hora para outra e em plena crise aumentou o ICMS das lojas que vendem carros usados em 207%!
Outro exemplo é que Audi, BMW e Mercedes não sabem quando o governo brasileiro devolverá R$ 290,7 milhões de créditos referentes ao investimento por terem montado suas fábricas aqui.
Dá para fazer planos de longo prazo em um ambiente como esse, considerando que uma empresa que lança um carro totalmente novo hoje teve de iniciar o projeto há quatro anos?
Portanto, não é de se espantar que a Mercedes-Benz também anunciou o fechamento de fábrica um mês antes e que pelo menos outras duas marcas já estejam considerando fazer o mesmo.
3) Transformação global do setor
A indústria automobilística vive a maior transformação da sua história. Goste-se ou não dos veículos eletrificados, eles são o futuro desse segmento nos grandes mercados, como Europa, EUA, China e Japão. O país que não puder oferecer esse produto nem tiver uma política industrial que fomente essa tecnologia está fora do jogo global. É o caso do Brasil.
Mesmo que o mercado nacional não esteja preparado para consumir essa tecnologia agora, nossa indústria precisa estar apta a produzi-la para a exportação, que é a vocação de qualquer negócio moderno e globalizado. Temos isso hoje no nosso agronegócio, um dos mais evoluídos do planeta, mas não na indústria automobilística.
4) Sucessão de erros da Ford local
A partir daqui, os motivos do fechamento das fábricas deixam de ser culpa do Brasil e passam para a conta da Ford. E o maior deles está nos desacertos estratégicos da marca no Brasil. Afinal, o mercado interno e o custo Brasil são os mesmos para os demais fabricantes e vários deles não só permanecem fortes como anunciaram investimentos para o futuro.
Entre os erros mais conhecidos da Ford está a Autolatina, o casamento com a Volkswagen de 1987 a 1996. Parecia uma boa ideia unir a excelência em engenharia dos alemães com a expertise financeira dos americanos. No início, elas ganharam um bom dinheiro, mas a diferença cultural fez tudo naufragar, especialmente porque a VW mandava na joint-venture por ter 51% das ações. Como resultado, a Ford saiu menor do que entrou: sua participação de mercado caiu de 21% para 11%.
A marca também pecou em vários momentos na renovação dos produtos. A picape compacta Courier morreu em 2013 sem deixar uma sucessora num momento em que Fiat Strada e VW Saveiro eram 5º e 15º lugar do ranking de vendas. Já o Fiesta saiu de linha enquanto a VW migrava do básico Gol para o sofisticado Polo e a GM trocava o velho e espartano Onix por uma nova geração que tem Wi-Fi e estaciona sozinha.
Talvez a pior decisão se deu com o EcoSport. Nasceu como um sucesso espetacular em 2003 e deu início à atual febre dos SUVs compactos. Só que a concorrência evoluiu e a Ford não conseguiu sanar seus maiores problemas nas renovações de 2012 e 2017.
5) Estratégia da Ford mundial
Em 2018, a Ford iniciou uma reestruturação mundial de olho na lucratividade e no crescimento sustentável. Haveria grandes cortes de empregos pelo mundo e uma nova estratégia: abandonar os automóveis de passeio (com demanda em queda) e focar em SUVs, picapes (onde estão as maiores margens de lucro) e elétricos (onde estão os futuros clientes).
Só isso já explica por que ela deixou o Brasil e permaneceu na Argentina. Se a Ranger fosse fabricada aqui e não em Pacheco, certamente seriam nossos hermanos que estariam lamentando. Para nosso azar, porém, a Ford brasileira produzia a linha Ka (que não dava lucro) e o EcoSport (cujas vendas estavam em queda).
E lembra aqueles dois SUVs que foram desenvolvidos no Brasil? Nada impede que sejam reaproveitados e produzidos na Argentina ou, mais provável, no México. Faz sentido, pois carros mexicanos não pagam imposto de importação aqui e têm produção muito mais barata – o custo de fabricar um veículo brasileiro é até 44% maior do que no México.
Para complicar o cenário, a Ford local nunca teve o mesmo prestígio e autonomia de outras filiais brasileiras, como a FCA (que tem no Brasil um dos maiores mercados da marca no mundo) ou da VW (que tem tradição de desenvolver veículos para a matriz). É o que explica por que várias decisões que deveriam ser da Ford brasileira ficavam a cargo da sede, como preço dos carros, por exemplo.
6) Histórico dos resultados da marca
Se você, como presidente mundial da Ford, ainda não está totalmente decidido após ouvir tudo isso, talvez ceda ao último argumento. Imagine que alguém lhe traz o arquivo com o histórico dos últimos 40 anos antes de decidir se dará mais uma chance à unidade brasileira.
Primeiro você descobre que a filial já esteve perto da falência no início dos anos 80 (por isso mergulhou de cabeça na Autolatina). Depois, constata que ela novamente quase fechou as portas no fim dos anos 90, quando foi salva pela dupla EcoSport e o presidente-celebridade Antônio Maciel Neto, aquele que pagava R$ 100 a quem testasse um Ford e comprasse o concorrente. Por último, você lembra que a filial está dando prejuízo desde 2013.
Então me diga: o que você faria no lugar do presidente da Ford?
ZC