Nós, apaixonados por carros, não temos dificuldades para encontrar qualidades nos automóveis. Mesmo naqueles carros que de fato apresentam limitações, ainda assim sempre conseguimos identificar algo positivo. É a natureza dos autoentusiastas.
Alguns carros facilmente se destacam pelos atributos mecânicos, design único, tradição da marca, alto desempenho, raridade ou por serem muito caros. Por outro lado, poucos automóveis na história foram tão carismáticos quanto a Kombi. O mais incrível é de como um carro, o qual foi tão acessível por tantas décadas, se tornou um ícone mundial, levando ao fenômeno da supervalorização dos modelos mais antigos nos últimos anos.
Neste cenário, eu gostaria de dividir com leitores do AE, minha história com a carismática Kombi.
Nasci em janeiro de 1969, na época meu pai tinha uma perua Vemaguet 1967 (DKW-Vemag) e uma linda Kombi acredito que ano 1966. Sem dúvida, a Kombi era o carro ideal para ele: um empreiteiro, apaixonado por pescarias no pantanal mato-grossense, e com o meu nascimento se tornava pai de seis filhos! Do meu primeiro ano de vida, 1969, curiosamente, eu tenho apenas três fotografias, sendo duas delas no banco do motorista da Kombi. uma segurando o volante.
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Meu pai permaneceu com aquela Kombi por mais alguns anos. Tenho flashes de recordações das viagens que fizemos em família, principalmente entre Sorocaba e Bragança Paulista. Me lembro dos meus pais, minhas duas irmãs e meus três irmãos na estrada. Ocupávamos os três bancos da Kombi, a qual transportava valentemente oito pessoas e as nossas bagagens. Naquelas viagens, enquanto a perua seguia vencendo bravamente as subidas íngremes no trecho de Itu, eu contemplava pela janela a paisagem impressionante, àquela altura, repleta de enormes rochas. Ainda é possível nos dias atuais observar as poucas pedras que “sobreviveram” à exploração comercial e a duplicação (necessária) da Rodovia Dom Gabriel. Coincidentemente, nos últimos 20 anos, devido ao meu trabalho, semanalmente eu trafego por esta rodovia. E mesmo, apesar da rotina, todas as vezes que passo por aquele mesmo trecho (aproximadamente no km 95) me recordo daquelas manhãs ensolaradas, embaladas pelas vibrações, texturas e aromas peculiares da Kombi.
Em 1974, o meu pai comprou um Opala Gran Luxo Cupê bege Esporte 0-km;; minha mãe, recém-habilitada, tinha um Fusca vermelho Cereja 1970. As minhas irmãs e irmãos, mais velhos já namoravam, dirigiam, tinham seus carros, interesses e compromissos próprios. Assim nossa família não precisava mais um carro com capacidade para nos levar todos juntos aos passeios. Quando viajávamos, dificilmente todos iam e assim a fase das nostálgicas viagens havia se acabado e nós nem nos lembrávamos de quando fora a última viagem que fizemos todos juntos.
Contudo, continuei a conviver de alguma forma com a Kombi, pois enquanto o meu pai teve a empresa de construções até o ano de 1983, ele sempre manteve pelo menos uma perua para serviços da Construtora. Às vezes, o meu irmão Omar, que trabalhava com meu pai, ia me buscar na escola com a Kombi da Realce Pinturas (que evoluiu para Realce Construções & Comércio). Eu curtia muito quando isso acontecia. Era bem legal, principalmente porque meu irmão sempre gostou de dirigir rápido.
No entanto, apesar de andar como passageiro por pelo menos 14 anos da minha vida e ter estabelecido muitos vínculos afetivos com a Kombi, ainda faltava dirigir a incrível perua da Volkswagen. E embora, eu dirigisse desde os 11 anos de idade, por incrível que pareça isso só foi acontecer em 1987, aos 18 anos, quando eu dirigi por uns por 10 quilômetros uma Kombi azul, ano 1970 pela avenida General Carneiro, em Sorocaba.
Após essa curta experiência ao volante da Kombi, demorou 30 anos para eu voltar a dirigir esse automóvel tão carismático. E não poderia ter sido de uma forma mais inesperada (foto de abertura).
No entanto, é preciso contextualizar para a história fazer sentido. Eu trabalho há mais de 20 anos na Escola Superior de Educação Física de Jundiaí (ESEF), uma autarquia municipal e, além de professor, uma das minhas funções na Faculdade é a coordenação do Programa Institucional de Iniciação Científica (IC). Neste sentido, em 2017, fomos convidados pelo Centro Universitário de Franca (UNI-Facef) para participar do I Encontro de Iniciação Científica AIMES (de 29 a 31 de maio de 2017). Foi o primeiro evento desta natureza promovida pela Associação de Instituições Municipais de Ensino Superior (AIMES), e sendo a ESEF integrante da respectiva Associação, a participação naquele Encontro foi fortemente recomendada pela direção da nossa Instituição.
Porém, havia um problema para participarmos do evento: os custos das inscrições, alimentação, hospedagem e transporte para os nossos seis alunos da IC. Como a ESEF é uma instituição municipal sem fins lucrativos, o nosso orçamento é sempre apertado e rigidamente controlado pelo Tribunal de Contas. Por outro lado, não faria sentido exigir que os alunos arcassem com os gastos para participação no Encontro de IC.
Foi aí que eu tive uma ideia que poderia ser bom para todos os envolvidos e ainda seria uma grande oportunidade autoentusiasta para mim. Em nossa Instituição, temos uma bela Kombi, adquirida 0-km em 1997 e com certeza a perua resolveria a nosso problema do transporte e hospedagem. A minha ideia era fazer um “bate e volta” com a Kombi e assim economizar um bom dinheiro com viagem, alimentação e hospedagem. Contudo, antes de levar a ideia ao diretor, eu me reuni com os alunos de IC e expliquei para eles o plano. Apresentei as vantagens, principalmente que o problema do orçamento estaria resolvido e ainda que a viagem contaria com uma boa dose de aventura, que certamente eles nunca haviam vivenciado. No entanto, eles precisariam estar dispostos, em apenas um dia, percorrer 700 quilômetros em uma Kombi 1997. Com certeza, o leitor ou leitora deve presumir qual foi a resposta deles: adoraram a ideia. Não poderia ser diferente. Jovens são aventureiros por natureza. Os olhos deles brilharam com a proposta.
Uma vez tudo certo com alunos, era preciso levar a proposta ao diretor. Eu sabia que o nosso motorista havia se aposentado há alguns anos e assim eu me ofereci para ser o motorista naquela viagem. A princípio ele ficou preocupado com possíveis desdobramentos e responsabilidades da Instituição, e também me indagou sobre o cansaço para enfrentar as centenas de quilômetros entre Jundiaí e Franca. Contudo, todos meus colegas de trabalho e inclusive o diretor conhecem bem sobre a minha paixão por automóveis e disposição para dirigir pelas estradas. E após alguns minutos de conversa fui autorizado!
O leitor ou leitora deve imaginar o quanto fiquei empolgado com a viagem. Eu me sentia como uma criança que havia ganho um presente de Natal. Por outro lado, os bolsistas ficaram animados com a possibilidade de apresentar as pesquisas que eles desenvolveram durante a graduação no Encontro de IC e ainda viver a experiência única em viajar na Kombi. A maioria deles nunca havia ao menos entrado na perua da VW.
A programação do evento nos favoreceu, pois, nossas apresentações foram agendadas para as sessões científicas do horário das 13h00 às 16h00. Assim sendo, no dia 29 de maio de 2017, conforme combinado, às 5 horas da manhã em ponto, partimos em nossa aventura. Realmente, eu estava me sentido muito bem com aquilo tudo, foi muito emocionante após o fechamento da porta corrediça dos passageiros acionar a embreagem engatar a primeira marcha e colocar a Kombi em movimento. Seguimos em direção à Via Anhanguera. As primeiras trocas de marcha exigiram um cuidado especial, mas mesmo assim engates foram precisos e se tornaram cada vez mais naturais à medida que os quilômetros foram sendo percorridos. E o que falar da posição de dirigir Kombi? Sensacional. Sem dúvida, aquele dia prometia.
Na estrada, me surpreendi, e o meus alunos mais ainda, com desempenho da Kombi, que acompanhava bem o fluxo da rodovia e mesmo nas subidas não perdia muito a velocidade, logo me adaptei a melhor forma de condução para aproveitar a potência daquele motor a gasolina de 58 cv a 4.200 rpm e torque de 11,2 m·kgf a 2.600 rpm. De fato, estou habituado a dirigir carros com mais de três décadas de fabricação, e a Kombi da ESEF, embora relativamente “moderna” pelo ano de fabricação 1997, ainda conservava as características básicas dos carros antigos. Contudo, há de se destacar que a experiência neuromotora e sensorial ao volante da Kombi são peculiares.
A viagem seguiu perfeita e amanheceu um lindo dia de sol! Fizemos uma parada para abastecer, esticar as pernas e comer algo. E seguimos firmes em direção ao nosso objetivo. Sem dúvida, dirigir para várias pessoas é sempre gratificante, pois sabemos que aquele grupo está ali confiando em nós. Impossível não retroceder no tempo e lembrar do meu pai dirigindo sua Kombi com toda nossa família no início dos anos 1970. Estava imerso na mesma atmosfera, e os mesmos estímulos visuais, auditivos, olfatórios e tácteis estavam presentes naquele momento. Assim como a minha idade, 48 anos em 2017, era muito próxima da idade que o meu pai tinha naquela época.
Chegamos um pouco cansados e cheirando a gasolina, mas sobretudo motivados. Por volta das 10h00 estacionamos a Kombi e ainda houve tempo de assistir a Conferência de abertura do Evento. Almoçamos rapidamente e às 13h00 nossos alunos de IC apresentaram brilhantemente as suas pesquisas sobre Ciências do Esporte no evento. Realmente, senti muito orgulho deles. Eles se dedicaram muito durante um ano nos projetos e enfrentaram quilômetros numa Kombi para chegar àquele dia.
Após finalizar a nossa missão no evento, pontualmente as 17h00 entramos na Kombi com a sensação de dever cumprido. A volta foi muito mais animada, com todos acordados, conversando e excitados com as experiências vividas ao longo daquele dia, o qual ainda não havia acabado.
Logo a noite caiu e imprimimos um ritmo um pouco mais acelerado, afinal, por melhor que tenha sido o dia, estávamos cansados. Paramos para abastecer e jantar. A Kombi, apesar dos seus quase 20 anos de uso ,estava em sua melhor forma. Por toda sua existência sempre foi muito bem conservada pelos motoristas que passaram pela ESEF. E justamente eu tive a honra de estar ao volante, quando muito próximo a Jundiaí o hodômetro virou 100.000 km! Foi incrível!
Chegamos por volta das 22h00 na ESEF ainda havia tempo para mais uma emoção. Pois a minha filha, que sempre me acompanhou nos Encontros de Carros Antigos, na época com cinco anos, tinha o sonho de passear em uma Kombi. Então, pouco antes de chegarmos em Jundiaí, avisei minha esposa para ir me buscar e levar nossa pequena para fazer uma surpresa para ela. Assim, quando eu cheguei as duas estavam me esperando no estacionamento da Faculdade. Elas entraram na Kombi e ainda restou energia para o primeiro passeio da minha filha na icônica perua da VW. Percorremos alguns quilômetros por dez minutos, mais foi o suficiente para ver mais sorrisos, agora das minhas duas princesas. Definitivamente, a Kombi continua encantando gerações.
Finalmente próximo das 23h00 estacionei a Kombi e desliguei o motor. Permaneci por alguns minutos dentro do carro refletindo em tudo que eu havia passado naquele dia. Na verdade, me despedi e agradeci por aquela oportunidade, talvez aquela tivesse sido a última vez que eu dirigiria uma Kombi, assim como houve a última vez que viajámos juntos em família em 1970. Refleti, mais uma vez, sobre os momentos únicos e mágicos que os carros podem nos proporcionar.
E você, leitor ou leitora? Qual sua história com a carismática Kombi?
Marcelo Conte
Jundiaí – SP