Há 53 anos era lançado o filme de ficção intitulado “Se meu Fusca falasse”, com estrondoso sucesso. Tal lembrança serviu-me de inspiração para copiar o tema, trazendo-lhe para o mundo atual, totalmente desajustado.
São incontáveis os amigos e amigas que procuram o socorro da análise. Bendito Sigmund Freud! Por que não o automóvel, tão incompreendido, tão desejado, tão odiado e, tão injustiçado, também, se pudesse falar, não o faria?
Agaranto, como diria o caboclo nordestino, que ele também procuraria os psiquiatras ou, mais, suavemente, os analistas.
Cabe a nós, que temos o privilégio de escrever para a mídia, promover esta possibilidade, inclusive, amenizando, com este hiato, as monótonas crônicas sobre o assunto trânsito.
Pois vou tentar esta invasão no mundo da ficção, afinal o papel aceita tudo. Vamos ao tema.
O automóvel, cansado de ser injustiçado, logo ele que o Brasil tem, na sua indústria, dos maiores fatores de sucesso de nossa economia, resolveu recorrer à análise. No seu caso, aconselhado pelos especialistas, para se adaptar ao mundo em que vivemos.
Aconselharam-no a procurar um urbanista, de reconhecida competência. Sugeriram-lhe o urbanista Jaime Lerner, considerado por mim o melhor do mundo.
Recebido com a fidalguia que o caracteriza, embora assustado por se tratar de um cliente inimaginável, foi colocado à vontade e, ao lhe perguntar de que se queixava, pronunciou-se (por não se tratar de um ser humano, vou evitar o verbo falar, privilégio nosso):
“Vivo perseguido por infâmias e ingratidões, logo eu que, segundo o mestre inglês Colin Buchanan, sou assim definido: ‘O veículo a motor é uma notável invenção, tão desejado que se inseriu indubitavelmente numa grande parte de nossas atividades. Não existe nenhuma possibilidade de se reverter este quadro.’
É graças a esta definição sincera do mestre Buchanan que encontro consolo para existir e, além disso, sou acusado:
De impor a minha passagem através da cidade, reclamando linhas claras e desimpedidas do fluxo de tráfego;
De criar problemas de estacionamento, requerendo novas formas de resolvê-las;
De criar problemas de interseção que requerem novos sistemas de movimento;
De criar problemas de intercâmbio modal que requerem novos sistemas de conexão;
De desgastar uma cidade ou promover novas formas construtivas;
De poder destruir a velha arquitetura ou poder colocá-la a seu serviço;
De requerer muitas indicações de destino que sejam de desenho simplificado e inteligente;
De dar origem à confusão da forma urbana, porém posso criar uma nova ordem geral desta forma.”
Ao ouvir este desabafo, baseado nas considerações do urbanista P.D. Spreiregen, em seu livro “Compêndio de arquitetura urbana”, o competente “analista” limitou-se dizer:
“Ciente destes fatos, adaptei Curitiba à existência do automóvel. Agindo na distribuição do uso da terra e criando um meio de transporte de massa capaz de retirar o habito do uso do automóvel, infelizmente soluções de urbanismo estático, precisando, para se manterem atualizadas, da presença do urbanismo dinâmico da engenharia de tráfego.”
E, prosseguindo, sugeriu-lhe procurar um técnico neste assunto, agora enfocado.
Surpreso com a sinceridade do ilustre “analista”, o automóvel aceitou a sugestão manifestando a sugestão de um nome. De maneira suspeitíssima e, demonstrando certo narcisismo do autor desta crônica, disse-lhe: “Procure o Celso Franco, hoje recolhido ao seu lar, que ele mesmo classifica como o seu ‘gueto’, a quem dedico uma amizade sincera desde 1972. Eu o considero, entre os diretores de trânsito com quem convivi, o único que com seu olhar humanístico enxerga o fundamental: o trânsito como parte da questão mais ampla que é a mobilidade urbana, conforme escrevi no prefácio de seu livro ‘Trânsito como eu o entendo’, em 2008”.
Infelizmente, para ser fiel ao aconselhamento de Alberto Dines, o meu primeiro redator-chefe no Jornal do Brasil, em 1968, de que escrevesse pouco para ser lido, devo interromper aqui esta análise do automóvel, continuando numa segunda crônica.
Até lá, daqui a quinze dias.
CF
Celso Franco escreve quinzenalmente no AE sobre questões de trânsito.
*Esta ilustração é uma propaganda do Volkswagen Eos (2005-2014), um cupê-conversível, cujo balão diz: “Às vezes tenho a sensação de ser um conversível”.