Sou sócio há muitos anos do Brezelfenstervereinigung e.V., um clube alemão de VW Fuscas antigos. Seu nome remete ao apelido dos VW Fuscas de duas janelinhas traseiras na Alemanha, que é “Brezelfenster”¹ adicionado a “Vereinigung” que é associação. Meu número de sócio é BFV 915.
Recebo o boletim interno deste clube, das Brezelfenster, que em sua edição nº 2/2022 trouxe um artigo que trata de um achado de celeiro cuja história que me chamou a atenção e decidi, com a devida permissão do clube, reproduzir aqui em minha coluna.
Este achado de celeiro foi relatado pelo Dr. Stephan Huttner, da cidade alemã de Bayreuth. no estado da Bavária, onde ele tem uma importante clínica de cirurgia geral. Mas para esta matéria o que está valendo é o seu lado de colecionador raiz, daqueles que põem a mão na massa na restauração de carros antigos, preferencialmente Volkswagens. Vamos à matéria:
O raro do celeiro
Depois de 43 anos parado o VW Käfer Cabriolé-Oval fabricado em 1953 recebeu um novo sopro de vida.
Este é um clássico ‘achado de celeiro’. No entanto, com um período de “gestação” bastante longo, porque se passaram 43 anos do carro parado, praticamente abandonado, para que um dos primeiros Cabriolés fabricados pudesse ser gentilmente empurrado para fora de um celeiro em direção à uma nova vida em movimento.
“Um motor de VW Käfer que gira”, pensei comigo mesmo, “também funciona”. Essa foi uma das primeiras coisas que verifiquei. Quando o besouro ainda estava onde se encontrava o motor deixou-se girar, não estava travado!
Após o resgate, que foi mesmo uma grande aventura o óleo do motor foi trocado, desmontei o carburador e dei-lhe um banho no aparelho de limpeza com ultrassom, depois vieram velas e platinado novos. Com a bateria de 6 volts do meu Dickholmer² ’58 preto, que sempre removo no inverno, e com o combustível do camburão, tentei dar a partida. Em um minuto ele estava lá. Funcionando. E funcionando. E funcionando³. Bem, quase funcionando, ele ainda precisa de um carinho a mais. Mas, pelo menos, o motor pegou. E isto após 43 anos de inatividade. A sua trajetória segue depois de 63 anos, o motor de quatro cilindros de 30 cv é um motor de reposição que tinha sido instalado em um veículo seis anos mais velho.
É um carro com — digamos — uma pátina atraente, que finalmente consegui adquirir depois de muitas décadas conhecendo o carro e vários anos persuadindo seu dono.
E ele não tem somente uma história extraordinariamente longa como objeto que ficou parado, mas uma história anterior passada na cidade de Bayreuth. Porque a sua “vida” ativa de VW Käfer foi nesta cidade que, dentre outros aspectos, é famosa pelo teatro dedicado especialmente à obra do grande compositor Richard Wagner e onde são realizados festivais anuais das suas óperas.
Este Cabriolé foi produzido no dia 19 de maio de 1953. Pintado em cinza prata metálico, equipado com vários extras que podiam ser encomendados naquele tempo, incluindo rádio Telefunken, sistema lava para-brisa da SWF e ainda bancos reclináveis e interior em couro vermelho — um extra que praticamente não existia na época. Até onde eu saiba, só era possível encomendar estofamento em material sintético imitando couro, como extra.
Recentemente eu recebi a “certidão de nascimento” deste carro, emitida pelo AutoMuseum Volkswagen de Wolfsburg. Nela constam as primeiras informações, a saber: em 23 de maio de 1953, o belo Cabriolé foi despachado para o revendedor VW Krauss da cidade de Nuremberg, que fica a 66 km de Bayreuth. Tanto quanto sei, o carro foi utilizado em Bayreuth por um funcionário sênior companhia de energia elétrica BELG. O proprietário anterior, de quem eu comprei este carro, o via estacionado em seu caminho para a escola na década de 1960. E em algum momento nos anos 70 ele o comprou.
Em 1978, este ex-proprietário ainda participou com ele de um evento de carros clássicos. O carro já estava surrado na época… e só era conduzido com placa vermelha4. E um pouco depois deste passeio, o Cabriolé, então repintado com uma indefinida cor verde acinzentado, é deixado atrás de uma porta de um celeiro no distrito sul de Bayreuth.
O dono anterior sempre me disse que gostaria de pôr a mão na massa e restaurá-lo para que sua filha o pudesse dirigir quando tivesse 18 anos. Mas o Cabriolé se tornou algo como a Bela Adormecida em seu sono profundo; porém sempre foi um pouco acompanhado pelos meus pensamentos. O antigo dono e eu éramos membros da Guilda de Atiradores do Unteres Thor (Schützengilde Unteres Thor) de Bayreuth e nos encontrávamos lá, ocasiões em que ele sempre me contava sobre o carro. Porém acabamos perdendo um pouco o contato por causa do seu serviço militar e de meus estudos de medicina. Mas eu continuei perguntando a ele sobre o carro. Sua resposta era sempre: “Ele está bem e seco”.
Mas eu tinha outros projetos chegando primeiro: entre eles um VW Käfer 1302 ano 1972 de família (o primeiro que eu mesmo restaurei), meu VW Käfer Dickholmer preto de 1958 (em estado original não restaurado), um novo Kübelwagen (VW 181) ano 1972, versão militar, que tinha pertencido ao Exército Alemão e um Gutbrod Superior5, de idade semelhante ao Cabriolé aqui apresentado (construído em 1952 e igualmente raro).
Mas eu não conseguia tirar o Cabriolé da cabeça e, na verdade, eu fiquei falando sobre este carro com o proprietário anterior durante décadas.
Mas ele não quis nem me mostrar o Cabriolé, mas não me proibiu de procurá-lo esses anos todos. Junto com meu amigo mecânico de longa data, Klaus Steinberger, percorremos inúmeros celeiros no distrito de Bayreuth. Depois de um dia e meio, nós realmente o encontramos, lá estava ele, bastante empoeirado, no andar térreo de um celeiro. Algum tempo depois, por razões de espaço, o carro teve que ser transferido para a porão do celeiro, de onde finalmente consegui recuperá-lo há algumas semanas, isto depois que o proprietário, em um dado momento, ligou e disse: “Agora eu vou dá-lo a você”.
O local e o estado no qual finalmente o Cabriolé começou a ser resgatado pode ser visto na foto de abertura.
O resgate do porão do celeiro não foi tão fácil, na verdade foi uma aventura e tanto. O carro estava ali parado sobre um chão macio de cascalho e argila. Depois de prender a corda para rebocá-lo no corpo do eixo dianteiro, vimos logo que a roda traseira direita estava presa…
Trabalhamos com todos os truques possíveis e finalmente, ao puxá-lo para cima do reboque, a roda que estava presa se soltou.
Foi necessário uma retroescavadeira para arrastar o carro para fora do porão daquele celeiro, uma manobra delicada dado o estado do Cabriolé, como veremos adiante.
Como mencionado no início, para nossa grande satisfação conseguimos colocar o motor em funcionamento novamente com bastante facilidade.
No entanto, também é muito importante que, na verdade, todos os itens mais valiosos do Cabriolé estão preservados. Como a pequena janela traseira original Sekurit.
O Cabriolé acabou recebendo pisca-piscas dianteiros e lanternas traseiras com luzes direcionais, já que a lei alemã exige estes itens para que os carros possam circular. Mas este carro originalmente tinha “bananinhas” (semáforos direcionais rebatíveis). Por sorte elas estavam encaixadas em seu lugar original, atrás da coluna B, escondidos por toscas chapas aparafusadas na carroceria (como pode ser visto na primeira foto depois da de entrada). Isto foi um grande achado, pois elas estão em excelente estado. E o mais importante: elas são mais estreitas do que as “bananinhas” do Sedan, praticamente impossíveis de se achar:
O carro possui o rádio original Telefunken, e o interior completo com detalhes raros como o espelho retrovisor interno giratório, um acessório de época:
Estão presentes todos os puxadores e manivelas de janela; as máquinas dos vidros das janelas estão funcionando sem problemas, inclusive das janelas traseiras, e os caixilhos de janela cromados felizmente não estão danificados. Até a lona para a proteção da capota quando aberta e do interior do carro quando o carro estiver estacionado com o teto aberto ainda está lá.
A capota original está essencialmente em ordem e provavelmente pode ser preservada em grande parte, mas o enorme dano de ferrugem na plataforma e na carroceria está além das minhas possibilidades de mecânico amador, como logo veremos.
Neste meio tempo eu consegui encontrar as lanternas traseiras em forma de coração que acompanham o ano de fabricação 1953:
Seguem-se as fotos do desastre, elas só dão uma ideia da extensão total dos danos…
Mas eu já tinha um plano diferente a esse respeito há um bom tempo. Isto porque, por uma feliz coincidência, eu entrei em contato com uma pequena e ativa oficina há muitos anos durante as várias férias que passei na Hungria no Lago Balaton. Na pequena cidade de Marcali (aproximadamente 12.000 habitantes), dez minutos ao sul do lago, há uma pequena empresa especializada na restauração de Volkswagens e Porsches antigos. Ao longo dos anos, uma verdadeira amizade se desenvolveu entre o chefe da oficina, seu filho e eu. Eles trabalham meticulosamente e com altíssima qualidade. Quando lhes contei sobre o Cabriolé e seu estado desolador, eles disseram: “Stephan, traga-nos o seu carro, nós vamos resolver isso para você.”
Pois foi exatamente para lá que o Cabriolé foi; sendo que os próprios amigos húngaros o vieram buscar há algumas semanas. Estive lá naquela oficina recentemente, e o conversível está em boa companhia entre dois projetos de Porsche 356:
Mas… não há pressa, porque certamente levará anos para localizar todos os “danos dramáticos”, repará-los, e assim beijar a rara “Bela Adormecida” de Osnabrück para acordá-la novamente e transformar sua pátina, pelo menos externamente, de volta em “cinza prata metálico” …
Terei o maior prazer em informar sobre o progresso da restauração.
Ficaria muito satisfeito em receber quaisquer outras informações, dicas, sugestões ou perguntas sobre o tema do Cabriolé Oval 1953.
Com minhas saudações amigas arrefecidas a ar
Dr. Stephan Huttner – sócio BFV 2056
Notas de rodapé
(¹) – Brezelfenster:
Este apelido vem da forma de um pão tradicional alemão, o Brezel, que tem uma forma entrelaçada que lembra as duas janelinhas dos VW Fuscas até 1953. Este pão foi criado por monges que procuravam uma forma que remetesse à oração. Isto ocorreu na Idade Média e a forma de se rezar nos claustros era abraçando seus próprios braços. A palavra Brezel seria originária do latim braccellus, ‘bracelete’, ou de brachiatus, ‘dotado de braços’, em alusão ao formato que sugere braços cruzados, no caso em oração.
Então juntando o “Brezel” — o tal tipo de pão, mais “Fenster” – janela, resultou “Brezelfenster”.
(²) – Dickholmer:
Esta é uma gíria dos amantes de VW Käfer antigos na Alemanha. Dick — gordo e Holm — coluna, ou seja, Dickholmer é que tem uma coluna gorda ou larga. E isto caracteriza os carros pré-1964, pois neste ano, na Alemanha, a área envidraçada dos VW Käfer foi aumentada e com isto as colunas A e B ficaram mais “magras”, ou melhor finas.
(³) – Es läuft, und läuft, und läuft
Esta foi a maneira que o Dr. Dr. Stephan Huttner tinha descrito que o motor estava funcionando e eu traduzi como “Funcionando. E funcionando. Pois, curiosamente, como ocorre com muitas palavras em alemão, o verbo “laufen” quer dizer andar e, também, funcionar.
Mas a expressão “Es läuft, und läuft, und läuft” – e anda, e anda, e anda… vem de uma antiga, e muito famosa, propaganda alemã do Fusca que representava a longevidade e confiabilidade do VW Käfer.
Abaixo o vídeo (00:43) desta propaganda que termina com o locutor repetindo muitas vezes “Läuft, und läuft, und läft…”, ou seja, anda, e anda, e anda, e anda…:
(4) – Placa vermelha:
Na Alemanha existe a possibilidade de se requerer uma placa vermelha temporária especial para carros de coleção que circulam poucos dias por ano. Esta requisição é por um tempo determinado e só se pagam os impostos proporcionais ao tempo de vigência solicitado mais umas poucas taxas. Com isto se reduzem os custos de manutenção de carros antigos. As placas são cedidas pela prefeitura e depois têm que ser devolvidas lá.
O que no contexto desta matéria quer dizer que esse já não era mais um carro de uso diário.
(5) – Gutbrod Superior:
Este carro não é um Volkswagen. O Gutbrod Superior é um carro pequeno, construído de 1950 até 1954 pela fabricante alemã Gutbrod. Foram construídos 6.860 sedans com amplo teto solar, que abria em todo o comprimento do teto, e 866 peruas, em menos de quatro anos. O Gutbrod Superior tinha motor 2-cilindros 2-tempos e foi o primeiro motor de ciclo Otto do mundo a ter injeção de combustível, no caso da Bosch.
Agradecimento, parabéns e boa sorte para este projeto ao Dr. Stephan Huttner, fico na espera dos updates sobre a restauração que ele prometeu. São dele todas as fotos que não tiverem uma indicação específica.
Agradecimento especial ao amigo Jürgen Grendel da diretoria do Brezelfentervereinigung e.V. na qual é redator do boletim das Brezelfenster.
Ele atendeu rapidamente o meu pedido de envio das fotos da matéria original, pois a reprodução das fotos impressas no boletim certamente não teria uma qualidade boa. Ele também enviou o texto o que facilitou bastante o trabalho. Este material foi recebido por WhatsApp.
Abaixo uma foto de nós dois em nosso encontro durante o evento de Bad Camberg 2015:
AG
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