Não me esqueço de um dia, no final da década de 70, quando alguém ligou para a redação do jornal perguntando se eu teria interesse em conhecer um dispositivo revolucionário, que iria conferir uma segurança jamais imaginada para o automóvel. A trapizonga se chamava “Auto-Brake”, “Magic-Brake” ou coisa que o valha. Claro que me interessei e recebi, no dia seguinte, um envelope com uma papelada que descrevia, ilustrava, explicava e exaltava um aparelho com funcionamento eletromecânico, para “evitar que as rodas deslizassem no asfalto numa freada de emergência”. Um complicado mecanismo que atuava no circuito hidráulico do freio. Não me lembro se tinha sido desenvolvido para aplicação pela fábrica na linha de montagem ou se poderia também ser instalado pela concessionária ou oficina. Fiz algumas questões adicionais, nunca respondidas: se foi aprovado ou certificado por algum órgão técnico, que fábricas iriam utilizá-lo, se era nacional ou importado, quem daria manutenção e seu custo.
Mas a descrição correspondia exatamente ao funcionamento de um dispositivo eletrônico chamado ABS (anti-lock brake system) que a Bosch lançaria na Alemanha poucos meses depois (1978), num Mercedes-Benz classe S. Não descobri se o “Magic-Brake” funcionaria de fato, mas de qualquer maneira foi logo atropelado por um similar eletrônico. Ou seja, sem chances de competir.
Ninguém fazia ideia, há quase 50 anos, de que o sistema ABS para osf reios era uma pálida amostra do que viria a significar a eletrônica veicular. Já tem algumas décadas que toda a modernização do automóvel é baseada na informática. Os avanços mecânicos quase nada representaram frente às infinitas possibilidades do gerenciamento eletrônico que tomou conta de todos os sistemas do carro: motor, câmbio, freio, suspensão e direção. Além de dezenas de dispositivos de segurança, conforto, informação e entretenimento. Mas o principal deles, a soma de todos e mais alguns, ainda não chegou: carro autônomo.
Mas, por outro lado…
Se, por um lado, a eletrônica tornou o carro mais seguro, eficiente, confortável, aerodinâmico, interativo e adequado ao meio ambiente, por outro ela representa uma ameaça à privacidade do motorista. O automóvel tem hoje computadores que recebem centenas de informaçõesa partir de dezenas de sensores, registros telefônicos e internet. É capaz de registrar a localização e o itinerário do carro a cada segundo e os principais pontos onde se deteve.
Não existe uma legislação específica para limitar o acesso e compartilhamento dessas informações pelas fabricantes de veículos automotores e empresas de informática a elas associadas. O dono do carro não faz sequer ideia de que tem vasculhada toda a sua vida nem que uso se faz delas, pois a decisão não é dele.. A fabricantes sabe seu estilo de vida, os restaurantes, hotéis e teatros de sua preferência. Em que posto abastece, ou em qual McDonald’s come seu sanduíche. Que lojas ou shoppings frequenta, onde leva o carro para manutenção ou com quem se comunica pelo celular.
E também como dirige: quais suas reações ao volante, se é tranquilo ou agitado, se acelera perigosamente nas curvas da estrada, se faz incursões noturnas em zonas duvidosas ou “perigosas”. Os sistemas informatizados são de grande utilidade, praticidade e até permitem ao motorista pedir socorro em caso de pane ou acidente, reservar hotéis, entradas e passagens de aviões. Podem alertar para problemas no carro, sugerir a concessionária mais próxima para onde levá-lo no caso de um problema e ainda deixá-la avisada de sua chegada e as peças necessárias para o reparo.
Aí é que mora o perigo
Mas aí está o grande perigo desta megainformatização veicular, pois a vida do dono do carro passa a ser um “livro aberto” e nem imagina quantas empresas podem estar fazendo uso indiscriminado de todos seus registros pessoais e profissionais, repassando-os, por exemplo, para seguradoras, concessionárias, empresas de financiamento, cartões e dezenas de outras. Até, sabe-se lá, para órgãos fiscalizadores do governo.
Nada muito diferente de alguém navegando num computador ou celular, detendo, porém, informações mais detalhadas e valiosas. Que deixa no chinelo o “Grande Irmão”, (entenda o que é) ou Big Brother (irmão mais velho), do livro “1984” do britânico George Orwell, publicado pela primeira vez em 1949 (imagem de abertura).
Um passo mais ousado da indústria automobilística, como o carro autônomo, vai esbarrar também em problemas jurídicos — quem é o responsável por um acidente, por exemplo — para ser homologado.
Mas toda esta indiscrição baseada no automóvel como fonte fidedigna de informações já vem sendo utilizada livremente por falta de uma legislação específica.
E ainda não se percebem sinais concretos de um impedimento legal à esta invasão de privacidade.
BF
A coluna “Opinião de Boris Feldman” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
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