Pois é, caros leitores, continuamos no momento Clóvis Bornay, aquele em que puxo uma pena e vem não uma galinha, mas uma fantasia de carnaval inteirinha. A cada coluna sobre automobilismo argentino aparece outro assunto. Bem, não percam as esperanças que em algum momento isto acaba. Ou não, sei lá eu.
Esta semana, atendendo a pedidos, falarei sobre o Di Tella (foto de abertura), um carro argentino feito localmente com capitais nacionais. Qualquer um que tenha ido à Argentina nos anos 1960 e 70 (ou até mesmo algumas décadas depois, já que os carros duram muito, muito mesmo nas ruas do país) deve ter notado praticamente uma frota inteira de táxis deste modelo. Mas como a história da empresa em si é muito importante para se entender o contexto em que este carro foi criado e produzido e preciso me alongar um pouco mais nela. Assim, esta é a primeira parte da saga do Di Tella aqui no Autoentusiastas.
Buenos Aires há meio século era um mar de Di Tellas pretos com o teto amarelo — característica dos táxis locais. E já começo as minhas digressões: o modelo foi tão importante para a categoria que foi homenageado com uma estátua no Monumento ao Taxista, na icônica Puerto Madero, exatamente em frente ao Dique 4, na esquina da rua Macacha Güemes e da Av. dos Italianos.
O monumento tem tamanho natural e é uma homenagem aos milhares de motoristas de táxi mas também, claro, ao próprio Di Tella. Foi inaugurado em novembro de 2012 e criado pelo artista plástico Fernando Pugliese por encomenda do Sindicato dos Motoristas de Táxi da cidade. É feito de um material sintético muito comum na indústria naval — uma combinação de polímeros especiais que suporta as intempéries e que depois de tratado com uma pátina especial fica com aspecto de bronze — mas a um custo muito inferior do que se tivesse sido usado o metal.
E agora vamos à digressão nº 2 (não percam a conta, certamente serão muitas): a opção pelo Di Tella, especificamente um Siam Di Tella 1500 modelo 1967, também levou em consideração uma novela muitíssimo popular nos anos 1970, “Rolando Rivas, taxista”, escrita por um dos mais prolíficos autores de novelas argentinas, Alberto Migré. Era a história, claro, de um motorista de táxi, o tal Rolando Rivas, interpretado pelo ator Claudio García Satur, que ficou marcado pelo papel, tal a popularidade da novela e que dirigia justamente um Di Tella, com suas lanternas traseiras tão peculiares.
Embora a Argentina não seja especialmente conhecida pela produção noveleira, houve uma época em que as pessoas realmente paravam de fazer qualquer coisa para sentar diante da televisão e acompanhar cada capítulo. Na minha casa não tínhamos o hábito de ver novelas, então embora eu morasse lá naquela época só me lembro da repercussão que esta provocou, mas não cheguei a assistir nenhum capítulo. Lembro que uma das atrizes era minha xará – Nora Cárpena. No Brasil, nos anos 1990 o SBT fez uma refilmagem da novela que se chamou Antônio Alves, taxista, com Fábio Jr no papel principal e que foi durissimamente criticada, ao contrário da original.
Como já mencionei aqui, havia outros modelos de táxi rodando na Argentina, especialmente Peugeot 404 e 504 e Ford Falcon, mas os Di Tella tinham custo de manutenção realmente baixo graças a sua mecânica simples – tanto que não raro viam-se veículos com 500.000 quilômetros rodados com apenas substituições simples e eventual retífica de motor. Outra informação nem sei se tão útil, mas vá lá: o uso das cores preta e amarela para táxis vinha de uma lei de 1967 de Buenos Aires – até aquele ano, os carros podiam ter qualquer cor, bastando apenas que tivesse a “bandeira” do taxímetro com a palavra “livre” em letras brancas sobre fundo vermelho — assim como em São Paulo.
E mais uma digressão antes de voltar ao assunto principal: Buenos Aires tem uma quantidade gigantesca de praças e estátuas. É tão incrível que quando estou lá com estrangeiros, especialmente brasileiros, não canso de mostrar o Monumento a Chapeuzinho Vermelho, no lindo Parque Palermo como um desses exemplos. Juro. Ele existe, assim como outro monte de homenagens, algumas deveras bizarras.
Voltemos, então, ao assunto desta coluna. Depois da derrubada de Juan Domingo Perón da presidência da república, em setembro de 1955, os militares fecharam o Congresso, depuseram os membros da Suprema Corte e colocaram Eduardo Lonardi na presidência — que havia liderado a “Revolução Libertadora”, como ficou conhecida toda esta história. Mas seu governo durou apenas 52 dias, pois foi derrubado pelo general Pedro Eugenio Aramburu. Vou pular os detalhes pois, como tudo o que diz respeito à política argentina, parece roteiro de novela e, neste caso, envolve o cancelamento da Constituição, a entrada em vigor de uma Constituição antiga e até mesmo a criação de uma “junta consultiva” que incluía, além dos militares, representantes de quase todos os partidos – exceto o Peronista, que estava banido — e eleições para escolha de constituintes — que apenas decidiram pela prevalência da Constituição antiga, sem toda a reforma feita em 1949. Não me peçam para explicar como estas coisas são possíveis. Mas são e foram.
Pulemos, então, dois anos e cheguemos ao momento em que os militares entregaram o poder e, por meio de eleições, Arturo Frondizi foi eleito presidente. Ele era um político experiente, filiado ao partido da União Cívica Radical que, como já expliquei aqui, apesar do nome de radical nunca teve nada. Para não variar, Frondizi enfrentou tentativas de golpes militares, exatamente seis em menos de quatro anos, até que algumas semanas antes de terminar o mandato foi derrubado por um golpe militar.
Bem, vou pular toda a questão política que é, acreditem, muitíssimo mais rocambolesca do que o que já contei até aqui e vou focar apenas num ponto: Frondizi era desenvolvimentista e implementou uma política de fomento à indústria, especialmente a de base. Foi a época da construção das grandes hidrelétricas, rodovias, da autossuficiência em petróleo e, no geral, do início de uma década de expansão industrial. Frondizi deu início a uma política de industrialização nacionalista, mas, ao contrário de seu antecessor Perón, sem o uso de subsídios e com fomento ao capital estrangeiro. Entre os principais setores incentivados para substituir as importações estavam o automobilístico, o petrolífero, o petroquímico, o metalúrgico e o de maquinaria — tudo tendo em vista um mercado interno bastante protegido.
As indústrias Siam Di Tella já existiam na Argentina e sempre tiveram um papel muito relevante na história do país, seja pelo engajamento do patricarca, Torcuato Di Tella na industrialização do país, seja pela filantropia, pela criação de uma universidade e até mesmo pelo envolvimento da família na diplomacia argentina.
Mas a origem da empresa, na verdade, se deveu a uma combinação de circunstâncias com oportunidade. Torcuato Di Tella, nasceu na Itália em 1892 e chegou à Argentina aos 13 anos. Poucos anos depois, uma greve de padeiros por melhores condições de trabalho terminou numa exigência do governo de Buenos Aires de que as padarias deveriam ter máquinas de amassar pão como forma de evitar conflitos com os sindicatos.
Di Tella, com somente 18 anos, viu o cavalo passar encilhado e não perdeu a chance. Ele estimou que seriam necessárias 700 máquinas para Buenos Aires e outras 5.000 para o restante do país, e perguntou a dois irmãos italianos mecânicos e amigos dele, Guido e Alfredo Allegrucci, se eles poderiam fazer um produto melhor do que os importados. Nascia assim a sociedade que patenteou a primeira máquina argentina de amassar pão com o pouquíssimo mercadológico nome de S.I.A.M. (Sociedade Industrial de Amassadoras Mecânicas). Sim, como já disse neste espaço, eram épocas de zero conhecimento de “márquetchim”. Com o sucesso do produto, que tinha diversos diferenciais em relação ao que já existia no mercado mundial, em pouco tempo Di Tella assumiu o controle total da empresa.
Alguns anos depois, a empresa começou a produzir geladeiras, caracterizadas então pela alça com uma bolinha na ponta (cuja fabricação continua até hoje depois de que a fábrica foi comprada pela empresa argentina Newsan que investiu US$ 35 milhões nela em 2014) e mais tarde máquinas de lavar roupa, fogões, aparelhos de tevê, bombas de combustível para postos de gasolina, transformadores elétricos, tubos de aço, geradores para locomotivas, motos e carros. Nos anos 1940 a empresa era a maior indústria metal-mecânica da América do Sul. Só de geladeiras eram produzidas 11.000 ao ano, mas nos anos 1960 chegava às 70.000 unidades ao ano que chegaram a ter um ano de espera e somava 9.000 funcionários num total de 13 fábricas de onde saíam 250 produtos de diversos segmentos.
Em 1948, com a morte do patriarca, os filhos Guido e Torcuato assumem a empresa e a renomeiam Siam Di Tella.
Como na Argentina a política permeia absolutamente qualquer história, sou obrigada a voltar ao tema: em 1972, no governo de Alejandro Agustín Lanusse, a empresa foi nacionalizada depois de ir à falência. Lanusse derrubou o presidente anterior, o também militar Juan Carlos Onganía, que também assumira o poder ao derrubar o presidente Arturo Illía, que foi eleito para substituir Frondizi, que a estas alturas do campeonato estava preso e fora do governo… vocês ainda continuam aqui ou já se perderam nestas histórias? Acho engraçadíssimo quando vejo norte-americanos que sabem de cor a ordem dos presidentes da república e seus nomes. No caso da Argentina, até o momento em que escrevo esta coluna foram 51, ante 46 dos EUA, mas lá se vão 246 anos de república no vizinho do Norte e apenas 206 anos no do Sul — mas com muito mais emoção nestas paragens…
Bom, depois da falência e da nacionalização, em 1986, já no governo de Raúl Alfonsín, a Siam foi dividida e vendida a três grupos privados: Techint, Pérez-Companc e Aurora, mas nunca mais chegou nem perto de ser o que fora. E sobre o resto da história sigo na semana que vem.
Mudando de assunto: sei que ainda falta para o Dia dos Namorados, mas achei esta foto um verdadeiro “amasso”.
NG