Estes dias meu amigo Henrique Carlos Mariani me enviou a notícia “A Man and His Bug” — Um homem e seu Fusca, que reproduzo abaixo, com a pergunta se aquilo seria verdade. Eu coloquei a ilustração desta notícia como foto de abertura desta matéria. Quem escreveu esta notícia certamente gosta muito da cultura greco-romana, como vocês logo verão
Um homem e seu Fusca
Esopo¹ ficaria satisfeito. Há muito tempo, em 1963, Albert Klein comprou um humilde e despretensioso Fusca (VW 1200) e percorreu o mundo com ele. Com o passar do tempo, Albert passou a pensar no Fusca como um amigo genuíno, um camarada. Como Androcles², ele achou a amizade recompensada muitas vezes na confiabilidade do Fusca, embora ao longo dos anos tenha, sido necessário trocar sete motores e três câmbios Albert, um arquiteto, mantinha um registro diário de suas viagens, a maioria das quais em torno de sua casa no sul da Califórnia, mas que também os levava até a América do Sul.
Suas peregrinações no Fusca eram uma forma relaxante de solidão, sem restrições e despercebida na faixa da direita da rodovia. Em 14 de julho de 1987, eles percorreram o milionésimo quilômetro juntos. Firme como a Tartaruga, Albert encontrou a si mesmo e seu Fusca perto do recorde de 2.90 milhões de quilômetros (registrado por um Mercedes-Benz 180 D 1957 do Estado de Washington), e seus passeios continuam. A Volkswagen deu a Albert um novo Fox para homenageá-lo por sua façanha, mas ele ainda prefere seu Fusca. Que lugar, afinal, tem uma raposa (Fox em inglês) em uma fábula³?
(¹) Esopo: foi um escritor da Grécia Antiga a quem são atribuídas várias fábulas populares.
(²) Androcles: personagem do conto popular escrito no século II pelo romano Aulo Gélio. Este conto, “Androcles e o Leão”, conta a história de um escravo fugitivo que salva a vida de um leão, e ambos ficam amigos. Tempos depois o leão salva a vida do Androcles. Há uma fábula anterior de Esopo, “O Leão e o Rato”, que é conceitualmente muito semelhante.
(³) Este trocadilho com o Fox, que quer dizer raposa, faz mais sentido no idioma inglês; mas está em linha com uma fábula de Esopo: “A raposa e as uvas”. Aliás, esse Fox só pode ser o Voyage exportado para os EUA e Canadá, dado que só existiram três Fox no universo VW: o primeiro foi o Audi Fox (Audi 80 na Europa), o segundo foi o Voyage exportado para os EUA e Canadá com esse nome, e o terceiro, o Fox fabricado aqui a partir de 2002 e que ficou em produção até o ano passado.
Pesquisei e confirmei que a notícia acima, se bem que telegráfica, estava certa, mas ficou um certo gosto de “quero mais”. Ficaram perguntas como quem era Albert Klein e como ele conseguiu atingir a marca de 2’596.324 quilômetros rodados com um Fusca.
Pesquisando na internet , encontrei a reprodução de um capítulo do livro “Complete Volkswagen Book” publicado em 1977 e editado pela revista Hot Rod;. O que eu consegui foram fotos de uma cópia xerox meio amassada do livro, o que complicou um pouco o resgate do texto. Este capítulo se chama: “500,000 Thousand Mile VW Beetle” — O Fusca de 500.000 milhas (800.000 km). Foi um achado e tanto, pois o jornalista Jim Norris transcreve uma entrevista detalhada com Albert Klein e que vai até o Fusca 1963 dele ter ultrapassado a barreira dos 800.000 quilômetros. Com isto temos um relato de como a primeira parte desta incrível jornada foi realizada. Surpreenda-se com a leitura que se segue:
O Fusca de 800.000 quilômetros
Uma campanha de venda maciça nos disse que o VW Rabbit (VW Golf nos EUA, lançado lá em 1974) é mais carro que o VW Fusca. Em outras palavras, o Rabbit deve ser mais rápido, mais econômico, mais estável em ventos laterais, mais espaçoso e mais bonito. Nos disseram que o Rabbit vai durar mais também. Todas essas coisas podem ser verdade. Mas o Besouro era conhecido por uma durabilidade de rocha. Sem isto, a lenda do Besouro teria sido abortada há muito tempo. Quando um VW Rabbit atingir 800.000 quilômetros, a história do humilde e feio Fusca terá dado lugar ao novo campeão de durabilidade. Mas até que isso aconteça, o Besouro continuará sentado solidamente no seu trono.
Para um ex-artilheiro do exército alemão, Albert Klein não vai se separar de seu Fusca de 800 mil quilômetros até que outro carro prove durar mais. O caso de amor de Klein com o Fusca é uma história que combina com as brumas da lenda. “A única maneira de eu ter outro carro agora é se meu Fusca der perda total em um acidente”, disse Klein.
O arquiteto de Los Angeles dirige seu sedã Tipo 1 1963 para o trabalho todos os dias, uma distância de quase 100 quilômetros. Na última contagem, antes de Klein voltar à Alemanha para férias de duas semanas, seu Fusca estava curtindo os louros da glória de 840.078 quilômetros e ansioso para adicionar mais ao seu hodômetro.
Klein, que agora tem 55 anos, se alistou no exército alemão aos 19 anos e, em 1941, se viu parte de um avanço precipitado na região do Cáucaso, rica em petróleo, no sul da Rússia. O VW Beetle, é claro, com sua carroceria de Kübelwagen durante a guerra, era parte integrante do apoio de transporte do exército alemão, mas como ele disse, “Para Rommel, na África, o Kübelwagen era mais vital naquela fase da guerra, e além disso, não tivemos muitas perdas totais e, portanto, não tivemos que pedir nenhum carro.”
No outono de 1942, a unidade de artilharia de Klein, que havia sido anexada ao 11º Exército de Mannstein, na Crimeia, foi transferida para assuntos mais urgentes com o 6º Exército de Von Paulus. O objetivo dessa unidade era uma movimentação para cercar toda a defesa russa diante de uma portentosa idade às margens do Volga chamada Stalingrado.
“Mesmo assim, os Kübelwagens que começaram a aparecer tinham tração em duas rodas apenas — exceto os Schwimmwagens, que tinham tração nas quatro rodas”. Mas os Kübelwagens que tinham apenas tração traseira eram muito leves e realmente conseguiram passar na lama, enquanto nossos outros veículos com tração nas quatro rodas atolavam. E se os Kübelwagens atolassem era fácil empurrá-los para fora do atoleiro.
“Em nossa unidade, os Kübelwagens que chegaram no inverno de 1942 não tiveram prioridade, por causa da situação e, portanto, qualquer pessoa, seja um oficial ou um soldado, poderia dirigi-los se houvesse uma necessidade urgente”.
Klein não precisou consertá-los na frente de batalha, mas ele ficou rapidamente impressionado com a adaptabilidade e resistência do pequeno carro nas condições miseráveis que subitamente surgiram ao redor de sua unidade. As coisas tinham mudado drasticamente desde alguns meses antes apenas e as decisões de emergência começaram a aparecer.
“Na situação de agravamento da guerra, todos os homens solteiros tiveram a opção de ficar ou tirar férias em outubro, a fim de liberar o maior número possível de homens casados durante o Natal.
“O transporte para casa foi feito por trem ou por aviões Junkers. Os Kübelwagens foram retidos na frente de batalha porque eram desesperadamente necessários” Klein disse.
“Quando terminei minhas férias e estava pronto para voltar, me disseram que a frente estava selada e que ninguém poderia retornar. O resto da guerra eu passei em outras áreas.”
Perguntamos a nós mesmos quantos dos Kübelwagens de Stalingrado ainda estariam funcionando hoje em algum lugar na Rússia.
Após a guerra, Klein terminou seus estudos e emigrou para o Canadá, onde a primeira providência foii comprar um carro. À luz de sua experiência na guerra, a primeira escolha de Klein foi surpreendente.
“Em 1964, eu não queria comprar um Volkswagen, eu queria comprar um Henry J, porque me disseram que tinha motor do Jeep 4-cilinndros, o Go Devil. Naquela época, meu raciocínio era comprar um carro que era produzido no país em que se estava. Foi um raciocínio razoável. Mas ninguém poderia prever que o Henry J não seria mais produzido.
“Eu estava em uma encruzilhada. Eu não queria comprar um carro usado. Por algum tempo eu pensei em comprar um Austin usado, ou um Morris Minor usado, mas as pessoas que eu conhecia e que os tinham não estavam satisfeitas, e eu sabia que havia apenas um carro novo que eu pudesse comprar.”
Klein comprou seu primeiro VW em 7 de abril de 1954 em Toronto por US$ 1.540, incluindo rádio, impostos e emplacamento. Lembrando que o preço base deste carro nos Estados Unidos era de US$ 1.636, mas o preço que Klein pagou, incluindo o rádio, deve estar entre os líderes de todos os tempos em custo-benefício. Este carro foi destruído — com quase 200 mil km rodados praticamente livre de problemas — em uma colisão bizarra com um poste de cerca no Canadá ao ser dirigido em alta velocidade numa tempestade.
O VW seguinte, 1964, tinha sido planejado para acompanhar Klein em sua pretendida volta à Alemanha, mas alguns assuntos atrapalharam os planos. Depois ele passou três anos no Brasil com parentes. Tentando sua ideia de reassentamento na Alemanha, Klein ficou pouco mais de um ano em sua casa em Kirchheim unter Teck, nas cercanias de Stuttgart. Mas ele retornou aos EUA, onde resolveu ficar, com vários percursos automobilísticos longos em vista como parte do acordo que fechou por lá. Eram o tipo de viagens que Klein tinha em mente, não is típicas de férias para as montanhas mais próximas. Viajar por grandes distâncias estava definitivamente em seu sangue.
“Uma vez, quando voltei da Alemanha, percorri 17.200 quilômetros em três semanas e meia, com o meu Volkswagen. Dirigi de Toronto, rumo sul até a Flórida, depois ao longo da Costa do Golfo, entrando no México em Laredo, depois para a Cidade do México, Acapulco, e de volta por Tucson. Não foi muito, apenas uma viagem de férias….”
Outra vez, ele saiu do trabalho em Los Angeles na tarde de sexta-feira, parou para buscar uma namorada na vizinha West Covina e partiu de lá às 21h “para uma viagem ao norte”. Alguns quilômetros adiante às 7h da manhã de quarta-feira, os dois estavam em Fairbankks, no Alasca, “dirigindo direto”, com Klein ao volante o tempo todo.
Em 1959, logo após o acidente, Klein vendeu as peças sobressalentes do ’54 que tinha dado perda total e comprou um Fusca 1960 logo que as vendas começaram. Dos três Fuscas que possuiu, Klein tem certeza de que este foi o melhor, mas lamenta tê-lo vendido cedo demais. “Ele tinha apenas 148.000 quilômetros, e a única coisa que deu errado, fora um novo jogo de pneus, foi trocar uma fechadura da porta.”
Klein disse: “Eu tinha comprado o segundo VW em 23 de janeiro de 1960, em Toronto, e atravessei a fronteira para os EUA em 28 de agosto. Não havia nada de errado com ele quando finalmente o vendi, para comprar meu VW 1963… Eu tinha decidido que queria comprar um Fusca novo outra vez. Mas, eu deveria ter ficado com o meu 1960, que era pouco rodado.”
O segredo de Klein para a longevidade do VW? As trocas de óleo a cada 2.500 quilômetros e a regulagem das válvulas a cada 7.500 km são as duas coisas mais importantes que se pode fazer para a longevidade do motor de um Fusca, segundo com ele.
Então chegou a hora do recordista do Fusca de 1963 — na última contagem, 840.078 quilômetros, e ainda subindo. Klein é mais prático do que filosófico, no entanto.
“Neste momento, conheço os Volkswagens por dentro e por fora. Sei como consertá-los e sei o que há de errado com eles. Por que comprar outro carro se sei tudo deste?
Não é uma má lógica.
Termino a primeira parte desta matéria aqui; ela será concluída na semana que vem. Na parte 2 Klein dará algumas dicas de como aumentar a longevidade de um motor boxer arrefecido a ar.
O recorde final que o Klein conseguiu foi, em números redondos, de 2,6 milhões de quilômetros. Mas o que foi apresentado nesta parte 1, e será continuado na parte 2, é como ele chegou aos 800.000 quilômetros, que já foi um feito. O prazo que esta descrição contempla foi de 14 anos, mas a sua saga com seu Fusca ’63 levou 34 anos no total!
AG