Não são poucos os carros que rodam com a suspensão completamente rebaixada, do tipo “lambendo formiga” pelo asfalto. São alterações em molas, amortecedores, rodas, pneus e outros componentes que teoricamente deixariam o carro mais estável. Mas muitos o fazem só para se distinguir na multidão. Outros pelo prazer de acelerar, para medir forças, ou participar de competições, oficiais ou não.
Algumas destas intervenções são feitas por oficinas de comprovada competência tecnológica, tendo engenheiros ou técnicos como donos ou consultores. São carros desenvolvidos para as pistas ou simplesmente para um ganho em desempenho. As próprias fábricas costumam lançar versões esportivas e anabolizadas de seus modelos.
Mas a maioria é do tipo “fundo de quintal” e vai no “grito” mesmo, alterando e substituindo componentes sem nenhum critério técnico ou de qualidade. Na base do “achismo”.
Verdadeira “bomba-relógio”
Além da suspensão, motores podem também receber uma dose extra de adrenalina que chega a dobrar, triplicar (ou mais ainda) a potência original. Mas, nem sempre suspensão e principalmente freios são também modificados para conter — as vezes — centenas de cavalos sob o capô desta verdadeira bomba-relógio que representa risco por onde passa. E muitos os casos destes carros que provocam acidentes nas ruas.
Estes automóveis são chamados de “tunados”, “preparados”, “customizados”, quase todos fora da lei, pois o código de trânsito é explícito ao proibir que se alterem as características originais do veículo. Ou permite, desde que submetido a uma vistoria técnica por uma empresa homologada.
A restrição tem razão de ser, pois engenheiros das fábricas dedicam milhares de horas para desenvolver projetos, desenhar componentes e testar protótipos até obter a melhor relação entre desempenho e segurança do automóvel.
Consistência de um floco de neve
No mês passado, a Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados rejeitou um Projeto de Lei (2623/19) apresentado pelo deputado Giovani Cherini (PL-RS) para alterar o Código de Trânsito e permitir a modificação de elementos estruturais do automóvel. O argumento do deputado é tão consistente quanto um floco de neve: “a customização de carros é extremante popular”.
Eu critiquei o projeto deste deputado em áudio para rádio e vídeo para o portal e fui duramente criticado por uma (felizmente pequena) parte dos ouvintes e leitores. Com argumentos do tipo “o carro é meu e faço dele o que bem entender”, ou que “o governo não tem que se meter no que é meu” e até que “só mesmo no Brasil a lei proíbe alterar um automóvel”. Irresponsáveis, se esquecem de que segurança veicular não se restringe a proteger passageiros daquele veículo, mas — principalmente — os que dividem com ele as vias públicas.
A Europa é mais rigorosa
A propósito, não me esqueço de uma vez que estava em Paris e fui a uma loja de acessórios e equipamentos para automóveis. Perguntei sobre chip para aumentar a potência de motores. O vendedor me pediu para especificar o automóvel (era um VW Passat) e o motor (V-6 de 250 cv). Ele me mostrou uma lista de chips, escolhi um deles e me preparei para pagar. O vendedor me pediu então o endereço da oficina para entregar o chip. Eu argumentei ser brasileiro, carro e oficina estavam no Brasil. Ele pediu desculpas, mas, mesmo diante do meu argumento de ser um turista, não poderia infringir a lei que o proibia de entregar o chip ao dono. Só a uma oficina homologada pelo governo que o instalaria depois de analisar o carro e avaliar não ser perigoso aumentar a potência. Ou depois de tornar o sistema de freios e a suspensão adequadas para o novo desempenho. Saí da loja de mãos abanando…
Tentei imaginar o que passa pela cabeça de um deputado capaz de apresentar um projeto tão irresponsável. E, neste caso, até redigir outros igualmente surrealistas e baseados no mesmo argumento da “popularidade”: se é ilegal e perigoso, mas é “popular” com uma multidão de adeptos, por que não oficializar também os “pegas” nas ruas, o carro homologado para quatro levar sete passageiros, picapes e caminhões levar o pessoal na carroceria e outras do gênero? É tudo muito “popular” também.
Na verdade, nosso código falha ao legislar sobre vários temas. Mas tem pilares essenciais no sentido de manter a disciplina nas vias públicas, a segurança veicular, o respeito ao meio ambiente, o protocolo para conceder a habilitação e outros aspectos importantes do trânsito.
Porém, mais importante ainda é estabelecer e levar a sério uma fiscalização objetiva e eficaz nas ruas. Por enquanto, o governo só se mexe para faturar com radares. Mas os “lambedores de formiga” e quetais rodam impunemente e raramente são “importunados” pela polícia.
Nem precisava de mudar o código….
BF
A coluna “Opinião de Boris Feldman” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
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