Conforme já havia prometido, começo hoje a contar sobre o destino de minhas mais recentes férias: Catar e Tanzânia. Hoje vou falar sobre o Catar que, embora esteja em evidência por causa da Copa do Mundo, é bastante pouco conhecido em geral. Eu mesma, apesar de alguma pesquisa que fiz antes de embarcar, me surpreendi com várias coisas.
Em primeiro lugar, caros leitores, não cometam um erro comum aos brasileiros que vão para lá de férias: o Catar é muito, muito diferente dos Emirados Árabes Unidos. Com a popularização de Dubai e de Abu Dhabi como destino de viagem — graças, especialmente, às promoções e à possibilidade de stopover dada pela companhia aérea Emirates – muita gente foi para os EAU nos últimos tempos.
Eu mesma estive há poucos anos numa parada estratégica de alguns dias na ida e outros na volta na minha viagem para a Austrália e Nova Zelândia.
São dois países árabes, muçulmanos sunitas, mas extremamente diferentes entre si. O Catar é mais fechado em termos de hábitos e cultura do que os EAU e isso é perceptível para quem vem de fora.
Estivemos um total de pouco mais de 10 dias inteiros, em dois períodos —na ida e na volta da África. Vale a pena? Muito. Tem coisa para fazer 10 dias? Sim, mas é um pouco complicado. Talvez a maior dificuldade seja a falta de clareza nas normas. Bebida alcoólica é ilegal? Não, exceto beber em público ou se embebedar (que é crime) e bebida só pode ser comprada em exatos 35 lugares em todo o país (quando eu estive, para a Copa vão liberar um pouquinho mais).
Nós não encontramos nenhum em toda nossa estadia — não que não pudéssemos ficar sem beber álcool, claro que não era problema, mas procurei achar por curiosidade e não consegui. Mesmo num restaurante que constava cerveja sem álcool no cardápio, na realidade, não havia. Mesmo assim, na volta de Zanzibar apreenderam minhas duas garrafas de gim tanzaniano que pretendia trazer ao Brasil.
Estavam na mala, não sou qatari nem muçulmana, não ia vender nem fornecer a ninguém no país, mas apenas trazer para o Brasil e mesmo assim foram apreendidas no aeroporto. O chato é que em nenhum momento fomos avisados disso — e a proibição não constava das normas de bagagem da própria Qatar Airlines que incluíam os itens de sempre: não entrar no país com armas, não despachar baterias, etc. etc. Pena porque o tal “Konyagui” é realmente muito bom. Paciência. Faltou eu um dar um gúgol antes.
O mesmo em relação ao tipo de vestimenta. Mesmo antes de embarcar, fiz questão de enviar e-mails a vários lugares para checar este importante item. Foi como perguntar a fórmula da Coca-Cola. Nunca conseguia uma resposta. Para visitar o lindo Museu de Arte Islâmica entrei na página web para conferir. Nada.
No hotel, nos disseram o que é praticamente praxe: não mostrar os joelhos nem os ombros (homens ou mulheres). Eu, na dúvida, andava com calças no meio da panturrilha e camisetas com manga até o cotovelo — obviamente nada colante nem transparente. E uma echarpe na bolsa, caso precisasse cobrir a cabeça.
Aliás, levava uma muda de roupa completa, com calça comprida e camisa de manga comprida e que pudesse ser abotoada até o pescoço. Como não costumo usar vestido, não levei, mas se fosse hoje colocaria na mala um bem comprido para usar por cima da calça em alguns lugares.
Não dirigimos, pois ficamos nas nossas duas temporadas lá no Souq Waqif, o lindíssimo mercado, que fica super bem localizado e a maior parte de nossos deslocamentos foram a pé ou de metrô, que funciona espetacularmente e está cheio de atendentes gentilíssimos e muito bem treinados que ajudam em tudo – desde comprar a passagem até avisar em qual vagão devemos entrar.
Sim, o metrô tem vagões VIP (a passagem é mais cara), standard e família. Nos “família”, só podem entrar famílias ou mulheres sozinhas — nada de homens desacompanhados. Está escrito na porta de cada vagão, mas deve-se prestar atenção a isso.
As indicações de estação são dadas pelos alto-falantes e escritas nos vagões em árabe e em inglês. Fiz questão de sentar na ponta dos assentos, com apenas o meu marido num dos lados pois para os muçulmanos encostar numa mulher é um problema. Sequer dão a mão – apenas para outro homem.
Atenção, isto não é uma crítica, apenas digo que é o comportamento e como eu estava no país deles fiz questão de seguir absolutamente todo o regramento, assim como não houve nenhuma demonstração de intimidade como beijar o marido ou abraçar em público. No máximo, mãos dadas em algum momento ou ele me ajudar a descer de algum lugar e estender a mão para mim.
Tive de refrear meus instintos latinos e gesticular discretamente, pois o excesso de mãos e braços sendo abanados também não é apreciado. Nada que fosse realmente problema, diga-se. Apenas boa educação em relação ao anfitrião.
O sistema de transporte está integrado e ônibus até cinco quilômetros de distância de uma estação de metrô são gratuitos. Basta baixar um aplicativo. Aliás, o Qatar deve ser o país dos aplicativos. Tem um para cada coisa e muitos são absolutamente obrigatórios. Não se entra no ônibus sem o tal do Karwa. Agora na Copa eles estavam flexibilizando, mas eu ainda peguei a obrigatoriedade de baixar o aplicativo Etheraz, que indica, em tempo real, meu status de livre de Covid.
Aliás, esse é outro capítulo. Haja teste, formulário de vacinação e um monte de coisas. O Etheraz devia ser apresentado antes de entrar em qualquer transporte público, nos shoppings, aeroportos e em alguns restaurantes e lojas. Ou seja, se vá ao Catar, não ande sem seu celular, claro, com chip local (que é muito barato) ou roaming (que é muito caro para quem vai do Brasil).
Por falar em celular, a segurança é uma bênção. Falar no telefone, usar o Gúgol Mépis ou andar com a bolsa nas costas sem ter nenhuma preocupação não tem preço.
Hipoteticamente, teria dirigido no Qatar. As estradas são um espetáculo de sinalização (em árabe e em inglês), asfalto impecável e o trânsito é bem civilizado. A maioria dos carros são suves e Toyota vendeu 31,6% do total de veículos em 2021 e Nissan foi a segunda marca mais vendida, com 11,9%. Mas há várias outras marcas e muitos modelos que eu nem conhecia. Basicamente, carros japoneses, diga-se.
A mão de direção é como a nossa, e a quase totalidade dos carros é automática. Os limites de velocidade são muito razoáveis — a maioria entre 60 km/h (estradas urbanas) e 100 km/h (estradas rurais) e nas rodovias é 120 km/h. Há radares bem visíveis em alguns pontos.
No geral, o pessoal obedece às máximas e ás normas de trânsito em geral. A questão é que em muitos cruzamentos não há sinal para pedestres e pelo menos no que fica em frente à televisão Al Jazeera não há como atravessar respeitando o sinal para pedestres, que nunca fica verde num dos sentidos. É respirar fundo e correr. No geral, parece haver sempre prioridade para o carro e não para o pedestre, incluindo os tempos de abertura e fechamento de sinais.
Estrangeiros podem dirigir utilizando a carteira de motorista de seu próprio país por uma ou duas semanas, dependendo do país de origem. Acima disso, é necessária uma carteira internacional (que as empresas de aluguel de carro costumam exigir mesmo para períodos curtíssimos) e para quem se muda para lá há uma carteira provisória.
Se eu morasse lá, como mulher, precisaria da autorização do meu marido (se fosse solteira do meu pai, irmão, tio, avô…) para dirigir um veículo. Imagino que por isso tenhamos visto tão poucas mulheres ao volante. Por poucas entenda-se uma que estava num passeio pelo deserto que fizemos e estava no volante de um 4×4.
E não me lembro de outras, mas que, certamente, houve, apenas não me recordo. Na teoria, a revogação da exigência aconteceu em janeiro de 2020, mas na prática ela ainda está valendo, pelo que eu soube lá. Mas a autorização não é apenas para dirigir. Ela é necessária para muitas outras coisas, como viajar, estudar…
Para dirigir no Catar é necessário ter 18 anos e a carteira de motorista, mas para alugar um carro a idade mínima é 25 e o seguro de carro é obrigatório. Para mim, faz todo sentido.
Embora as estradas e as ruas em geral sejam excelentes para dirigir, o trânsito pode ser bastante pesado em vários momentos do dia. O Catar tem, oficialmente, 2.900.000 habitantes, dos quais somente cerca de 10% são qataris mesmo. Não por nada, o que mais encontramos foram estrangeiros de todos os lugares: motorista de táxi de Uganda, vários do Paquistão e Índia, guia turístico queniano, guarda de mesquita da Eritréia (primeira pessoa que conheço de lá) e por aí vai.
Mas a frota de carros era de 1.701.346 em dezembro de 2020, o que dá 1,7 habitante por carro, incluindo bebês de colo, menores de idade e idosos acamados. Estimo que uns 90% sejam suves e 90% dos carros sejam brancos e não vimos quase nenhuma moto — digo quase, mas não consegui lembrar de nenhuma.
Os números de veículos continuam aumentando ano a ano mesmo quando eles realmente dão baixa nos veículos e não como se faz no Brasil, onde o número é inflado irrealmente por carros que não circulam há anos ou que estão no fundo das represas.
As infrações mais comuns que vimos são as mesmas de sempre: uso de celular ao volante e falta de cinto de segurança, embora lá só seja obrigatório nos bancos da frente. Mas não vimos carros velhos, sem manutenção nem mesmo sem alguma luz. Todos impecáveis em termos de conservação e arriscaria dizer que são todos novíssimos. As multas, além do valor pecuniário, incluem acúmulo de pontos na carteira de habilitação.
Por óbvio, há tolerância zero a consumir álcool e dirigir. Há uma profusão de rotatórias que exigem cuidados extra, pois nem sempre a preferência é respeitada. Para mim, o mais difícil era o nome das ruas. Além de serem nomes próprios árabes bastante longos, há pouquíssimas placas que indiquem isso e algumas contém apenas o nome em árabe.
Me diverti usando o Waze e o Google Maps andando a pé, pois quando eles me diziam onde tinha de virar eu não fazia e menor ideia pelo nome. Era necessário olhar o mapa o que, dentro de lugares como o Souq Waqif, é quase impossível tamanha a quantidade de vielas. Mas mesmo assim, funciona bem. O bom é que são lugares extremamente seguros, de uma limpeza que dá gosto e perder-se não era problema, mesmo de madrugada.
Ao contrário, era algo que fazíamos com muito gosto. Para completar, nem sempre o habitante local chama a rua pelo nome oficial e pode te dizer “vire à direita na mesquita” (e aí você se lembra que o país tem mais de 2.000 mesquitas) ou dão nomes próprios aos oficiais, como a “rotatória maluca”. Certo, todo mundo faz isso.
Tem ruas que mudaram de nome em Buenos Aires antes de eu nascer e até euzinha as chamo pelo nome antigo, que nunca cheguei a conhecer oficialmente. Então, nada de novo. E adorei a indicação de pedestres, com a típica kandura.
Precisamos pensar que o Catar é um país novo. A rigor, ele existe como tal desde 1971, pois antes era um protetorado britânico e hoje é um emirado. Com a descoberta de petróleo, surgiu um novo país, riquíssimo. Em 2020, com pandemia e tudo, ele alcançou a segunda maior densidade de estradas da região do Oriente Médio e do Norte da África, com mais de 866 metros de estrada por quilômetro quadrado.
Muitas dessas obras foram feitas (como é o caso do metrô de Doha) por causa da Copa do Mundo, mas o fato é que o país já vinha investindo muito em infraestrutura.
Entre as inovações que estão sendo testadas está a estrada azul, na rua Abdullah Bin Jassim, perto do Soq Waqif. É uma rua normal, cujo asfalto foi pintado de azul para tentar reduzir o calor irradiado pelo asfalto. Confesso que não sei se há algo que adiante mesmo, pois cansei de ver minhas sandálias e tênis grudarem no quentíssimo asfalto qatari.
Os 40 ºC de temperatura com que éramos agraciados diariamente só não eram piores porque o ar é incrivelmente seco – coisa de 30-35%. Felizmente. Aliás, no primeiro dia caímos na besteira de sair do hotel por volta das 10 da manhã, a pé, para ir até a Corniche, à beira-mar que estava a menos de 200 metros de onde estávamos. Tremenda bobagem, logo percebemos. Tivemos de nos abrigar em vários lugares, incluindo travessias subterrâneas dotadas de ar-condicionado e até mesmo num estacionamento aberto, mas com umas tendinhas que foram providenciais sob um calor de mais 40 graus.
Mas mesmo assim, Noratur replanejou as visitas de forma a estar em algum lugar fechado e com ar-condicionado entre as 10h30 e as 16h00. Não à toa o comércio fica fechado das 12h00 ou 12h30 até as 16h00. Nos nossos roteiros valia museu e até mesmo shopping center, tal o desespero para fugir de calor inclemente.
O Uber funciona muitíssimo bem. Não tivemos nenhum cancelamento, ao contrário do que é praxe no Brasil. Os carros eram impecáveis e os motoristas chegavam muito rápido. A gasolina é bem barata, coisa de 2.100 riais qataris o litro (equivalente a US$ 0,50) e os postos oferecem serviço de frentista.
O gás também é barato, mas usa-se apenas para cozinhar —e paradoxalmente não há gás encanado, mas botijão de um formato bem diferente daquele que nós conhecemos. Andar de carro, além de barato por causa do combustível, é fácil em Doha.
Há estacionamentos em todos os lugares. Mesmo no centro, no Souq Waqif, há um gigantesco estacionamento subterrâneo excelente — nós passávamos por ele várias vezes ao dia, fugindo do calor etíope, ops, qatari, do lugar. Aliás, tem máquinas de suco de laranja natural, salgadinhos, água e refrigerante, caixas automáticos…
Há estradas pedagiadas, com cobrança por tag e outras não. Entre as curiosidades de se dirigir no Qatar estão a quantidade de camelos, que podem atravessar a estrada. Atropelar um, além de um prejuízo imenso para o carro e para seus passageiros e motorista, inclui uma multa pesadíssima.
O maior risco, sem dúvida, são as tempestades de areia, muito comuns em qualquer época do ano que podem reduzir a visibilidade a zero e tornar as pistas escorregadias, Há também os raros e insólitos dias de chuva — neste caso, o problema é que por ser escasso o conceito de drenagem é um tanto desconhecido e uma rodovia pode alagar rapidamente. A meteorologia acompanha de perto e avisa quando há risco de isso acontecer.
Um dos passeios mais legais para turistas e locais é o “dune bashing” — andar pelas dunas do deserto, fazendo acrobacias num veículo com tração nas quatro rodas. Fizemos e garanto: é muito, muito legal. É diferente do passeio de bugue pelas dunas de Cumbuco, pois se anda num carro fechado, com ar-condicionado.
Nosso motorista, o superexperiente Mohammed, colocou um som bem alto e mandou ver. Pé embaixo, descendo dunas totalmente de lado, subindo e descendo outras… um passeio longo com algumas paradas — ele disse que era para fotos, mas acho que é para dar tempo de alguns estômagos mais fracos serem abastecidos com Dramin.
Um dos segredos, além de muita experiência, é desinflar os pneus e, claro, usar os pneus certos para isso. São bem caros e duram, geralmente, seis meses.
É no caminho para essas dunas que fica a rodovia Al Majd (antiga Orbital) a rodovia mais longa do Catar, com 195 quilômetros de sul a norte. Começa em Mesaieed ,uma cidade industrial no município de Al Wakrah, e se estende para o norte em direção a Ras Laffan, na costa do município de Al Khor.
Aliás, o passeio pelas dunas é imperdível e nosso motorista/guia atendeu ao meu pedido e paramos mais longamente para mergulhar, literalmente, no mar interno que fica totalmente encerrado pelo deserto, já na fronteira com a Arábia Saudita. Complicado foi trocar de roupa atrás da porta do carro, escondida dos olhares de ninguém. Mas como tudo, valeu a pena.
Mudando de assunto: assim que voltei de viagem fui à Oca, no parque do Ibirapuera, ver a exposição de 50 anos de Grande Prêmio do Brasil. Vale a pena. Além dos capacetes, macacões e carros originais, há ótimas réplicas e fotos lindíssimas — pena que os textos apresentados tenham uns erros de Português. Faltou uma revisãozinha mais caprichada. Diverti-me (eis a ênclise do dia) muito na parte interativa da mostra. Num carro original, com pneus originais, troquei um único pneumático em intermináveis 15 segundos (mas esse foi o tempo da maioria, devo dizer em minha defesa, e ainda abaixo das 48 horas que a Mercedes levou no carro do Bottas em Mônaco no ano passado) e terminei em quarto lugar (de 8 competidores) num Autorama em que devo ter feito metade da corrida com os pneus para cima, de tantas capotagens que dei.
NG