A história da corrida de longa duração mais importante do mundo é relembrada anualmente no evento chamado Le Mans Classics, onde dezenas de antigos bólidos de competição participam de corridas no Circuito de La Sarthe, em Le Mans, para reviver seus tempos de glória. Junto com o Festival de Goodwood, na Inglaterra, e a corrida anual de Laguna Seca, nos Estados Unidos, estes eventos reúnem carros de grande valor histórico (e monetário). Neste ano, em Le Mans, um dos pontos mais comentados foi o acidente com o famoso Ferrari “Breadvan”, avaliado em algo perto dos 30 milhões de dólares.
Mas, afinal, o que é o tal do Breadvan, ou numa tradução livre, algo como o Van do Padeiro, que voltou a ser notícia este ano? Este carro único recebeu o apelido de jornalistas ingleses por conta de sua carroceria com o estranho formato de traseira reta, que lembrava um furgão de entregas da época. E não foi feito na Ferrari.
O FERRARI FEITO PARA ATACAR A FERRARI
Talvez um dos mais famosos carros a levar o emblema da Escuderia nos anos 60, na realidade, foi feito fora dos muros de Maranello, sem nenhuma ligação com a Ferrari. Muito pelo contrário, ele nasceu para combater os carros da equipe oficial de Enzo Ferrari.
Tudo começou em outubro de 1961, em um ano caótico dentro da Ferrari, quando os dirigentes da empresa não suportavam mais as constantes interferências da sra. Laura Ferrari, esposa de Enzo. Ela perambulava pela fábrica, querendo saber de tudo e de todos, e sendo a esposa do chefe, todos tinham que respeita-la e abaixar a cabeça. Esta situação chegou a um ponto insustentável, depois de muitos serem chamados por ela de ladrões, conspiradores e outros tantos “amigáveis’ adjetivos.
Girolamo Gardini, o diretor comercial responsável pelas vendas da Ferrari, foi o primeiro alvo e arranjar problemas para si mesmo, sendo literalmente censurado. Era um momento de crise administrativa na empresa, onde o Comendador regia com punhos de aço todos os seus funcionários para suas vontades fossem feitas, gostassem eles ou não. Muito se fala sobre o acontecimento, especialmente que o “mandante” das censuras na verdade foi a esposa de Ferrari, dadas as desavenças entre ela e Gardini. Laura vinha tendo muitos problemas, seu casamento era uma grande farsa e sua saúde não ia bem, e Enzo deixava isso claro a todos na empresa, mas nem ele continha os ímpetos da esposa.
Muito se revoltaram com os absurdos que vinham acontecendo dentro da empresa neste quesito, e enviaram uma carta à Enzo por meio de um advogado, demandando que Laura não mais interferisse no trabalho dos dirigentes. Quem aparecia no rodapé da carta eram: Girolamo Gardini, Federico Giberti que era gerente de compras, Enzo Selmi que era o gerente de RH (imaginem como deveria ser o trabalho deste pobre coitado), Ermanno della Casa, o gerente administrativo geral, Romolo Tavoni, diretor esportivo, Fausto Galassi, responsável pela fundição da Ferrari, e que já teria até apanhado de Laura, Carlo Chiti, o gerente de projetos e Giotto Bizzarrini, responsável pelos testes e construção de protótipos.
Obviamente, enviar uma carta, por meio de um advogado, a Enzo Ferrari demandando que sua esposa fosse silenciada, era nada menos que um suicídio profissional premeditado. E foram todos muito bem sucedidos neste quesito. No mesmo dia, Enzo colocou todos na rua.
O resultado da demissão em massa na Ferrari resultou em alguns desdobramentos, entre eles a criação da empresa ATS (Automobili Turismo i Sport), de vida curta, com a proposta de fabricar carros esporte para concorrer com Ferrari, uma vez que todos os seus homens fortes de criação estavam disponíveis para fazer o que quisessem e poderiam criar carros tão bons, ou melhores, que Enzo. Junto com os demitidos da Ferrari, havia uma pessoa de fora que investiu na ideia, chamado Conde Giovanni Volpi.
Volpi vinha de uma rica família de Veneza e tinha sua própria equipe, a Escuderia Serenissima, que disputava muitas provas na Europa, principalmente com carros da Ferrari. O fato de ser um dos grandes clientes da Ferrari atraía atenções de Maranello, e não demorou para a notícia de que Volpi estava apoiando o grupo de ex-funcionários de Enzo o deixou bem chateado, para dizer o mínimo.
Enzo, sendo Enzo, imediatamente cancelou os pedidos de novos carros que Volpi tinha com ele, inclusive dois dos novos 250 GTO, recém criados. O lendário 250 GTO havia sido criado pelo grupo que Ferrari demitiu, especialmente Carlo Chiti na parte de projeto e Giotto Bizzarrini na construção dos protótipos e testes. Ambos sabiam muito bem dos pontos fortes, e principalmente, os pontos fracos do GTO.
Conde Volpi estava revoltado com o descaso de Ferrari ao cancelar suas encomendas, e queria dar uma lição no Comendador. Por que não criar um Ferrari melhor do que o novo GTO e esfregar na cara de Enzo? Todos acharam que seria um ótima ideia.
Partindo de um modelo 250 GT Berlinetta SWB (short wheelbase, entreeixos curto), mais especificamente o chassi número 2819GT que havia sido comprado da equipe belga Ecurie Francorchamps, Chiti e Bizzarrini projetaram algo que podemos chamar de um “GTO Evolution”. Motor mais baixo e mais recuado, suspensão revisada e muitos alívios de peso estavam na lista de melhorias. O principal seria uma nova carroceria feita por Piero Drogo, ex-piloto e especialista em carrocerias.
Com o motor reposicionado, a equipe de Drogo conseguiu fazer a frente mais baixa, e na traseira, utilizou um conceito ainda novo para a época, com uma quebra brusca e vertical no fim das linhas traseiras. Este conceito era conhecido, criado por Wunibald Kamm, engenheiro suíço naturalizado alemão no começo do século XX. Foi também utilizado no Cobra Daytona, que contamos aqui no AE. A ideia deste conceito, estranho ao olhar, é uma redução no arrasto aerodinâmico e consequentemente maior velocidade final.
O novo Ferrari de Chiti, Bizzarrini e Volpi era mais leve e mais rápido que o 250 GTO. Em Le Mans de 1962, enquanto o Breadvan andou, esteve na frente dos GTOs. Se não fosse um cardã quebrado, poderia ter derrotado Enzo em seu próprio território.
Depois de Le Mans, o Breadvan disputou mais algumas poucas corridas, vencendo até na categoria em que participava, depois passou por muitos donos, indo parar até em Detroit, nos Estados Unidos.
O LEGADO DO BREADVAN
Mesmo com Ferrari de Volpi não tendo uma longa vida nas competições, os aprendizados do projeto ficaram com seus criadores, especialmente com Piero Drogo. Nascido em Vignale Monferrato, depois da Segunda Guerra Mundial ele e sua família se mudaram para a Venezuela, onde começou uma carreira de piloto. Voltando para a Itália no fim dos anos 50, Piero se juntou com Lino Marchesini e Celso Cavalieri e surgiu a Carrozzeria Sports Cars, ou apenas CSC.
Piero não participava diretamente da criação das carrocerias, ele não era projetista nem designer, mas era um bom administrador e gerenciava muito bem o que seus clientes pediam e o que seu time de criação era capaz de entregar. Como ele era o contato dos clientes com a CSC, acabou ficando conhecido como o homem da empresa, então até hoje os carros feitos pelas CSC acabam sendo identificados como “Drogo”, assim como os Pininfarina e Bertone.
Quatro modelos acabaram tendo inspirações diretas do que foi feito no Ferrari de Volpi, com tantos outros pegando alguns detalhes do desenho do Breadvan.
FERRARI 250 GT SWB (CHASSI 2053GT)
Um dos carros que recebeu uma carroceria similar a do Breadvan foi o chassi 2053GT, nascido como um 250 GT SWB sem carroceria, mas que teve uma passagem muito peculiar no contexto do surgimento do Ferrari Breadvan. Este chassi foi usado pela Ferrari, no caso por Chiti e Bizzarrini, para ser o carro de testes do novo GTO.
Com uma carroceria rústica, mas que já se assemelhava ao GTO, o 2053GT foi usado em inúmeros testes pelo time de Bizzarrini para desenvolver a versão de produção do GTO. Depois de servir sua função como carro de testes, foi desmontado e o chassi vendido, sendo encarroçado como um Berlinetta para a equipe Garage Francorchamps.
Durante a 1000 km de Nürburgring de 1962, o 2053GT sofreu um acidente que danificou consideravelmente sua carroceria Berlinetta, e foi enviada para a CSC para ser reparada. O resultado foi uma carroceria com uma frente bem baixa, assim como o Breadvan, e uma traseira de perfil afilado.
O 2053GT infelizmente não sobreviveu por muito tempo com a nova roupagem da CSC. Em 1964, na 500 km de Spa-Francorchamps, o Ferrari foi destruído em um forte acidente, e nunca mais foi reconstruído.
FERRARI 250 GT SWB (CHASSIS 2735GT/3611GT)
O segundo Ferrari a passar pelas mãos de Drogo para uma atualização foi o chassi 2735GT, que assim como o Breadvan original, iniciou sua vida como um 250 GT Berlinetta de entre-eixos curto. Este carro, entretanto, teve um histórico excepcional. Ninguém menos que Stirling Moss o pilotou no ano de 1961, vencendo todas as corridas que participou, com exceção da 24 Horas de Le Mans e do Tour de France, onde não chegou ao final.
Durante o Tourist Trophy, em Goodwood, de 1962, a dupla de pilotos Chris Kerrison e Robin Benson conduziam o Berlinetta quando um acidente danificou consideravelmente o carro. Assim como o chassi 2053GT, este também foi parar na CSC para uma reconstrução.
Seguindo as linhas quase idênticas do 2053GT reformulado, o carro que antes era um Berlinetta nas mãos de Stirling Moss, agora seria um aerodinâmico GT de frente baixa e motor recuado. Este, por sua vez, era um dos melhores motores V-12 disponíveis, na especificação Testa Rossa, com a maior potência até então disponível dentre os modelos oferecidos pela Ferrari.
O novo “Drogo” permaneceu em atividade entre 1963 e 1964, quando começou a trocar de mãos em várias oportunidades, até que em 1980 a carroceria especial foi removida e instalada no chassi 3611GT, que era um 250 GTE, para que o chassi original recebesse novamente uma carroceria Berlinetta igual à que Stirling Moss usava, e é como o carro está até hoje. A carroceria feita na CSC está até hoje no 3611GT
MASERATI TIPO 151/3
O Maserati Tipo 151 original, também chamado de 151/1, tinha uma carroceria um tanto quanto esquisita. Criada em 1962 por Giulio Alfieri, projetista chefe da Maserati, as linhas foram refinadas usando o túnel de vento. Alfieri utilizou o mesmo conceito “Kamm” do Ferrari Breadvan, e tinha uma frente baixa e alongada, mas o motor V-8 pedia um grande ressalto no capô para acomodar o sistema de admissão.
Na pista, os três carros fabricados mostravam bom desempenho, mas a durabilidade era questionável. Dois carros pertenciam a Briggs Cunninham e um a Maserati France. Melhorias foram sendo feitas, até que um dos carros chegou à CSC em 1964 para modificações.
Mantendo o conceito “Kamm”, e somando características desenvolvidas no “Ferrari do padeiro”, o Maserati teve o motor recuado e rebaixado, e a nova carroceria tinha uma traseira mais alta e contínua, assim como o Ferrari. Com o uso de um sistema Lucas de injeção de combustível, mais compacto, o capô pode ser mantido o mais baixo possível, sem a necessidade do grande calombo que existia no 151 original. As melhorias feitas no carro o tornaram mais veloz e com melhores características de estabilidade, pois a bitola e o entre-eixos foram aumentados.
Para 1965, o motor teve sua cilindrda aumentad. O carro já passava dos 310 km/h no ano anterior, e com as alterações no V-8, poderia igualar seu desempenho aos Ferraris de Maranello. Infelizmente no final da reta de Mulsanne, por conta da chuva que caía durantes os treinos, o Tipo 151 saiu da pista, matando o piloto e destruindo o carro, o único feito por Drogo e seu time.
Hoje, apenas um dos 151/1 originais existe, e uma réplica do 151/3 foi feita.
ISO RIVOLTA BREADVAN
Talvez o mais misterioso de todos os parentes esquecidos do Ferrari 2819GT seja uma das crias de Bizzarrini vindas de seu tempo trabalhando com Renzo Rivolta na ISO Rivolta.
Não se sabe muito sobre o passado dos ISO que Bizzarrini enviou para Piero Drogo e a CSC para receberem carrocerias similares a do Ferrari, e não foi apenas um carro, mas sim três. Existem algumas variações na carroceria entre os modelos hoje conhecidos, como pequenas diferenças nas aberturas de ventilação no bico do carro e nos conjuntos de faróis dianteiros.
Por motivos óbvios, os ISO não tinham o incrível V-12 Ferrari, mas sim a mesma mecânica que o modelo IR300, a base de produção dos três carros, que no caso era o Chevrolet small block V-8 de 5,3 litros (327 pol³). Assim como os IR300 originais, os Breadvan tinham eixo traseiro De Dion, algo ainda comum na época.
Poucos registros existem dos históricos de corridas destes carros, mas o que se sabe é que participaram de algumas corridas locais na Itália, como subidas de montanha, muito comuns no país e em alguns outros locais da Europa.
De todos, os ISO são os que mais se assemelham ao Ferrari de Volpi quando falamos da carroceria. Sem o emblema no bico do carro, ficaria bem difícil diferenciar os dois a uma certa distância. E sendo tão parecidos, por que não tiveram um histórico registrado na mesma época?
Difícil dizer. Há quem diga que os ISOs não são da época, que foram feitos posteriormente baseados no Ferrari. Até pode ser, mas acho pouco provável. Custaria muito dinheiro fazer um trabalho artesanal como eram feitos na época para chegar em carrocerias “como originais de fábrica”.
Independente de rumores de sua originalidade, os ISOs são magníficos, assim como o Ferrari que Volpi, Bizzarrini e Chiti criaram para peitar de frente o Comendador.
Aproveito para parabenizar todos os papais no seu dia!
MB