Foi em 1968 ou 1969. Aquele dia na concessionária VW no Rio de Janeiro, da qual eu era sócio, fora extenuante e me bateu aquela dor de cabeça. Resolvi ir para casa um pouco mais cedo do que o habitual. Em vez de 7h30 ou 8h00 da noite, peguei o carro, a Vemaguet ’63, um pouco antes das sete.
No caminho da casa, de Botafogo à Gávea, rádio ligado ouvindo boa música, às sete horas ouço o conhecido, “Em Brasília, dezenove horas”, esperando ouvir os primeiros acordes do prefixo musical da Voz do Brasil, “O Guarani”, a bela ária da ópera homônima composta por Antônio Carlos Gomes quando o Brasil ainda era um império. Mas outra música é executada, um hino. Não a identifiquei, tampouco foi anunciado qual era, mas eu sabia que já o tinha escutado em algum lugar. Desliguei o rádio.
Banho, uma aspirina Bayer, jantar. E aquela música diferente me martelava a cabeça.
Olhei o relógio, faltavam três minutos para 20 horas. Quis ouvir o hino novamente, ligo o rádio e pontualmente escuto o “Boa noite” de fim do programa e hino é tocado novamente, como sufixo musical.
Naquele momento — se fosse hoje eu diria que o meu “HD” deu a resposta, mas computador naquela época nem em sonho — minha memória funcionou: Hino Nacional da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Como eu conhecia o hino? Foi jantando na casa do amigo Jorge Lettry, em São Paulo. Lettry, ex-chefe de competições da Vemag,, agora era sócio-diretor da Puma, Eu havia vindo a São Bernardo do Campo, tratar de assuntos da concessionária na Volkswagen e aproveitei para visitá-lo.
Um parêntese. Antes do jantar ele comentou que teríamos bife de fígado. Como eu não tinha cerimônia com ele, disse que não gostava de fígado. Ele riu e disse :”É porque você não conhece o bife de fígado da minha mãe”. Dona Onorina Lettry, italiana como o Jorge, viúva, morava com ele. Até hoje tenho na memória gustativa aquele bife de fígado, tão rico e saboroso que era. Jorge tinha toda razão…
No descontraído bate-papo durante o jantar surgiu o assunto hinos e comentamos o Hino das Mil Milhas Brasileiras, executado na primeira corrida em 23/24 de novembro de 1956, a qual assisti quando tinha 14 anos, de passar a noite em Interlagos! Se você nunca o ouviu, aqui está.
Do Hino das Mil Milhas a conversa mudou para os hinos nacionais, pelos quais o Jorge era apaixonado e que por isso tinha vários em casa, quebradiços discos de goma-laca, de 78 rpm. Terminado o jantar, ele começou a pôr os discos para rodar: alemão, americano, sueco, polonês, enfim, uma longa sucessão de hinos.
— Acho que esse você não conhece — e colocou-o para eu ouvir. Achei lindo e perguntei de que país
Veio a resposta: da URSS. Ele contou que quando a Segunda Guerra Mundial terminou na Europa em 8 de maio de 1945, a Rádio Panamericana (atual Jovem Pan) deu ampla cobertura do fato e perguntou, no ar, se alguém tinha o disco do Hino Nacional da URSS, um dos quatro aliados (junto com Estados Unidos, Inglaterra e França) na guerra contra o Eixo (Alemanha, Itália e Japão. Esse é o hino:
O Jorge prontamente levou o disco ao estúdio da emissora, ficou colado ao disco o tempo todo com receio que o quebrassem, e assim os quaro aliados tiveram seus hinos executados. O grande amigo nos deixou em 16/5/2008 aos 78 anos.
Como terminou
No dia seguinte contei para o pessoal da Cota (nome da concessionária) o que havia acontecido na “Voz do Brasil”, todos perplexos, alguns duvidando e perguntando como seria possível aquilo em pleno regime militar. Á noite ouvi novamente o programa radiofônico em cadeia nacional e lá estava o hino da URSS.
No outro dia calhou de ir a concessionária um cliente que era capitão do exército (não posso revelar seu nome, cuja iniciais são L.L.) e que pelas conversas anteriores eu sabia ser das forças de segurança Quando lhe contei a respeito do hino e justamente onde, foi executado, mostrou um misto de grande surpresa com incredulidade. Pedi-lhe que escutasse a “Voz do Brasil” naquela noite. E de novo, o hino. Só no dia seguinte o prefixo mudou para o que está até hoje (acho), o Hino da Independência.
Alguns dias depois o capitão foi à concessionária e, claro, lhe perguntei a respeito do episódio.
— Confidencial, Bob, não posso falar.
BS