Esse conto futurista (ilustração abaixo) foi publicado em novembro de 1973 na revista americana Road & Track, e é importante por dois motivos principais.
Primeiramente, foi a inspiração para a música “Red Barchetta” da banda canadense RUSH, a minha preferida, e em segundo lugar e não menos importante, por mostrar como atividades antes simples podem se tornar problemáticas, apenas e tão somente por causa de regras empurradas goela abaixo das pessoas.
O motivo musical é particularmente importante, pois 37 anos atrás fui apresentado ao som do RUSH através de dois colegas de curso pré-vestibular que participavam de bandas de garagem. Foi um momento de revelação, e com o passar do tempo e o acúmulo de conhecimento sobre esse trio e sua obra, um ponto de referência para qualquer coisa que se denomine música. Quem gosta do RUSH é fanático e considera o melhor som da galáxia. Quem diz que gosta mas prefere outra coisa não gosta de verdade ou apenas precisa estudar a obra por mais tempo para entender melhor. Simples.
Neil Peart, baterista e autor de quase todas as letras em 40 anos de carreira da banda, faleceu em janeiro de 2020, e entre outras atividades, era leitor, escritor e um entusiasta de carros e viagens, tanto em quatro como duas rodas. Com sua pequena coleção — Corvette Stingray 1963, Jaguar E-Type, Aston Martin DB5 e Maserati Ghibli e suas bem-rodadas BMW GS1200, não se pode chamar de outra coisa a não ser de entusiasta. Teve também outros carros anteriormente, entre eles Lotus Europa, Saab 99 Turbo, MGB Roadster (foto de abertura), Porsche 911 Speedster, Audi quattro, BMW Z8, etc.. Muito diferente de um perfil de astro do rock, Neil Peart valorizava antes de tudo a sua individualidade e liberdade, sendo avesso a encontros com fãs, e literalmente fugindo quando isso acontecia, já que não entendia o porquê da adoração das pessoas por alguém que apenas tentava fazer seu trabalho da melhor forma possível.
O conto — que finalmente traduzi — foi lido por ele lá em 1973 e ficou em sua mente para uma futura letra e composição, que resultou na música “Red Barchetta” do álbum Moving Pictures, em 1981.
O autor do conto, Richard S. Foster, era estudante quando o escreveu em 1972. Enviou para sua revista preferida numa vaga esperança que fosse lido e divulgado e, para sua surpresa, recebeu 200 dólares pelo direito de publicação. Segundo ele, a ideia veio quando percebeu que as novas normas para redução de poluição (o Clean Air Act, ou Lei do Ar Limpo, de 1970) que haviam feito todos os carros vendidos no mercado americano absolutamente lentos e amarrados, era apenas o começo de uma tendência que poderia nunca mais parar, e que deveria atingir outros campos, como a segurança, por exemplo.
Apreciem a situação mostrada e percebam o quanto o autor previu o cerceamento de liberdades individuais dentro de um cenário dos nossos queridos automóveis, utilizando uma certa dose de sarcasmo. Essa verdade se aplica a muitos outros autoritarismos que estão ao nosso redor todos os dias, nos carros e em outros assuntos, basta prestar atenção.
Foster só foi encontrar Peart pela primeira vez em 2007, e ambos rodaram algumas centenas de quilômetros em suas BMW 1200 GS.
Vamos ao conto.
Era uma ótima manhã em março de 1982. O tempo quente e o céu claro prometiam uma primavera antecipada. Buzz tinha chegado cedo naquela manhã, tomado impacientemente seu café da manhã e ido para a garagem. Abrindo a porta, ele viu a luz do sol bater no brilhante capô do seu MGB roadster com 15 anos de idade. Depois de cuidadosamente verificar o nível dos fluidos, pressão dos pneus e cabos de ignição, Buzz escorregou para trás do volante e ligou o motor, que imediatamente acordou para a vida. Ele pensou alegremente nas poucas horas que iria passar com o carro, mas sua alegria foi enevoada — não era tão fácil como costumava ser.
Há uma dúzia de anos as coisas começaram a mudar. Primeiro houveram algumas poucas e modestas melhorias requeridas em segurança e emissões em carros novos; gradualmente estas se tornaram mais abrangentes. Os requisitos governamentais atingiram um nível adequado, mas não pararam; eles continuaram e se tornaram mais e mais restritivos. Agora haviam poucos carros de modelos antigos, diminuindo por deterioração natural e… outras razões.
O MG estava aquecido agora, e Buzz deixou a garagem esperando que assim cedo na manhã não haveria problemas. Ele manteve um olho nos instrumentos conforme seguiu seu caminho descendo o vale. As estradas do vale não eram mais muito utilizadas; as pequenas fazendas eram todas de propriedade de doutores e eram estreitas para os MSVs (Modern Safety Vehicles – Veículos Modernos Seguros).
A cruzada de segurança foi bem feita no início. Os poucos esquemas idiotas foram rapidamente eliminados e um senso de racionalidade se desenvolveu. Mas no final dos anos 70, sem guerras importantes, a cura para o câncer descoberta e o bem-estar social resolvido, os políticos precisaram de uma nova causa e mais uma vez se voltaram para os automóveis. As normas de segurança se tornaram mais restritivas. Carros ficaram maiores, mais pesados, menos eficientes. Eles consumiam gasolina com tanta voracidade que os Estados Unidos tiveram que se tornar os maiores aliados dos países árabes. Os novos carros eram difíceis de parar e manobrar rápido, mas eram capazes (normalmente) de salvar sua vida em uma batida a 80 km/h. Porém, com 200 milhões de carros nas ruas, poucas pessoas dirigiam tão rápido.
Buzz desceu ao fundo do vale, desviando dos frequentes buracos que encontrava nas estradas pouco usadas, e por isso, negligenciadas. O motor soava perfeito e o carro todo passava um sentimento de firmeza e solidez. Ele negociou várias curvas rápidas em “S” e chegava a 6.000 rpm em terceira marcha antes de levantar o pé direito para a próxima curva. Ele não de preocupava com a polícia ali. Não, não os tiras….
Apesar da extensão do programa de segurança, era essencialmente uma boa ideia. Mas complicações não previstas surgiram, As pessoas de acostumaram a carros que não se danificavam em acidentes a 15 km/h. Elas pensavam menos do que antes sobre a possibilidade de se ferirem em uma batida. Como resultado, tendiam a se preocupar menos com manter distância e obedecer o direito de passagem, então os acidentes aumentavam cerca de 6% a cada ano. Mas os danos e ferimentos na verdade diminuíram, e o governo estava feliz, a indústria de seguros estava feliz e a maioria dos donos de carros estava feliz. Os donos de carros não-MSV, estavam ocupados desviando dos MSV, e o resultado dessa discrepância fez sobrar poucos carros antigos. Se eles não eram esmagados entre dois caminhões nas estradas, eram silenciosamente vendidos nos ferros-velhos pelos agentes de seguros. E pior de tudo, eles se tornaram alvos…
Buzz estava bem dentro de seu ato agora, correndo pelas estradas que serpenteavam o vale com toda habilidade que podia utilizar, de maneira que se esqueceu de sua primeira preocupação. Onde a estrada era boa ele podia provocar uma derrapagem controlada, e onde havia buracos ele via como chicanas para serem desafiadas com maestria. Ele saiu do solo brevemente entrando em velhas pontes de madeira e mais tarde verificou que o velho MG podia chegar a 175 km/h na longa reta entre o velho Hanlin a a fazenda Grove. Ele estava apenas começando a diminuir quando viu em seu espelho um dos novos modelos de MSV com desenhos pintados a mão na maior parte da carroceria (uma das poucas modificações permitidas após 1980). Buzz esperava que fosse um turista ou um motorista qualquer que havia se perdido procurando por um posto de combustíveis. Mas agora o motorista do MSV havia visto o MG, e com um som abafado de um escapamento bem limpo, começou a perseguição…
Não tinha demorado muito para um pouco responsável motorista descobrir que os novos MSV podiam provocar grandes danos em um carro mais velho sem ser danificado. Como resultado, alguns desses motoristas procuravam por esses carros em áreas desertas, empurravam-no para fora da pista ou em uma baixada de ponte ou viaduto e se retiravam sem danos, aliviado de qualquer de suas frustrações causadas por esse comportamento. A polícia raramente patrulhava esses lugares ermos, sua atenção sendo requerida mais urgentemente em outros lugares, e assim isso se tornou um esporte de alguns motoristas.
Buzz ainda não estava muito preocupado. Isso havia acontecido algumas vezes antes, e ao menos que o motorista do MSV fosse muito habilidoso, o MG podia iludir o outro motorista sem muita dificuldade. Ainda assim alguma coisa o incomodava nesse MSV em seu espelho, mas o que era? Planejando cuidadosamente, Buzz deixou o outro motorista chegar perto, uns 10 metros, e entrou repentinamente na estrada à direita. O motorista do MSV freou brutalmente, deslizou uns 400 metros, fez uma curva em “U” e retornou à perseguição na estrada onde Buzz havia entrado. O MG tinha ganho um 500 metros de distância nesse meio tempo, e Buzz estava agradecido pelos pneus radiais e barras antirrolagem na frente e atrás que ele havia colocado no carro alguns anos atrás. Ele voava na estrada cheia de curvas, reduzindo marchas, curvando, acelerando e planejando o traçado à frente. Ele tinha confiança de que mesmo que não conseguisse escapar do MSV, poderia ficar à frente dele por pelo menos uma hora ou mais, quando o MSV já estaria com pouca gasolina. Mas o que o continuava incomodando nesse outro carro?
Eles chegaram a uma parte bem aberta da estrada e Buzz acelerou ao máximo e manteve. O MSV estava bem para trás, mas não tanto a ponto de Buzz distinguir uma antena bem alta no carro. Antena! Não de polícia, mas talvez de rádio faixa do cidadão (CB), no MSV? Ele torceu para que não fosse.
A reta estava chegando ao fim e Buzz freou no último instante e fez uma curva à direita a 120 km/h, ganhando mais uns10 meros do MSV. Mas menos de 500 metros adiante um outro MSV estava saindo da estrada e parando. Era um CB mesmo. O outro motorista tinha uma parceria na caça. Agora Buzz estava em apuros.
Ele acelerou tudo até cerca de 50 metros do MSV parado, freou um pouco e então desviou e ameaçou passar pela esquerda. O MSV se arrastou para esse lado, e Buzz passou pela direita, batendo pesadamente em uma pedra no acostamento. Os dois MSV o perseguiam, quase colidindo entre si. Buzz entrou à direita na primeira oportunidade, pegando uma esquerda logo em seguida, esperando sumir da vista, e de fato ele andou vários minutos antes de ver um deles na estrada principal paralela àquela onde estava.
Ao mesmo tempo o outro apareceu em seu espelho vindo da última curva. Agora eles começavam a subir do outro lado do vale e Buzz acelerava tudo, torcendo para que o motor aguentasse o esforço. Ele perdeu de vista o MSV na outra estrada quando esta mudou o traçado, mas via o outro atrás em alguns momentos quando as curvas permitiam. Subindo a velha Monument Road, Buzz esperava ter tempo de chegar ao topo e pegar a estrada de terra à direita, que era muito estreita para seus perseguidores. Subindo, a temperatura da água aumentou, e ele usava toda a estrada sem usar os freios, apenas trocando entre terceira e quarta marcha, arrastando um pouco de lado para diminuir e entrar em curvas mais apertadas, alcançando o pico da montanha onde o acesso para a velha torre de incêndio saia à esquerda… Mas vindo do outro lado do morro estava o segundo MSV que ele havia perdido! Sem espaço correto para entrar nessa estradinha de terra, mesmo assim ele virou à esquerda apressadamente e rodou na terra, batendo o para-lama direito numa árvore. Parou do lado oposto da estrada, e o motor apagou. Acionou rapidamente a partida enquanto o motor muito aquecido voltava lentamente à vida. Engatou a primeira marcha e saiu acelerando ao máximo, no momento que o MSV fazia a curva. Buzz tinha a vantagem da estrada bem estreita e com árvores de ambos os lados, e ele aproveitou ao máximo. A estrada curvava constantemente e ele ficou em segunda com o motor entre 5.000 e 5.500 rpm. A batida não havia danificado nada e ele estava se afastando do MSV. Mas para onde? A estrada terminava na torre e era sem saída, nenhum lugar para escapar.
Mesmo assim ele foi até o final, e na clareira no topo da montanha virou o MG e esperou. O primeiro MSV chegou na clareira e apontou para o MG parado. Buzz engatou a ré, andou um pouco, virou para um lado, e depois acelerou ao máximo de ré. O MSV, esperando que o MG mudasse de direção, virou para o lado oposto e escorregou, parando em uma árvore. Buzz estava correndo para baixo de novo na estrada da torre, e o MSV, sem danos, veio atrás. Buzz tinha um dilema nada invejável. Ele descia pelas curvas com um sólido MSV na sua perseguição, e outro subia em seu encontro. Continuou acelerando e freando antes das curvas, atingindo 70 km/h antes destas. Chegando a uma curva apertada, ele viu o MSV que vinha subindo, e freou forte. A alta e súbita pressão na linha de freio foi muito para a traseira, que havia sido danificada quando ele rodou anteriormente, e ela se partiu, deixando-o sem freios. Em desespero ele puxou o freio de estacionamento o mais forte que pode e engatou a primeira soltando a embreagem. A traseira escorregou e o carro girou para fora da pista e com muita sorte foi para cima de algumas moitas que frearam o carro. Quando ele estava entendendo o que aconteceu, viu os dois MSVs incapazes de frear, bater de frente a mais de 65 km/h.
Passou um longo tempo antes de Buzz conseguir reparar o MG para a condição perfeita que tinha antes da perseguição. Foi ainda mais tempo que se passou até ele voltar a dirigir pelo vale. Agora era só nas primeiras horas do dia quando a maioria das pessoas estavam ainda dormindo. E quando ele viu nos jornais que o governo estaria em breve exigindo que os carros suportassem batidas de frente a 120 km/h, decidiu definitivamente parar de dirigir o MG.
Fim
JJ