Conheço o André Durgante DaCunha Cintra, o criador, e sua criatura, o ‘CINTRA 959’, há muitos anos e agora, quando a sua criação completa 30 anos, veio a oportunidade de relembrar esta interessante história novamente.
Parece que a ligação do André com o VW Fusca já estava marcada desde o seu nascimento, pois a porta do quarto da maternidade estava decorada com o Fusca abaixo, e o melhor da história é que ele nasceu no dia 20 de janeiro — que depois viria a ser o Dia Nacional do Fusca!
Acho que muitos de vocês ficaram curiosos em saber como foi que o carro na foto de abertura desta matéria foi desenhado e construído e aí nada melhor que o próprio André para nos contar esta história.
Da ideia ao carro no mundo real
Relato de André Cintra
“No início de 1988, eu, então com 15 anos de idade, passava a maioria das minhas tardes, após a volta da escola, em casa desenhando carros e lendo revistas especializadas.
Num belo dia desses chega um amigo, também fanático por carros, com um pedaço de papel onde havia o anúncio da “1ª Oficina de Design de Automóveis” do Anísio Campos. Corri atrás dos responsáveis que me solicitaram enviar um desenho para aprovação; passei alguns dias angustiado aguardando o resultado até que me ligaram informando que eu poderia fazer parte do grupo dos 15 alunos selecionados apesar da minha pouca idade!
Em julho de 1988 lá estava eu, conhecendo os meus colegas de turma mais velhos e o Anísio; o ícone brasileiro do Design de Automóveis!
As semanas foram passando, fomos evoluindo e desenvolvendo as ideias, até que chega o Anísio nos propondo o desfio de criar e desenhar algo sobre o Fusca, um carro conhecido de todos os brasileiros e que fazia parte da história do país. Muito bem; com a lição de casa distribuída fomos cada um para suas casas quebrar a cabeça e com o compromisso de voltar dias depois para a apresentação das criações de cada um.
Sentei-me à minha prancheta e comecei a “inventar”; diversos esboços depois e nada que me agradasse tanto, já meio sem ideias parei e comecei a olhar um pôster do Porsche 959 que eu havia pendurado no quarto…
Comecei então a tentar “misturar” os dois carros e fiquei rabiscando durante horas. Me lembro de ter levado uns três ou quatro projetos diferentes para o dia da apresentação. Mas o mais interessante mesmo era o do 959! O Anísio na época adorou a ideia, pela praticidade da transformação, por ser o Fusca uma das criações do Dr. Porsche e porque aquela “brincadeira” nos instigava a tirá-la do papel!
Primeiros desenhos
Estes são os desenhos que eu apresentei ao Anísio Campos no contexto da 1º Oficina de Design de Automóveis e que deram início aos acontecimentos que levaram à confecção dos ‘CINTRA 959’, eles datam de julho de 1988! Verdadeiras raridades.
Agora um estudo interessante, usando um “overlay” em papel vegetal do desenho da lateral de um Fusca de maneira a poder visualizar as partes que seriam modificadas com apliques em fibra de vidro.
Agora um estudo colorido, curiosamente numa cor que acabou não sendo usada na realidade:
Anísio e eu acabamos nos tornando bons amigos, e em 1989 acabei sendo uma espécie de estagiário dele na construção do Chubby (um carro que seria uma sequência do Nick desenvolvido sobre o VW Santana, e que estava sendo feito por ele na fábrica da Dacon em Santana de Parnaíba); durante as férias da escola eu ia com ele todos os dias para a fábrica e num canto, em meio a produção dos Nick, eu aprendia diariamente com ele e os modeladores, tentando fazer a frente daquele carro ficar harmoniosa.
Fizemos, acho que umas cinco ou seis (normalmente o Dr. Paulo — Paulo Goulart, proprietário da Dacon — passava por lá no final do dia para ver como estava ficando, sempre tomava meia Coca Cola sem gás e sem gelo, e não gostava da frente nova!)
O tempo passou, mas o ‘Fusca 959’ não saiu das nossas conversas até que um dia em 1991 o Anísio veio nos visitar em casa e jogando conversa fora, eu, meu pai e ele resolvemos arregaçar as mangas e fazer o sonho virar realidade!
Fomos atrás das coisas, conseguimos um galpão, compramos um Fusca 1985 e começamos uma “aventura” que durou praticamente um ano até tirarmos o que então já era o ‘CINTRA 959’ de dentro do galpão e levarmos para pintura!
Entre junho de 1991 e julho de 1992 modelamos o carro utilizando poliuretano e massa plástica e quebramos a cabeça tentando encontrar soluções viáveis para as limitações que tínhamos na época, até que chegamos ao ponto de definir que estava “ok” para iniciar os moldes.
Como se chegou aos moldes
A receita começou com um ingrediente importante: um Fusca. Sobre o Fusca foi feita a modelagem “no olho” e no “feeling” … Fizemos primeiro um lado, depois marcamos os pontos e passamos para o outro lado. Utilizamos poliuretano expandido e massa plástica. E o resultado foi este:
Abaixo está o “mock up”. Que é o carro de massa que pintamos de preto para visualizar as imperfeições de superfície antes de fazer os moldes:
Ai chegou o momento de fazer os moldes, seguindo a lógica futura de montagem das peças no Fusca para transformá-lo no ‘CINTRA 959’:
Com os moldes prontos seguiu-se o penoso trabalho de “desmoldar” o Fusca retirando todo o poliuretano expandido e a massa plástica, para depois aplicar as peças em fibra de vidro formando o ‘CINTRA 959’.
O trabalho de confecção dos moldes foi muito bem feito já que eles se mantiveram preservados até os dias de hoje e foram usados na confecção de um quarto carro como veremos mais adiante:
Abaixo o molde da frente do ‘CINTRA 959’ visto de frente e do seu interior
Abaixo uma foto dos preparativos para moldar uma frente nova já na terceira etapa dos trabalhos. Primeiro enceramos o molde, depois vai um líquido desmoldante, depois o gel, que é a fase da foto, e aí sim a fibra de vidro com a resina:
Para concluir esta parte dos moldes aí vai um esquema de como as partes moldadas eram acrescentadas ao Fusca para montar o ‘CINTRA 959:
A ideia nunca foi fazer uma réplica… Mas sim mesclar os dois carros. Foi muito mais um exercício de design que acabou se tornando realidade, do que uma tentativa de fazer um carro.
Um exemplo das dificuldades eram os faróis. Pensamos em utilizar os originais do Porsche 959, mas quando conseguimos na Dacon verificar a numeração da peça e o valor percebemos que teríamos mesmo que fazer alguns milagres usando a criatividade! Cada farol do 959 à época custava praticamente o que havíamos pago pelo Fusca!
Fato é que depois de meses de trabalho e dedicação, em julho de 1992 e no mesmo local onde aconteceu a “1ª Oficina de Design de Automóveis” fizemos a apresentação do carro aos amigos e à imprensa especializada que acabou divulgando nosso feito por todo o país. Recebemos na sequência centenas de cartas (era o que se usava na época) consultando, elogiando e comentando sobre o projeto.
Nesta mesma época, através de um colega de curso (Adhemar Ghiraldelli, já falecido) que a esta altura já era um dos designers da VW, o carro foi para o Departamento de Estilo da VW na Ala 17 — “para avaliações estáticas” conforme a carta de liberação de entrada Fábrica Anchieta, mas infelizmente não me deixaram ir também.
Depois disso, ainda em1992 acabamos fazendo o segundo carro (sobre um Fusca 86), para um cliente que insistiu que queria um igual e na mesma cor (prata) do primeiro carro. Em 1993 fizemos o terceiro carro, que desta vez foi pintado na cor branca.
Já nos anos 2000, por volta de 2006 ou 2007 acabei vendendo os carros que tinham ficado conosco (o Nº 001 que era meu e o Nº003 que era do meu pai) e a partir de então perdemos a pista dos carros, inclusive do Nº 002, que aliás nunca soubemos exatamente por onde andou e qual foi sua história.”
Aqui termina o relato do André, vamos retomar a matéria.
Retomando a matéria
Ao observar a documentação e as fotos eu notei que o relacionamento entre pai e filho era especial e perguntei ao André: seu pai foi de influência para a sua vocação para o design automobilístico? No que ele respondeu “Sim! Meu pai sempre foi um grande incentivador dessa vocação (sempre discutimos desenhos e ideias) e sem ele acredito que essa história não teria acontecido! Nosso assunto diário em casa (entre meu pai, eu e meu irmão) sempre foram os carros, as corridas e tudo o que tivesse quatro rodas e gasolina (minha mãe é que sofria… risos)!” Então o senhor José Roberto Cintra, pai do André também faz parte desta história, e como! Ele trabalhou na confecção dos moldes!!!
Uma coisa que me encantou foi o seguinte: quando o André se formou em arquitetura ele e o pai tiveram um escritório de arquitetura na casa deles e o ‘CINTRA 959’ ficava exposto num canto do escritório, com se pode ver na foto abaixo:
Sobre a reação da imprensa ao lançamento do ‘CINTRA 959’ eu perguntei ao André se ele tem uma estimativa de quantas matérias já saíram sobre o ‘CINTRA 959’. E a resposta foi: “Estimo em torno de umas vinte matérias, entre as revistas especializadas, jornais e uns dois três programas de TV (Gazeta na época da apresentação em1992, TV Globo (Autoesporte, com outros Fuscas) e TV Record por volta de 2004 ou 2005. E não parou por aí, pois sites internacionais também deram destaque para o ‘CINTRA 959’ como foi o caso do site Drivetribe, cuja manchete foi: THE STORY BEHIND THIS VW BEETLE DISGUISED AS A PORSCHE 959 – A história por detrás deste VW Fusca disfarçado de Porsche 959. Foi um grande sucesso de mídia.
Quando eu me conscientizei do trabalho e dos desafios que o André e seu pai venceram para preparar os moldes e fazer os carros eu parabenizei os dois e o André comentou: “Olha; realmente o trabalho que deu foi muito grande e com os poucos recursos que tínhamos conseguimos um resultado muito bom. Tivemos que usar muito de criatividade para conseguir realizar esta façanha! Eu e meu pai sempre comentamos que nós nunca fomos do ramo, não tínhamos infraestrutura, não tínhamos tantos recursos, mas tínhamos uma boa ideia e muita vontade de fazer! Sempre falamos entre nós que toda essa história foi “uma grande aventura “… que teve um resultado sensacional!”
O ‘CINTRA 959’ participou de vários eventos como o 5º Encontro Nacional do Fusca realizado em Interlagos no dia 17 de janeiro de 1993 pelo Fusca Clube do Brasil que eu presidia. Neste evento ele foi distinguido com o prêmio de “Fusca mais excêntrico” ganhando uma placa comemorativa. Seguem algumas fotos deste evento.
Na foto abaixo um passeio pela avenida Paulista, em São Paulo/SP na qual eu ressalto dois carros, o segundo da esquerda para a direita que é o meu VW Fusca e o quarto que é o ‘CINTRA 959’, mais um exemplo da participação do André com seu carro em eventos de VW Fusca:
Os três ‘CINTRA 959’ reaparecem
No ano passado, 2020, o André foi informado que os três carros que ele montou originalmente foram encontrados. Isto foi o resultado do diligente trabalho do Rodrigo “Bilinha”.
Os três carros foram comprados por um colecionador de Camboriú,SC e devem ser restaurados. O André está prestando assessoria para os trabalhos que estão sendo feitos no Nº001 por uma oficina do interior de São Paulo.
Está sendo feito o primeiro ‘CINTRA 959’ da Série 30 Anos
Com toda a movimentação que está ocorrendo com os três primeiros carros que foram encontrados e serão restaurados, e considerando que os moldes foram preservados, o André e seu pai decidiram montar um quarto carro.
Eles estão trabalhando num VW Fusca de competição. Sobre isto o André comentou: “Este carro é uma parceria com meu primo Plinio Cintra que já utilizava este carro na Categoria ‘Clássicos de Competição’ em provas no Autódromo de Interlagos”. O carro está equipado com um motor AP e segue a regulamentação deste tipo de competições. Quando pronto o carro será pintado de branco para depois ser adesivado de maneira a caracterizá-lo como o Porsche 959 da Equipe Rothmans. Adiante ele complementou que: “Vamos fazer a pintura/adesivagem com o esquema de cores, mas claro não vamos colocar as marcas e logos.”
Os componente de fibra já foram fabricados e colocados no lugar e já se tem a visão de mais um ‘CINTRA 959’ surgindo, como mostra a foto abaixo do André, o criador, com mais uma de suas criações:
Eu já estava ensaiando escrever sobre o ‘CINTRA 959’ desde o ano passado e tinha escrito isto para o André juntamente com a mensagem pelo aniversário dele em 2020, mas o tempo passou e a matéria acabou não saindo. No aniversário de 2021 retomei a conversa com o André e agora havia muita coisa nova e finalmente a matéria saiu. Registro o meu grande agradecimento ao André por sua intensa participação neste trabalho que fica como registro dos trinta anos desta incrível história.
A foto que se segue complementa a imagem de abertura e mostra a harmonia do design do carro que surgiu também do excelente trabalho de modelagem que acabou definindo as linhas definitivas do belo ‘CINTRA 959’:
AG
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