Um dos itens que formou o estado da arte na construção de automóveis na Europa e em especial na Alemanha, na década de ’30, foi a suspensão independente nas quatro rodas, e aí é que entra Edmund Rumpler com sua invenção.
O VW Fusca foi um resultado deste estado da arte, também conhecido como Zeitgeist, presente nas décadas de ’20 e ‘30. Os itens que formavam este estado da arte eram, basicamente, chassi de tubo central, motor traseiro arrefecido a ar, carroceria aerodinâmica e suspensão independente nas quatro rodas. E este último item só foi possível através do invento de Edmund Rumpler, de 1903, como veremos adiante. Trata-se especificamente da suspensão traseira por semieixos oscilantes combinada com eixo motriz.
Nascido em 1870 de uma família judia pobre, em Viena, Edmund Rumpler cedo apaixonou-se pela ideia de voos de aeronaves mais pesadas que o ar. Mas, como isso ainda não era uma realidade — o primeiro só ocorreria em 1906 com o 14-Bis de Santos-Dumont — depois de se formar em engenharia em 1895 ele se engajou temporariamente à nascente indústria automobilística. Na tenra idade de 25 anos ele foi nomeado diretor técnico da Nesselsdorfer Wagenbau-Fabriks-Gesellschaft (que ficava no que hoje é Koprvnice, na República Checa), um fabricante de vagões ferroviários e carroças ansioso para se expandir para a produção de automóveis. Seu assistente nessa empreitada era Hans Ledwinka, ainda mais jovem com 18 anos na época. A empresa Nesselsdorfer acabaria se tornando a Tatra, e Ledwinka teria uma carreira brilhante lá. Mas Ledwinka deve a Rumpler mais gratidão do que apenas ele ter dado a Ledwinka o seu primeiro emprego.
O primeiro carro de Rumpler e Ledwinka na Nesselsdorfer foi um fracasso, devido a um motor defeituoso, um problema recorrente que atormentaria Rumpler. Ele mudou-se para o fabricante Adler, em Berlim, onde ficou insatisfeito com os acionamentos por corrente simples e grosseiros então comumente em uso, bem como o peso excessivo da alternativa de eixos traseiros rígidos com árvore de transmissão. Assim, em 1903, ele inventou e patenteou algo verdadeiramente novo e original: o semieixo oscilante, a primeira suspensão traseira independente em eixo motriz.
Foi construído um protótipo, mas houve problemas com os pneus muito estreitos e duros da época, que lidavam mal com as mudanças de câmber inerentes ao sistema de semieixos oscilantes. Assim, a Adler não adotou esta invenção de início, embora o tubo de torque da junta esférica, outra das invenções de Rumpler, tenha sido amplamente empregado internacionalmente. Os semieixos oscilantes teriam que esperar seu tempo até que ambos, Rumpler e Ledwinka (e outros inclusive nos EUA¹) o colocassem separadamente em bom uso.
Aqui está o brilho do projeto dos semieixos oscilantes como usado por muitos, particularmente pela Tatra. Ele dispensou qualquer junta universal cara e de fácil desgaste. Como pode ser visto aqui, a grande coroa de cada semieixo pode girar livremente em um arco em torno dos pinhões (pequenos) da árvores de transmissão. Os dois semieixos são sustentados pelas duas sapatas-guia semicirculares dentro da carcaça do diferencial redonda.
Abaixo se pode ver o mesmo desenho básico usado ainda hoje nos caminhões Tatra, que são lendários por suas proezas fora-de-estrada e durabilidade:
A Volkswagen usou um tipo diferente de articulação: a extremidade interna da semiárvore, em forma de espátula e com duas placas de deslizamento, uma de cada lado, eram inseridas na planetária, onde se articulava. Uma solução simples e muito robusta, embora em princípio não tanto quanto o estilo Tatra. Mas a versão da Volkswagen foi otimizada com sucesso para uma produção em massa de menor custo, mostrando-se extremamente confiável e livre de manutenção, solução usada até o último Vocho, em 30 de julho de 2003.
De qualquer forma, até que surgissem sistemas de suspensão melhores do que os de semieixos oscilantes foram o caminho a seguir.
Voo
À medida que o voo motorizado se tornou realidade, o primeiro interesse de Rumpler também decolou. Ele adquiriu a licença alemã para o avião austríaco Taube (Pombo) projetado por Ignaz “Igo” Etrich em 1909, um design elegante e avançado. Rumpler logo os construiu em números significativos para vários usos, inclusive para os militares durante a Primeira Guerra Mundial. Rumpler projetou um avançado motor V-8 para ele, mas —mais uma vez— não teve sucesso, e a maioria era movida por um motor Daimler de quatro cilindros. O Taube tornou Rumpler bem-sucedido e famoso.
Ele fundou a Rumpler Air Service, um serviço de transporte pioneiro na Alemanha, transportando um ou dois passageiros nos pequenos aviões da época.
Mas Rumpler pensou grande, e foi o primeiro a conceber, em detalhes, a ideia muito abrangente do transporte internacional aéreo mais pesado que o ar. Em 1921 ele criou a The Trans-Oceanic Company, e em 1927 revelou este conceito de um avião anfíbio gigante, tipo asa voadora (passageiros alojados na asa), com dez motores, para 175 passageiros:
Isto estava simplesmente muito à frente de seu tempo, então ele voltou sua atenção de volta para os carros.
Voltando aos carros
Dado o quanto a aerodinâmica é crítica na aviação, não é surpresa que Rumpler tenha feito da eficiência aerodinâmica um elemento-chave em seu pensamento. Sem dúvida, ele estava ciente do Alfa Romeo de 1913 que havia sido reencarroçado pela Carrozzeria Castagna, a pedido do Conde Marco Ricotti. Foi um caso isolado e, devido ao calor excessivo do motor dentro da carroceria e de seu lugar incomum de instalação, logo foi transformado em um carro aberto, perdendo parte de sua eficiência aerodinâmica:
O Tropfenwagen (carro-gota) de Rumpler de 1921 abordou o problema de maneira bem diferente, pois era tudo menos uma mera carroceria aerodinâmica em um chassi convencional:
O Tropfenwagen era montado sobre um chassi revolucionário, que é essencialmente semelhante ao chassi tipo skate que sustenta Teslas e um número crescente de carros elétricos atuais. A foto abaixo mostra o carro visto pela traseira, e podemos ver os semieixos oscilantes com feixes de molas um-quarto elípticas e os braços de controle. Logo à frente está o câmbio de quatro marchas e depois o incomum motor 2,3-litros W-6 com suas três bancadas de dois cilindros para fazer um motor bem curto e rígido em posição central-traseira da estrutura de aço bastante leve. À frente do motor havia aberturas na estrutura para permitir o armazenamento de dois estepes.
O Tropfenwagen foi menos um veículo de produção e mais um exercício de projeto/engenharia em andamento para atrair os fabricantes de automóveis existentes para licenciá-lo. Assim, foram construídos vários estilos e tamanhos diferentes de carroceria, desde limusines de 6-7 lugares até um carro aberto bastante compacto e um cupê. Em parte, isto foi para mostrar a flexibilidade do conceito, bem como para ver quais despertariam mais interesse. Cerca de 20 destas várias primeiras séries do Tropfenwagens foram construídas, incluindo duas enviadas para os EUA para atrair os fabricantes de carros americanos, movidos por um motor Continental de seis cilindros. O motor W-6 de Rumpler novamente apresentava algumas deficiências, assim as versões posteriores utilizavam um Daimler de quatro cilindros com válvulas no cabeçote.
É difícil dizer qual foi o aspecto mais revolucionário ou influente do Tropfenwagen; sua aerodinâmica ou seu chassi extremamente avançado e único, suspensão traseira independente e trem de força. Mas pelo menos podemos colocar um número difícil de bater em seu arrasto aerodinâmico, que a Volkswagen levantou em 1979 em seu novo avançado túnel de vento. Eles testaram um Tropfenwagen, um Tatra 87 de 1940 e um protótipo de sedã BMW Kamm de 1939. Aqui estão os números concretos:
Embora o Rumpler tivesse uma área frontal significativamente maior (A) devido à sua grande altura, seu coeficiente de arrasto aerodinâmico (Cd) 0,28 era muito menor para compensar a diferença e ainda tem a menor área frontal corrigida (Cd x A). O Cd — Cx, como usamos no Brasil — 0,28 do Tropfenwagen não havia sido igualado pelos carros de produção mais aerodinâmicos até meados da década de 1980, uma conquista verdadeiramente estelar. E isso explica como excedia facilmente a velocidade de 100 km/h com apenas 36 cv.
Abaixo um vídeo (02:02) com Tropfenwagens em ação:
Embora o Tropfenwagen não tenha sido realmente bem-sucedido por si só, a Benz comprou uma licença, pois viu claramente seu potencial — e Ferdinand Porsche trabalhou no projeto do carro baseado nesta patente. E, claro, Hans Ledwinka da Tatra adotou a suspensão traseira por semieixo oscilante, que ainda está sendo usada em caminhões Tatra hoje em dia. O semieixo oscilante foi adotado por várias marcas, principalmente empresas alemãs e austríacas, que valorizavam muito a melhor condução que este sistema oferecia.
E dentro de alguns anos, Ledwinka assumiria o tema aerodinâmico com força total.
O Tropfenwagen estava muito à frente de seu tempo, e sua influência foi vasta. Ele foi o profeta da era aerodinâmica e o Volkswagen foi um produto disso. Ele acendeu uma onda de conceitos de motores traseiros em carros aerodinâmicos e de carros reais. Um destes primeiros foi o projetado por Sir Dennistoun Burney. O Burney Streamline de 1930 foi um dos dois passos intermediários mais óbvios entre o Tropfenwagen e o Tatra 77 de 1933. Infelizmente, seu longo e pesado motor de seis cilindros arrefecido a água saliente da traseira não era o ideal. As consequências do excesso de peso nas rodas traseiras de um carro com motor traseiro logo se tornariam conhecidas e afetariam significativamente o projeto do VW Fusca.
Rumpler passou para a tração nas quatro rodas, embora sem sucesso. Sua carreira chegou efetivamente ao fim em 1933, dado à sua origem judia. Sua esposa e filhos mudaram-se para Viena, mas ele ficou para trás, vendeu sua empresa para a Ambi-Budd, a filial alemã da Budd Company, pioneira na construção de carrocerias de aço e que viria a ser a fornecedora da carroceria do Kübelwagen para a Volkswagen; e que foi empregadora do engenheiro Joseph Ledwinka, irmão de Hans Ledwinka da Tatra. Rumpler deu consultoria para a Chrysler sobre questões de suspensão e afins. Ele morreu de causas naturais em 1940, aos 70 anos.
(1) – Rumpler tinha patenteado o sistema com semieixos oscilantes para o ambiente europeu somente.
Curiosamente o primeiro carro que entrou em produção equipado com o sistema de semieixos oscilantes foi o Cornelian em 1913, fabricado pela Blood Brothers Manufacturing Company de Kalamazoo, estado de Michigan, EUA. Cerca de 100 carros foram vendidos antes da fabricação ser suspensa em 1915 quando a Blood Brothers se dedicou à sua intenção inicial, produzir juntas universais. O projeto do carro foi feito por Louis Joseph Chevrolet (1878-1941) para a Blood Brothers. O carro teve uma exposição interessante ao participar da 500 Milhas de Indianápolis, mas desapareceu sem deixar uma impressão marcante entre os projetistas da época.
Este fato deixou Rumpler muito contrariado e fez com que ele tratasse suas patentes com mais cuidado, aumentando suas abrangências.
A pesquisa para esta matéria se baseou basicamente no site Curbsite Classic, aliado à minhas anotações sobre o assunto que foram base para a palestra “O Fusca na Europa”. Também lancei mão das anotações que foram coletadas para minha matéria “Quem nasceu primeiro a galinha ou o ovo”.
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