Este causo foi enviado espontaneamente por Rafael Barroca Silva, leitor do AE e desta coluna, a quem muito agradeço. Certamente é uma narrativa diferente das demais por se tratar de fatos que lhe foram contados por seu pai.
AG
O VW Fusca de meu pai
Por Rafael Barroca Silva
Tempos antes de eu nascer (em 1993), meu pai comprou seu primeiro carro, um Fusca 1300 branco, 1975. O estado do carro era sofrível: motor cansado, no lugar do assoalho havia tábuas, e vários problemas na tapeçaria e na lataria.
Mas, como o preço estava bom, o negócio foi feito. Comprou o carro e foi arrumando-o aos poucos. No início, foi feito um serviço para poder andar no carro (assoalhos novos ). Também, foram colocadas rodas de Brasília e borrachões nos para-choques, além de bancos mais confortáveis e um volante menor.
O motor precisou ser retificado uns seis meses depois da compra, pois no trajeto entre Presidente Venceslau, onde morávamos, e Presidente Prudente (45 km) queimava cerca de meio litro de óleo. Na estrada ficava um denso rastro de fumaça azul, ainda mais nos dias frios. No porta-malas sempre havia uns frascos de óleo Havoline, sempre tinha que ir completando.
Mas a retífica foi uma “ressurreição” para o besouro. A oficina, em Venceslau mesmo, trabalhou muito bem (embora para a usinagem eles mandassem o motor para Prudente), e o resultado ficou excelente. Meu pai se lembra vagamente de o mecânico ter dito que ia dar uma “melhorada” no motor, mas não sabe exatamente o que foi incrementado (hoje eu suponho que tenha sido aumento da cilindrada). Motor pronto, instalado, era hora de “amaciá-lo”.
Um episódio curioso aconteceu pouco tempo depois:
Cerca de duas semanas após a retífica, faleceu um tio de uma conhecida de meu pai, em Deodápolis, MS. Ela pediu que ele a levasse ao velório, junto com alguns parentes. Meu pai prontamente atendeu, mas estava um tanto receoso de rodar um longo trecho (310 km) com o motor retificado há alguns dias. Passou na oficina e consultou o mecânico, que disse: “lasca o pé! Quando chegar, traz aqui pra gente dar uma regulada. É bom que já amacia o motor”.
Assim foi feito. Pegaram a estrada. Se as rodovias do Mato Grosso do Sul são ainda hoje precárias em alguns locais (como, por exemplo, capim de um metro no lugar do acostamento, falta de faixas na pista, etc.), mais de 25 anos atrás eram mais selvagens ainda. E o Fusquinha foi, valente, com cinco pessoas a bordo. Meu pai conta que o motor ficou tão bom que até ultrapassava Monzas na estrada. E ele tinha colocado tubos de escapamento mais grossos, que davam um ronco mais grave. O Fusca foi e voltou sem dar problemas.
Evidente que nem tudo eram flores. Na verdade, a relação do meu pai com o Fusca era de amor e ódio. Frequentemente alguma coisinha dava um problema, tinha que fazer algum reparo. Coisas que irritavam eram os mecanismos da trava da porta e da manivela do vidro, que ele aprendeu a desmontar e consertar. Como em muitos carros, o lado que mais dava problema era o do passageiro – caronas nunca cuidam do carro como o dono, não é? Ele se arrepiava quando alguém fechava a porta com força ou manuseava a manivela do vidro com brutalidade.
Meu pai é do tipo curioso. Muita coisa ele mesmo fazia no carro. Aprendeu muita coisa com o Fusquinha. De uma forma inteligente, e buscando poupar dinheiro, aprendeu a regular as válvulas, e fazia com um pedaço de lata de cerveja, dado que não tinha (acho que nem conhecia) o cálibre de lâminas. Sempre depois de pegar uma estrada mais longa, ou acelerado bem o motor por algum tempo, fazia a regulagem – ficava igual a um reloginho.
Na parte de ignição mexia de vez em quando, e até já levou um choque violento, provavelmente ao tocar em algum fio da bobina ou distribuidor. O mais avançado que ele fez no motor foi desmontar o carburador para limpar. “Uma vez pra nunca mais”, segundo ele. Até hoje não sabe como conseguiu montar aquilo novamente. Até brinca que quando terminou, ficaram algumas pecinhas sem encaixar, funcionou e ficou assim mesmo – “dava pra montar outro carro com isso!”. Isso porque era um modesto Solex PIC 30.
Mas que o Fusca quebrava, quebrava mesmo. Numa manhã de domingo, meu pai, minha mãe (grávida de mim) e um amigo estavam indo para a casa de amigos em Santa Mercedes, SP. Não é tão longe, pouco mais de 70 km. Mas eis que na rodovia (mão dupla), um forte ruído de coisa batendo é ouvido no motor: “rátátátátá…”! Imediatamente meu pai desligou o motor e encostou. Nem quis muito tentar resolver, pois o barulho anunciara problema grave no motor. Hoje fico pensando como as pessoas resolviam as coisas antes do celular e internet.
Apareceu uma Kombi escolar que levou minha mãe junto com o amigo de volta para a cidade, que ficou encarregado de pedir ao mecânico o socorro. Na oficina, foi descoberto que um pedaço da válvula caiu dentro do cilindro. Meu pai não sabe precisar hoje o tamanho do dano, nem por quanto ficou a brincadeira. Mas o motor, ao fim, foi reparado, voltando ao fôlego anterior.
Um caso mais significativo foi, entretanto, quando o Fusca capotou no trajeto entre Presidente Venceslau e Presidente Prudente, na época em que a rodovia ainda não era duplicada; no carro meu pai e um amigo. A causa do acidente começou bem antes, pois já há alguns dias era necessário um reparo no sistema de freios. Meu pai sabia que os cilindros de freio estavam com problema de vazamento, mas na cidade não tinha muito problema, pois o fluido estava constantemente trabalhando.
Mas ele se esqueceu que, na estrada para Prudente, com velocidade constante e pouco uso dos freios, o fluido vai vazando e baixando. Eis que, chegando em Prudente, à frente tinha um caminhão parando para uma lombada que havia na altura do Ceasa. Meu pai vinha atrás, ainda em velocidade, e quando foi usar o freio, cadê? Pisou, pisou e nada! Tentou a faixa contrária, mas uma grande caminhonete vinha acelerando após a lombada. A única reação no momento foi ir mais à esquerda ainda, saindo da pista e entrando numa área aberta de chão batido, com graminha rasteira. O Fusca inclinou-se lateralmente para a esquerda, meu pai conseguiu mantê-lo em duas rodas por alguns metros, mas a capotagem foi inevitável.
Ele se lembra de ver o chão rodando por cima três vezes, antes do veículo parar de lado, sobre o flanco. Não se machucaram feio, apenas arranhões e hematomas leves. Tiveram que sair pelo vidro traseiro, que tinha se soltado. E agora, o que fazer? Bom, meu pai seguiu para o centro a pé, para os compromissos, e depois chamou um guincho para levar o VW para Venceslau, direto para a funilaria.
O principal dano foi um amassado bem no canto superior direito na moldura do para-brisa. O funileiro até tinha diagnosticado que seria necessária outra carroceria, mas afinal conseguiu voltar a lata para a posição, com bastante jeito e técnica. O caso ficou conhecido em Prudente, pois quando na semana seguinte foi comprar o para-lama para substituir, os atendentes da autopeças — na Av. Brasil — comentavam de um maluco que tinha dado um cavalo de pau num Fusca na rodovia. Qual não foi a surpresa quando souberam que tinha sido ele, e que fora acidente, não bagunça! Após o reparo, o carrinho voltou à sua atividade normal.
Hoje meu pai conta com orgulho essas histórias do Fusquinha. Não sabemos o que foi feito dele após aqueles anos. Tem saudade, se tivesse mais espaço na garagem compraria um apenas para “curtir”. Ficou com ele oito ou nove anos, do começo dos anos 90 até mais ou menos 1998, por aí.
Com dois filhos crescendo, sentiu necessidade de um carro maior. Comprou então um Monza 1991, do qual ele gostou bastante, principalmente do conforto e de como rodava macio. Mas depois de uns meses vendeu, pois viu que ia à falência financeira pelo gasto de gasolina. Comprou então em 1999 um Gol 1000 Mi modelo 1999. Era bastante rodado, parece que havia sido de um taxista na capital paulista. Como andava aquele carro! Dava muito pouco trabalho, e ficou em casa uns cinco anos. Até hoje ele tem saudade desse carro também.
Quando tinha meus onze/doze anos, lá por 2005, conheci a revista Fusca & Cia, onde aprendi a maior parte do que sei hoje sobre o modelo. Gostava bastante da seção “História e Técnica”, e ficava vendo as dicas que o Bob Sharp escrevia e imaginando aplicá-las no dia em que tiver um desses – dia esse que ainda não chegou. Dirigi um Fusca uma única vez, há uns dois anos, de um amigo da família. Dei uma volta no bairro dele, com meu pai ao lado. Curioso que o carro fica “na mão mesmo”, não tem assistência na direção ou freios, o nosso corpo é que governa o carro. Muito boa experiência.
Talvez eu goste tanto do Fusca e sua família a ar porque, quando bem criancinha, devia ficar no banco traseiro, ouvindo o concerto do bom e velho motor VW.
Do carro restou uma foto feita depois da reforma e retífica: bancos anatômicos, lanternas traseiras estilo “Fafá”, borrachão no para-choque e rodas de VW Brasília:
Sobre o Rafael
Rafael Barroca Silva, 27 anos, mora em Botucatu, SP há cinco anos, é natural de Presidente Venceslau,SP. Ele conheceu o AUTOentusiastas há pouco mais de dois anos. Aprecia muito a coluna sobre os motores VW arrefecidos a ar, as histórias inusitadas e as curiosidades sobre a fabricação dos demais modelos.
Ele relata sua história com o Fusca, carro que considera maravilhoso. Na verdade, é muito mais a história do seu pai do que a dele, que era bem criança quando seu pai teve o carro.
Agradeço ao Rafael Barroca Silva por ter enviado o seu causo aqui para a coluna Falando de Fusca & Afins. Certamente é uma narrativa diferente das demais, com histórias que lhe foram contadas por seu pai.
AG
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A coluna “Falando de Fusca & Afins” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.