Nasir Shaikh já é conhecido aqui na coluna “Falando de Fusca & Afins” desde a publicação da matéria “Billo. um Fusca decorado à moda dos caminhões do Paquistão”. O “Billo” e o “Bertha” fazem parte da coleção dele.
Há pouco tempo, quando enviei os meus parabéns pelo aniversário do Nasir, ele me contou que tinha deslindado o mistério de como foi que o “Bertha” acabou chegando ao Paquistão. Naquela ocasião nós combinamos contar esta história para vocês, leitoras e leitores desta coluna, e é o que está sendo feito agora. O apelido “Bertha” foi dado pelo Nasir.
Os tempos de “Bertha” na sua terra natal
A primeira fase da saga do “Bertha” foi na cidade alemã de Bocholt, no noroeste da Renânia do Norte-Vestfália, parte do distrito de Borken. Situa-se 4 km ao sul da fronteira com a Holanda. A posição de Bocholt no mapa da Alemanha pode ser visa na ilustração ao lado.
Nossa história começou em 11 de março de 1957 em Bocholt, quando Erich Hochheiser, um engenheiro eletrônico que trabalhava para a Siemens, comprou um Volkswagen de janela traseira oval com teto solar de lona. O carro recebeu a placa BOH C 554, em que BOH indica a cidade de Bocholt.
O que restou daquela transação foi o recibo de pagamento do valor da compra, de 3.295,80 marcos alemães, fornecido pela concessionária local Tekampe & Fisser.
Como era uma concessionária VW na Alemanha nos anos 1950
Em sua pesquisa, Nasir encontrou uma série de fotos da concessionária Tekampe & Fisser que seguia um padrão proposto pela Volkswagen, através de um manual de construção de concessionárias e que previa vários tamanhos de instalações. Abaixo segue a capa de uma cópia original deste manual de construção, onde Kundendienst = Atendimento ao cliente; e Gestalltung von VW Betrieben = Layout de concessionárias VW:
Usualmente, naqueles tempos, as concessionárias tinham um posto de gasolina anexo, este também era o caso da Tekampe & Fisser.
As fachadas das concessionárias eram todas padronizadas, tudo era previsto no tal manual.
Abaixo algumas fotos desta concessionária mostrando seus salões (Fotos obtidas por Nasir Shaikh):
Uma curiosidade: o colecionador Richard Hausmann construiu o seu museu particular usando por base o tal padrão proposto pela Volkswagen para suas concessionárias na década de 1950, o que pode ser visto na foto abaixo:
A família Hochheiser usou o “Bertha” como carro de uso, que acompanhou o crescimento do filho do casal, o Udo, desde pequeno.
A cidade da família Hochheiser fica no noroeste da Alemanha e eles fizeram viagens maiores até as montanhas nevadas, nesta foto o menino já está bem maior.
Erich Hochheiser e sua família usaram o carro por cerca de sete anos.
Em 1964, um funcionário da Siemens, Mohammad Shaffi, vindo do Paquistão, chegou em Bocholt e fez amizade com Erich Hochheiser, que se tornou seu companheiro na Siemens durante sua estada na Alemanha para um período de estágio. Shaffi visitou os Hochheiser como mostra a foto abaixo, na qual ele está com Udo Hochheiser no jardim da casa dos Hochheiser.
Em 18 de junho de 1964 Mohammad Shaffi comprou o carro de Erich Hochheiser e algum tempo depois, no final de seu estágio na Alemanha, exportou-o para o Paquistão.
Nasir me contou como foi que ele descobriu a história do “Bertha” na Alemanha, foi assim:
“Tudo aconteceu graças à inatividade decorrente do Covid. Durante o lockdown não havia nada para fazer, e eu estava na minha casa em Islamabad, capital do Paquistão. Então me veio a ideia de fazer esta pesquisa.
Encontrei os documentos de registro alemães no arquivo do escritório de registro aqui do Paquistão e eles me forneceram uma cópia digitalizada dos mesmos. O passo seguinte foi encontrar um Hochheiser em sua cidade natal indicada nos documentos de registro. O Sr. Hochheiser já havia falecido, mas encontrei um obituário mais recente para a Sra. Hochheiser e o endereço e número de telefone de Udo, seu filho, e da Tania, sua nora.
A Internet e o telefone foram as chaves para a localização do filho e da nora. Udo não falava inglês, mas a Tania, falava. O resto, como se costuma dizer, é história…”
Algumas das fotos que o Nassir obteve foram fornecidas pela familia Hochheiser.
O “Bertha” com a família Shaffi já no Paquistão
O carro permaneceu no uso da família Shaffi por várias décadas. Seus filhos aprenderam a dirigir nele e gostavam de dirigi-lo, saíam com ele sempre que o pai permitia. Numa ocasião, quando o sr. Shaffi não estava por perto, o filho mais novo saiu sorrateiramente com o carro sem permissão. Este Fusca, de janela traseira oval, tem volante de direção na esquerda, pois foi comprado na Alemanha, mas o trânsito no Paquistão é de mão esquerda, como no Reino Unido, portanto o volante dos carros de lá é na direita. A inexperiência combinada com a posição “errada” do banco do motorista fez com que o carro se envolvesse em um acidente e fosse seriamente danificado do lado esquerdo. Khalid, o filho mais novo, levou o carro a um mecânico local, que reparou o carro o melhor que pôde e o entregou a Khalid, que o levou para casas antes do sr. Shaffi chegar.
Ou o sr. Shaffi nunca descobriu o acontecido ou simplesmente ignorou a aventura de seu filho, mas o carro foi vendido logo em seguida.
As coisas começaram a piorar para o “Bertha”
Em algum momento, no início de 2000, o carro foi comprado por um jovem estudante de direito que queria dirigir o incomum VW de janelinha traseira oval e de teto solar de lona. O plano era usá-lo como estava e restaurá-lo quando as finanças permitissem.
As prioridades mudaram e o carro acabou em uma oficina depois de um tempo, o dono nunca mais voltou para pegá-lo. O carro permaneceu estacionado (leia-se abandonado) por mais de um ano e sofreu mais durante esse tempo, pois várias peças originais foram perdidas e as fortes chuvas de monções contribuíram para acelerar a degradação de um carro que estava sólido. O interior foi destruído e o motor precisava de uma reforma.
Nasir entra na história do “Bertha” e as coisas começam a melhorar
O Nasir conta como foi o encontro: “Encontrei o ‘Bertha’ naquela oficina abandonado em um canto e parecendo miserável. Ele quase me implorou para salvá-lo e comecei a localizar o proprietário.”
O proprietário estava se preparando para se mudar para o Reino Unido para estudos superiores e foi feito um acordo.
Enquanto isso Nasir se preparava para emigrar para o Canadá, então tudo que ele podia fazer pelo carro era inflar os pneus, colocar um pouco de óleo fresco no motor e dirigi-lo até uma garagem alugada onde permaneceu até 2011, quando ele voltou ao Paquistão. Quem foi com o Nasir para o Canadá foi o “Billo” seu outro Fusca, onde ele fez sucesso graças à sua decoração paquistanesa.
O Nasir comentou: “A década em que estive fora provou ser uma bênção, pois me deu a oportunidade de coletar as peças tão necessárias para a restauração do ‘Bertha’.”
A restauração do “Berta” ainda está em curso, a parte “cosmética” está pronta como se pode ver na foto de abertura, à exceção de pequenos itens como as setas direcionais que ainda são para 6 V e terão que ser convertidas para 12 V, conforme o sistema elétrico do carro que já está convertido.
A lasanha delatora
Pedi a Nasir que me contasse algum causo ocorrido durante a restauração, ainda inacabada, do “Bertha”, ao que ele contou:
“Existem toneladas de causos ligados à restauração do “Bertha”… Vamos a um deles: os cabeçotes de um antigo motor de 30 cv são bastante frágeis e um descuido pode torná-los inutilizáveis. Encontrar outro (s) cabeçote (s) não seria apenas caro, mas, no meu caso, um trabalho tedioso, pois peças boas em boas condições são difíceis de se encontrar no Paquistão. Munido de informações da internet, decidi substituir as guias das válvulas. Isso teve que esperar até que minha esposa estivesse fora de casa para fazer compras por um tempo mais longo e que eu pudesse usar o forno na cozinha. As novas guias de válvula foram colocadas no freezer por cerca de 48 horas antes da “operação”. O forno foi aquecido a cerca de 270 °C e os cabeçotes foram postos para aquecer! Isso permitiu a remoção segura das guias. As novas guias “resfriadas” substituíram as antigas e gastas. A “cena do crime” foi limpa antes que minha esposa voltasse para casa. Achei que tinha escapado impune, mas, alguns dias depois, quando a minha esposa preparou lasanha para uns convidados, a tal lasanha saiu cheirando a óleo de motor e querosene! Sim, eu tinha muito o que explicar… para não falar, de ter que pagar pela comida pedida com urgência em um delivery…
Algumas fotos da restauração do “Bertha” feita até o momento:
Aqui termina mais um relato do salvamento de um Fusca que já estava fadado a um fim inglório. O salvamento ora relatado ocorreu no Paquistão, na Ásia, e isto prova que existem histórias semelhantes em muitos países e eu espero que estes relatos motivem a realização de mais salvamentos.
Agradeço ao Nasir Shaikh por mais esta participação nesta coluna; o contato com ele foi feito por Facebook, WhatsApp e e-mail. Desejo ao Nasir sorte com a sua coleção e parabéns pela persistência na manutenção de seus carros, dois dos quais já são nosso conhecidos.
O Paquistão é um país muito interessante e há muito para visitar por lá, tanto relativo à sua cultura milenar, quanto às belezas naturais que incluem das maiores montanhas do mundo. No vídeo (06:44) abaixo o Paquistão é apresentado do seu lado turístico:
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