E lá estávamos conversando “por Zap”, o Bob e eu, a respeito do Fiat 850 Spider, um pequeno esportivo das décadas de 1960 e 1970. Foi desenhado por Giorgetto Giugiaro quando trabalhava na Stile Bertone. Tem linhas simples e harmoniosas — lembre-se que o Giugiaro desenhou, dentre outros, o Alfa Romeo Giulia GTV — e é um conversível prático, barato para comprar e manter, motor de cilindrada baixa, mecânica comum e confiável oriunda de modelo fabricado em grande escala; em resumo, sua descrição se encaixa perfeitamente na do nosso conhecido Karmann-Ghia, fabricado no Brasil e que deixou muitas saudades.
O motor do Spider era de 843 cm³ e entregava 49 cv, o suficiente para levá-lo a uma máxima de 145 km/h, e um jovem não poderia ter máquina mais perfeita para passear com a sorridente namorada saindo sem capota tomando sol e vento saudável por aí; esse vento nosso camarada, que malandramente, volta e meia, inesperadamente, coopera dando uma leve e permitida levantada na saia da moça.
— Um amigo lá no Rio de Janeiro tinha um e eu adorava esse carro, disse o Bob. Escreva sobre ele!
— Esse carro, nessa época, lá no Rio… U-au! Isso sim! Legal! Vou escrever; sobre ele e sobre o espírito da coisa, já que havia muitos outros pequenos esportivos semelhantes fazendo a alegria da moçada de anos atrás.
Pois é, além de falar do carro, infelizmente terei que escrever também sobre o espírito da coisa, uma para que os mais coroas, como eu, se recordem do que foi bom e não tem mais, e outra para que muitos jovens saibam do que estarão perdendo se deixarem suas cabeças serem feitas para acharem que o máximo é andar fechado num veículo chamado por um nome que não faz sentido, “utilitário esporte” (??), e que se resume a uma caixa escura e refrigerada a dois metros de altura cheia de eletrônicos controlando e tuitando o tempo todo e forrada de bolsas infláveis para todo lado que num supetão podem se estufar duros de ar nos espremendo até sair suco. Tem uns pobres de espírito que forçam para dentro da cachola da moçada que o legal é se distanciar do mundo que os cerca; um mundo que os quer ver com saúde sorrindo com o sol, o ar fresco, o perfume da mata e a pele salgada da maresia do mar — a pele produzindo vitamina D de montão e puro suco nas veias.
Mas vamos falar do Fiat 850 Spider. Faz tempo que dirigi um, só que apesar de bonitinho ele se encontrava desconjuntado que nem um cachorro atropelado. Esse é o estado da maioria dos carros antigos, já que muitos dos proprietários têm o estranho hábito de só se preocuparem com o “visual da caranga”, que brilha e reluz, mas o motor falha, os freios puxam para os lados, os amortecedores inexistem, o que me dá um dó lascado do carro do sujeito. Mesmo assim notei que o carrinho era batuta, que apesar dos maus tratos continuava valente, fora que um conversível pequeno e leve é o que há de bom para nos passar sensação de rapidez e velocidade. Esse negócio de “sentir a bunda raspando no chão” é emocionante mesmo, e quem na infância teve a sorte de se estropiar num carrinho de rolimã sabe do que estou falando.
Motor longitudinal de rabeta, ou seja, pendurado atrás do eixo traseiro, que nem Fusca — 4 cilindros, arrefecido a líquido —, e tração traseira. Antes de trazerem a tração nas quatro dos jipes para os carros de passeio, essa era a configuração do capeta para se pegar lama e/ou galgar uma serrinha íngreme e travada, seja lá em que condições de piso. Na subida a massa se desloca para trás, carregando sobre o eixo traseiro, e juntando isso ao fato do peso do câmbio e do motor ali também estarem, temos tração de monte para descarregar potência em saída de curva. A potência que interessa é a que a se descarrega no chão e empurra o carro para a frente, e o resto — “meu carro tem tantos cavalos, e pititi-pototó” — é conversa de tonto.
Tanto é de tonto que eu quero saber se alguém já viu um Porsche 911 fazendo aquele fumacê inútil chamado de “burnout” — modalidade sem graça que imagino foi inventada pela indústria de pneus para gente que tem medo de correr —, simplesmente porque o 911 traciona e sai feito uma bala, e não tem como segurá-lo no lugar; lá se vai o bicho num pulo, enquanto o outro fica na barulheira e fumaça e parado paradinho com panca de macho pracaramba.
Já na descida de serra, o que um carro com motor na rabeta foi teu camarada na subida ele vai descontar na descida, que exige um cuidado especial. A postura a tomar é a do ouriço macho na hora da cruza: cuidado e precisão nos movimentos. O carro fica traiçoeiro com a traseira tendo tendências suicidas querendo se jogar pela tangente despenhadeiro abaixo, mas controlar isso se aprende, desde que o motorista não seja burro.
E foi assim, com um rabeteiro, que Jean Rédélé ganhou o Rali Internacional dos Alpes em 1954, foi subindo ladeiras alpinas cuspindo cascalho para tudo quanto é lado com um pequeninho Renault 4CV, o modelo antecessor do nossos conhecidos Dauphine e Gordini. E como o jovem Rédélé não era tonto nem nada, constatou que para acabar de dominar esse longo e difícil rali só lhe faltava uma carroceria de menor arrasto aerodinâmico para que pudesse atingir maiores velocidades nas baixadas planas, e mais leve para facilitar a vida do pequeno motor, e foi daí que nasceram os famosos Alpine A106/A108/A110 e o nosso charmosinho Willys Interlagos, derivado desses daí, e que teve uma versão conversível.
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E então falamos do Interlagos, do Karmann-Ghia e do 850 Spider; vários deles num estalo, todos com a mesma configuração, preço semelhante e mesmo espírito. Havia vários outros que se encaixavam nessas características de conversível acessível. E havia muitos outros conversíveis mais caros. MGB, Alfa Romeo Spider, Fiat 124 Spider, Ferrari 365 Daytona, Jaguar E-Type, Corvette Stingray, em suma, dezenas, ou seja, tinha conversível para todos tipo de bolso, do mais ventilado ao mais recheado.
Normalmente a moçada ficava com os mais baratos e conforme ia trabalhando e conseguindo mais recursos ia em busca dos mais potentes. Porém isso, meu amigo leitor, principalmente, meu amigo jovem, fique sabendo que maior potência não lhe garante maior prazer. O prazer depende de muitos fatores, cuja maioria não depende do valor do veículo. Por exemplo, há pouco tempo, na praia conheci um rapaz de uns trinta e poucos anos que nos contou que uns dez anos antes juntara uma meia dúzia de amigos despreocupados e foram os malucos montados em Honda CG 125 e Yamaha YBR 125 para Machu Picchu ou para um deserto de sal no Chile, não me lembro bem onde, só lembro que era longe pra burro. E, como era esperado, foi uma tremenda e deliciosa aventura, acampando e tudo o mais, e as motinhas aguentaram na boa, só sofrendo barbaridades nas grandes altitudes andinas que pegaram, onde só conseguiam rodar em 2ª marcha por queda de potência devido à rarefação do ar.
E esse rapaz, todo animado me disse que planejava comprar uma moto aventureira de pelo menos 500 cm³ para voltar a fazer o mesmo trajeto, que aí sim seria legal e coisa e tal. E nessa minha experiência de vida tive que dar um breque no rapaz e lhe dizer que, por mais fantástica que fosse a moto que ele comprasse, dificilmente ele faria uma viagem tão legal como fez de “125” com esses amigos. Após poucos segundos meditando, o rapaz abriu um grande sorriso e concordou comigo. Mas dei a maior força para que ele comprasse a aventureira e mandasse bala, claro.
Jovem tem que fazer coisa de jovem, e os conversíveis são a cara do jovem. Posso dizer algo a respeito, pois dos 16 aos 18 tive um Jaguar XK 120 e dos 22 aos 24 tive um Porsche 914; e não foi nada mau. Depois, casei e tive que pensar em outras coisas. Caso hoje tivesse os mesmos carros, sim, eu os curtiria, mas não tanto como na época; nunca mais tanto. A cabeça e o corpo do jovem estão mais apropriados para sentir esses tipos de prazeres.
Mas os mandachuvas de hoje não foram forjados na mesma forja dos mandachuvas de décadas atrás. Os de hoje não têm a ousadia no seu DNA e acham que o jovem ideal é o bicho-de-goiaba que eles foram. Ser ousado na indústria automobilística atual é algo condenável e o caminho mais curto para a rua. No máximo o sujeito é um ousado enrustido.
O que faziam antigamente, e dava certo, seria como se hoje, por exemplo, a Fiat tivesse a tremenda ousadia de pegar um Uno — com câmbio manual, claro, porque estamos falando de carro gostoso de guiar — e o vestisse com uma carroceria conversível de 2 lugares desenhada por um dos craques do design de hoje. E aproveitando, imagine esse esportivo tendo opcionais de cores alegres, como azul-calcinha, amarelinho, vermelhinho. Uma suspensão um pouco rebaixada e mais firme e um sistema de escapamento um pouco mais sonoro. Não precisa de mais que isso. Nada mau, não é? E lembre-se que ele seria só um pouquinho mais caro que o Uno.
Mas, não. Querem mais é encaixotar a rapaziada. O sol mata. Passar calor é coisa de pobre, mudar marcha também, o legal é apertar botão, e disfarçadamente olhar para uma saia que abana é assédio de tarado.
Felizmente o mercado de motos sempre foi raiz e só melhorou. Tem moto para tudo quanto é gosto. Nenhum modelo foi suprimido, e só foram acrescentados, como essas excelentes aventureiras, motos ideais para longas viagens, o que não era muito comum de se fazer antigamente. Inclusive as corridas de Moto GP estão muito mais emocionantes e dependentes do piloto que as de F-1.
Bom, mas é melhor falar um pouquinho do Fiat 850 Spider, que ao todo vendeu 124 mil exemplares e certamente fez babar milhões de moços e moças.
Lançado em 1965, foi fabricado até 1972. Começou com um motor de 843 cm³ – de 49 cv a 6.200 rpm e torque de 6 m·kgf a 4.000 rpm — que em 1968 aumentou para 903 cm³ e 52 cv, quando seu nome mudou para Sport Spider. Antes fazia o 0 a 100 km/h em 16,2 segundos e atingia 145 km/h, e depois, 150 km/h. Câmbio manual de 4 marchas, freios dianteiros a disco e traseiros a tambor, suspensão independente na dianteira e traseira, Cx de 0,42, consumo de 14 km/l, e, importantíssimo: pesava 715 kg, o que lhe dava uma aceitável relação peso-potência semelhante à dos modelos de 1 litro atuais. Por ter taxa de compressão elevada, 9,3:1, só podia funcionar com a gasolina de maior octanagem da época, a gasolina azul. Se essa especificação fosse desrespeitada era quebra de motor na certa.
O “problema” era o volume do porta-malas dianteiro: 99 litros…, mas quem é que estava ligando? Usava-se pouca roupa. A minissaia estava na moda, lembra-se?
AK