Farei um brevíssimo intervalo na saga sobre a história do automobilismo argentino, mas apenas por questões de prioridade. Prometo que semana que vem volto a torturar meus leitores com o tema, pois pelo visto aceitam a tortura com gosto e da minha parte ainda lhes devo alguns capítulos.
Acabou a temporada de Fórmula 1 sob muita polêmica. Quem me acompanha sabe o quanto critiquei o excesso de engessamento do regulamento, a falta de clareza na aplicação (ou na falta de aplicação) das regras por parte da direção de prova — embora eu tenha achado o campeonato eletrizante em termos de circuitos, disputas e pilotos, tenho muitas críticas.
Acho que houve erro para todo lado — talvez Max Verstappen tenha sido mais prejudicado do que Lewis Hamilton, mas ainda assim houve lambança a torto e direito. Fiquei feliz com o resultado? Sim, mas, novamente, não se ganha campeonato numa única corrida — isso foi resultado de todo um ano de boas estratégias, 652 voltas lideradas (ante 297 do inglês), 10 vitórias (oito de Hamilton), 10 pole positions (cinco do inglês), ou seja, deu a lógica, apesar de que tudo foi aparentemente decidido na última meia volta.
Muitos fizeram um paralelo com 2008 e o campeonato que escapou das mãos de Felipe Massa. Novamente digo: o brasileiro não perdeu propriamente o campeonato na última volta em Interlagos, embora possa parecer isso. Ele perdeu porque ao longo do ano a Ferrari errou ao liberar o carro com a mangueira de combustível engatada no Grande Prêmio de Cingapura, porque errou várias vezes na estratégia de pneus daquele ano, entre outros exemplos. Tudo isso permitiu que se Lewis Hamilton chegasse em sexto lugar seria campeão, não importando em que lugar chegasse Massa. E assim foi. Ou seja, o campeonato foi ganho por Hamilton ao longo do ano, não apenas em Interlagos, por mais triste que eu tenha ficado pois queria muito ver um brasileiro ganhar novamente um título mundial.
Também já critiquei muito jogo de equipe nos termos “Felipe, Fernando is faster than you”. Dessa forma não gosto mesmo, embora entenda e entendo especialmente quando o campeonato está perto do fim. Mas gostei muito de ver o Sérgio Pérez ajudar o Max Verstappen com manobras lindíssimas. Afinal, era a última prova do campeonato, o mexicano não tinha chance de ser campeão e seu companheiro de equipe sim.
Lembrei de um poema argentino, “Martín Fierro”, de José Hernández, que conta a saga de um “gaúcho”, o habitante dos pampas argentinos, que é recrutado à força e de forma semiescrava para defender um forte na província de Buenos Aires. Bom, a história é longa, mas o importante são os ensinamentos dele, dentro de uma grande simplicidade e com uma escrita fantástica. Sei de cor vários trechos, mas este é dos meus favoritos:
“Los hermanos sean unidos
porque ésa es la ley primera,
tengan unión verdadera,
en cualquier tiempo que sea,
porque si entre ellos se pelean
los devoran los de ajuera”.
Numa tradução livre seria algo assim:
Sejam os irmãos unidos
pois essa é a lei primeira
tenham união verdadeira,
em qualquer tempo que for,
porque se entre eles brigarem
serão devorados pelos de fora.
Pérez fez como o Martín Fierro disse que devem ser os irmãos. Unidos, para se defender daqueles de fora. Fez isso de forma brilhante, limpa e com uma coragem incrível. Vi várias vezes as manobras e não canso de elogiar — os dois pilotos, diga-se, mas sempre acho que quem está na defesa está em desvantagem e por isso acredito num mérito maior.
Mas não é sobre a corrida em si que escrevinharei estas não tão mal traçadas linhas e sim sobre a quantidade praticamente infindável de bobagens que tenho visto desde domingo. Assim como a Covid fez surgir um exército feicibuquiano de imunologistas, a corrida de Abu Dhabi tirou das trevas só Deus sabe quantos “especialistas” em Fórmula 1. Temos um exército de fiscais, pilotos e até mesmo chefes de equipe que surgiram no melhor estilo ataque zumbi — assim, do nada.
Cito aqui alguns causos:
– parada de Sérgio Pérez: li um comentário que dizia que tanto o mexicano forçou o Hamilton que ficou sem combustível, mas a pessoa ficou sem entender porque ele não voltou à prova pois havia chegado até os boxes e poderia ter reabastecido e continuado na prova. (explicação que pensei em dar, mas não tive paciência para tanto: desde 2010 é proibido o reabastecimento durante a prova);
– acidente de Latifi parte I: essa eu vi em vários comentários. Gente que dizia que poderiam ter colocado safety car virtual para remover o carro do canadense. (explicação que pensei em dar, mas não tive paciência para tanto: é obrigatória a entrada do safety car real quando há necessidade de remover um carro com grua ou trator, como era o caso. Ninguém quer repetição do que aconteceu com Jules Bianchi no GP do Japão de 2014, em Suzuka)
– acidente de Latifi parte II: Latifi teria sido comprado para provocar uma bandeira amarela. Entendo que as teorias da conspiração, por si sós, prescindem de argumentos, mas deveriam ter alguma base, não? (explicação que pensei em dar, mas não tive paciência para tanto: o Nicholas é filho do empresário iraniano Michael Latifi, cuja fortuna é estimada em US$ 2 bilhões. Aliás, uma das maiores críticas feitas ao piloto é que ele é piloto pagante, ou seja, só corre na F-1 porque paga para isso. Novamente, US$ 2 bilhões. Fala sério…)
– acidente de Latifi parte III: Latifi teria favorecido a Red Bull provocando uma bandeira amarela (explicação que pensei em dar, mas não tive paciência para tanto: o canadense corre numa equipe britânica, mesma nacionalidade do Hamilton, com câmbio e motor Mercedes, da mesma equipe do Hamilton. Faz algum sentido?)
– acidente de Latifi parte IV: “Depois dessa batida o Latifi vai correr pela Red Bull. Pode escrever” (explicação que pensei em dar, mas não tive paciência para tanto: depois que eu parasse de rir diria para a criatura que o canadense já renovou com a Williams e que por mais que ele queira não é páreo para Verstappen ou Perez numa equipe de ponta que, aliás, já renovaram para 2022. O próprio mexicano deve agradecer todo dia a papai do Céu, ou melhor, a Carlos Slim, pelo seu lugar na RDR pois embora talentoso é irregular e certamente há outros candidatos na fila, mas Latifi não é um deles)
– a FIA já tinha tudo preparado para o Max vencer o campeonato, tanto que tinha até filme pronto com ele campeão (explicação que pensei em dar, mas não tive paciência para tanto: certamente tinha outro com o Hamilton e, se houvesse uma terceira possibilidade, haveria um terceiro vídeo. É questão de antecipar os resultados possíveis e adiantar o trabalho, assim como tem todos os hinos nacionais de pilotos e construtores, ainda que com poucas chances de vitória)
– o escândalo: esta é, de longe, a mais ridícula e risível. Começa com um “fato comprovado” que diz que a Mercedes vendeu o campeonato “individual” (pelo termo nem foi escrito por alguém do meio) para ganhar “o de construtores”. A notícia estaria sendo investigada pelo “Wall Street Journal of Americas” e a Gazzeta delo (sic) Sport. Para dar uma roupagem de verdade, tem até os valores que teriam sido pagos, horário exato dos encontros (12h00, 13h00) (explicação que pensei em dar, mas não tive paciência para tanto: É o mesmo enredo que já rolou com um texto político tão absurdo quanto este. Não vou mencionar os nomes dos “executivos” envolvidos, pois os cacófatos são tão óbvios que só um robô ou um fanático das teorias da conspiração não perceberia que está sendo feito de idiota. Tem bobagens como “Michael Masi, cidadão franco-suíço”. A nota bombástica é assinada por alguém que não existe, mas que seria da Central Globo de Jornalismo — mesmo que os direitos de transmissão sejam da Band.)
Mudando de assunto: “Agora vou cuidar da minha família”. Nem preciso dizer quem é, não? Adorei a foto:
Se o leitor não sabe quem é, trata-se de Kimi Räikkönen com a família e o fisioterapeuta.
NG