Ferrari. Todo autoentusiasta, e possivelmente qualquer outra pessoa no mundo, conhece esse nome. Há quem diga que é só uma marca de carro esnobe, há quem diga que é um fabricante mítico dos melhores carros do mundo. E há quem diga que é um dos nomes mais importantes para a história do automóvel. No fundo, todos estão certos, mas com pequenas ressalvas.
Por mais sofisticados e velozes que são os Ferraris modernos, a marca acabou se tornando mais um item de luxo para compor o look do rico proprietário na frente das baladas e restaurantes chiques mundo afora. São máquinas incríveis, mas parte de seus compradores que sequer sabem o que é um pistão, jogou a imagem da marca na vala comum do supérfluo, o que é uma pena, pois a história da Ferrari é riquíssima e não merece esta condição.
Do outro lado das considerações sobre a Ferrari, a aura que paira sobre a fábrica de Maranello é real. Pergunte a qualquer italiano e vai ouvir que depois do Papa, há apenas Enzo Ferrari. Um Ferrari pode ser chamado de o melhor carro do mundo? Não, mas talvez chamá-los de um dos mais importantes da história, sim.
Tendo suas origens no começo do século XX, em um tempo em que os fabricantes de automóveis estavam ainda nascendo e se desenvolvendo, a marca Ferrari como a conhecemos hoje só apareceu depois da 2ª Guerra, mas Enzo Ferrari já era conhecido em toda a Europa desde antes.
Motivado pela vingança contra aqueles que o desdenharam (leia-se Fiat e Alfa Romeo, principalmente), Ferrari saiu de um mero empregado assalariado que conquistou um bom cargo de chefia e foi demitido para ser o fundador de uma marca que se tornaria conhecida nos quatro cantos do mundo, e nesta jornada seu legado não se limitou à sua própria empresa, mas influenciou diretamente tantas outras.
A história da criação da marca Ferrari é bem conhecida. Enzo começou a se destacar no meio automobilístico como chefe de equipe de competições da Alfa Romeo, onde já havia sido piloto e mecânico, depois de ser recusado como funcionário da Fiat, no começo de sua vida profissional. Trabalhar na Fiat para ele seria a realização de um sonho, assim como para muitos italianos que viam na grande empresa uma posição de sucesso profissional.
Depois de anos liderando a equipe da Alfa Romeo nas pistas europeias, que então já levava o nome de Escuderia Ferrari e os carros tinham o famoso escudo do Cavallino Rampante, Enzo foi deposto de seu cargo em meio à crise financeira na Alfa Romeo no período logo anterror à guerra, e rebaixado a diretor esportivo. Sua forte personalidade entrou em conflito direto com Ugo Gobbato, chefão da Alfa, que resultou em sua saída da Alfa Romeo em 1939, para fundar sua própria empresa, chamada Auto Avio Costruzioni (ele não poderia usar o nome Ferrari por questões legais com a Alfa por alguns anos).
Da Auto Avio, passando pela fundação da Ferrari, até o fim de sua vida, a personalidade explosiva e teatral de Enzo deram a ele inúmeras conquistas, pois o controle absoluto do seu negócio garantiu o sucesso da empresa da forma que ele via como necessária. Também fez dele um dos homens mais odiados do mundo automobilístico.
Aqui contamos um pouco do que o gênio forte de Ferrari foi capaz de fazer. Alguns casos são famosos, como a ligação entre Ferrari e Lamborghini e a lendária disputa Ferrari versus Ford nas pistas. Outros, nem tanto, mas mostram que Enzo Ferrari esteve no centro do universo automobilístico influenciando diretamente muitos outros fabricantes.
ALFA ROMEO
Como o segundo empregador de Enzo onde ele pode mostrar suas habilidades tanto como piloto e como administrador de equipe, a Alfa Romeo teve direta influência de Ferrari. Antes da Alfa, ele foi piloto de testes da Costruzioni Meccaniche Nazionali (CMN), fábrica italiana de Milão que teve vida curta. Na Alfa, Enzo foi piloto até o fim dos anos 1920 para assumir o posto de chefe de equipe.
Até a criação da Escuderia Ferrari, que era uma equipe independente de propriedade de Enzo, mas que representava oficialmente a Alfa Romeo nas competições (como Luz Antônio Greco e Ford), Enzo teve bastante contato com a criação dos carros da Alfa, mesmo que nunca atuando como projetista. A Alfa Romeo projetava, fabricava e entregava os carros para Enzo administrar.
Como piloto, ele tinha contato com o time de criação dos carros, e dava pitacos em como achava que os carros poderiam ser. Não quer dizer que suas propostas fossem atendidas, mas ele se aproximava cada vez mais do time técnico e dos pilotos. A Escuderia, além de manter os carros, em certo ponto começou a fazer modificações nos Alfas em busca de melhor desempenho. Em um primeiro momento, tudo certo, mas com o tempo, a Alfa mudou a forma de atuar.
Alguns novos carros não eram entregues a Enzo, mas utilizados diretamente pela Alfa Romeo. Com isso, Ferrari passou a ter carros desatualizados e entrar numa disputa direta nas pistas com a própria fábrica. A politicagem dentro da Alfa Romeo era como um grande parede que barrava o desenvolvimento da equipe de forma limpa e objetiva. Alguns queriam Ferrari junto da marca, outros queriam vê-lo o mais longe possível. E em termos de política, Enzo era melhor que todos eles.
Os projetistas da Alfa, especialmente o chefe do departamento técnico, Vittorio Jano, e seu assistente Gioachino Colombo, tinham contato com Ferrari, que eventualmente levou-os para trabalhar na Escudeira. Colombo primeiro, depois de anos, Jano faria sua contribuição para a Ferrari como funcionário. O famoso Alfa Romeo 158 “Alfetta” foi um dos maiores carros de corrida da sua época, e nasceu de ideias de Colombo dentro da Escuderia, e foi construído para a Alfa Corse, equipe interna da Alfa após o fim da Escuderia Ferrari, comprada pela Alfa.
Depois da saída de Enzo, a Alfa Romeo tentou reestruturar sua equipe de competições interna e o principal rival seria o próprio Enzo. Os alemães da Auto Union e Mercedes-Benz, os carros da Maserati e os Bugatis eram fortes competidores, mas a Alfa tinha assuntos a tratar direto com Ferrari, visto por eles como um traidor, quem não apenas deixou a empresa para criar a seus próprios carros, que aos olhos da Alfa seriam copiados de seu ex-empregador, e ainda levou consigo nomes de peso como Colombo.
PÉGASO
Durante os anos de funcionário da Alfa Romeo, Enzo teve que lidar com muitos tão teimosos e de personalidade forte como ele. Talvez a maior desavença da vida de Enzo Ferrari, ao contrário do que muitos acreditam, não foi Ferruccio Lamborghini, mas um espanhol nascido em Barcelona chamado Wifredo Ricart. E ele foi chefe de Ferrari.
A vida política da Alfa era tumultuada, como quase tudo na Itália no período pré-guerra. A empresa havia se tornado uma estatal e o novo chefão, Ugo Gobbatto, não via com bons olhos a forma de Ferrari e Jano trabalharem. Ele queria alguém mais técnico, formado em escola de engenharia de renome, e o nome para tal cargo foi o de Ricart. Contratado pela Alfa em 1936, Wifredo, engenheiro de formação em Milão, veio de uma tentativa de ter sua própria fábrica de automóveis, mas a crise financeira acabou com o sonho de forma breve. Na Alfa, era engenheiro-chefe e comandava os projetos fora da linha de produção comum, como os próprios carros de corrida. E era amigo pessoal de Gobbatto, que tinha pendências políticas com Mussolini, este que exigia que a Alfa Romeo voltasse a ser vencedora nas pistas de Grand Prix, colocando a marca italiana acima dos alemães.
Muito inteligente, com ideias revolucionárias (e complicadas demais, em muitos casos), Ricart começou a ter problemas em lidar com Jano e Enzo. Assumidamente um homem do povo, com pouca educação formal, Ferrari não suportava o ar superior do diplomado espanhol, tanto que dentro da Alfa Romeo, ele se referia a Ricart como lo spagnolo (o espanhol, em italiano).
Não demorou para as duas personalidades entrarem em colapso. O conflito entre eles era como uma supernova explodindo pelo choque direto dos egos gigantes de cada um. Enzo não suportava a ideia de ter um estrangeiro como chefe, metido e que desdenhava do jeito bronco de Ferrari. Do outro lado Ricart via Enzo como um insubordinado que gastava recursos da Alfa em projetos que só faziam os italianos passarem vergonha contra a Mercedes e Auto Union.
Em um determinado momento, a situação ficou caótica demais até para uma empresa italiana. Ugo Gobbatto tomou partido, obviamente em prol do amigo espanhol, e demitiu Enzo Ferrari em 1939. Ricart permaneceu na Alfa até o fim da Guerra, e voltou para a Espanha depois de problemas políticos para os fascistas (que até assassinaram Ugo Gobbatto) e seus apoiadores.
Na Espanha, Ricart foi chamado em 1946 pelos seus amigos políticos para dirigir a estatal recém criada chamada ENASA (Empresa Nacional de Autocamiones S.A.) com base na finada unidade fabril de caminhões da Hispano-Suiza em parceria com a Fiat espanhola.
Alguns anos se passaram, Ferrari finalmente criou a própria empresa com seu nome e estava indo muito bem, obrigado. Vendia carros de passeio para bancar seu investimento nos carros de corrida, e já estava ficando conhecidos nas maiores cidades do mundo onde o automóvel era tido como um elemento de destaque social e esportivo.
Na ENASA, a fabricação de caminhões mantinha-se estável, mas não era o suficiente para Ricart poder aprimorar tanto sua imagem como a qualidade dos produtos da ENASA. Como chefe da empresa, poderia fazer o que quisesse, e montou um plano de negócios para, ao mesmo tempo, fazer a ENASA crescer tecnicamente, como também para esfregar na cara de Ferrari que ele sabia fazer carros melhores que o italiano.
Com o propósito principal de alavancar o nível tecnológico da ENASA, tanto nos produtos como na formação dos funcionários, Ricart criou um projeto de um carro esportivo de alta tecnologia, que ele mesmo supervisionaria, enquanto seus engenheiros ganhavam experiência e a empresa crescia como uma referência nacional em projetos.
Usando a marca Pégaso, nome dos primeiros caminhões a serem feitos na ENASA, ainda baseados nos antigos Hispano-Suiza-Fiat, o projeto de Ricart chamado Pégaso Z-102 — Pégaso é o nome de um cavalo alado na mitologia grega, símbolo de imortalidade — chegou no começo dos anos 50. Era nítido que o pequeno e sofisticado Z-102 era um rival de Ferrari. Como a História nos mostra, quem levou a melhor foi Ferrari, que viu a Pegaso criar apenas pouco mais de 80 unidades de carros esporte, e manteve a produção de veículos pesados como ônibus e caminhões.
Para Enzo, foi uma vitória. A tentativa do spagnolo de criar uma carro capaz de bater Ferrari foi um fracasso, aos olhos de Enzo, com poucas unidades feitas e pouco conhecido no mundo todo, diferente dos carros de Maranello. O fim da produção dos Pegaso deu-se por ordem do governo, uma vez que a ENASA ainda era uma empresa estatal, e o custo de fabricação de cada carro era alto. O governo queria vender caminhões, não carros esportivos, e assim Ricart ficou sem seus cavalos alados.
VANWALL
O primeiro construtor campeão mundial de Fórmula 1 foi a inglesa Vanwall em 1958, título este criado oito anos após o primeiro campeonato de Fórmula 1 em 1950, e que foi alcançado graças às vitórias de Stirling Moss e Tony Brooks.
E o que uma equipe inglesa tem a ver com Enzo Ferrari? Muito. Tudo começa do outro lado o Atlântico, em Ohio, nos EUA. A empresa americana Cleveland Graphite Bronze Company havia desenvolvido uma nova tecnologia de casquilhos de mancais e colos de bieta chamados Thinwall (parede fina) com uma liga metálica patenteada especial. Estes mancais tinham uma excelente durabilidade e eram compactos o suficiente para serem bem usados em motores e outras aplicações automobilísticas.
Nos anos 30, Tony Vandervell era o filho de uma rica família dona da empresa CAV, fabricante de equipamentos elétricos e injetores de motores Diesel, associada à Bosch e que foi comprada pela Lucas. Tony investiu na fabricação dos mancais Thinwall na Inglaterra, sob a licença da Cleveland, o que deu muito certo financeiramente.
Conhecidos pela sua qualidade, os casquilhos americanos, agora ingleses com o nome Vandervell Products, eram de interesse de muitos fabricantes. Ferrari era um deles, pois seus motores ainda na época da Escuderia Ferrari junto com a Alfa Romeo sofriam com problemas constantes em casquilhos convencionais.
Apreciador do automobilismo, atuando paralelamente em diversos projetos, Tony foi um dos investidores do projeto B.R.M. inglês. Ele tentava correr no circuito de Grand Prix no fim dos anos 40. Comprou um Ferrari 125 e foi chamado para correr pela Escuderia Ferrari, mas sem sucesso. O carro, para ele, era tão ruim que o devolveu à Ferrari. Tempos depois, um segundo carro foi encomendado, mas também foi devolvido por Vandervell.
Cansado dos constantes atrasos e problemas na B.R.M., Vandervell retirou seu apoio e encerrou seu envolvimento com o projeto para dedicar-se a algo próprio. Tony utilizou os carros de Enzo como base para modificações feitas pela sua própria equipe, renomeando os Ferrari para Thinwall Special, em alusão aos seus famosos casquilhos, os quais a própria Ferrari utilizava. Os monopostos etam pintados de verde escuro, o famoso British racing green, para o desgosto de Ferrari.
Enzo Ferrari não confiava totalmente em Tony, pois acreditava que ele ainda estava ligado aos compatriotas da B.R.M., e que os carros que comprara e modificava nada mais eram que estudos para melhorar o projeto dos ingleses. Ferrari não estava totalmente errado, pois os carros vendidos a Tony eram sim usados como pesquisa, mas pelo próprio Vandervell como laboratório para seus casquilhos em condições extremas de uso, no caso, carros de corrida.
A cada carro comprado por Tony, todos os defeitos encontrados eram reclamados diretamente a Enzo, que obviamente não gostava das críticas sobre suas máquinas e a desavença entre os dois só aumentava. Em determinado momento, Ferrari estava certo que seus carros estavam sendo desmontados e estudados para que a B.R.M. os copiasse. Cansado de lidar com Tony, certa vez Enzo o deixou esperando por horas na entrada da fábrica de Maranello, até que o inglês saiu pelo portão xingando a tudo e a todos, e nunca mais se dirigiu a Ferrari.
Isto tudo aconteceu entre o fim dos anos 40 e os primeiros anos da década de 50. Ferrari estava totalmente focado em aprimorar seus carros de F-1, a nova categoria principal do automobilismo que substituía as corridas de Grand Prix. Ele não queria de forma alguma dar chance aos rivais de entenderem como eram feitos os Ferrari. Não que na época fossem os melhores carros, pois não eram, o Alfa Romeo ainda era o carro a ser vencido.
Determinado a nunca mais depender de Enzo Ferrari, Tony Vandervell acreditava que com os conhecimentos adquiridos nos últimos anos, poderia fabricar seus próprios carros do zero, e assim o fez, inscrevendo seu próprio carro no campeonato de 1954 com o piloto Peter Collins. A equipe seria chamada de Vanwall.
A equipe cresceu, em 1957 teve Stirling Moss como vice-campeão mundial e em 1958 conseguiu conquistar o título de campeão mundial de construtores, primeiro ano em que tal prêmio foi concedido à equipe com maior número de pontos no ano.
A Vanwall encerrou suas atividades em 1961, já sem Tony Vandervell desde 1959, com a saúde bastante degradada.
LAMBORGHINI
O mais famoso desafeto de Enzo foi seu vizinho Ferruccio, nascido em Cento, um lugarejo a 10 km de Modena. Com grande interesse nos maquinários agrícolas com que teve contato desde pequeno, Lamborghini estudou mecânica no Instituto Fratelli Taddia perto de Bolonha. Experiente mecânico, esteve na guerra como coordenador de manutenção da Força Aérea Italiana na região da Grécia e Turquia. Foi até capturado como prisioneiro de guerra inglês e liberado somente em 1945.
De volta à Itália, Ferruccio iniciou seus trabalhos na fabricação de tratores em 1947, atividade com a qual conseguiu levantar dinheiro em meio a uma Itália arrasada e precária em termos de equipamentos agrícolas. Sobravam equipamentos militares e faltavam tratores para os campos, e na sua visão, o primeiro poderia ser convertido no segundo. Em paralelo, ele tinha interesse em automóveis, em especial nos pequenos Fiats que tomavam conta do país.
Mesmo com o caos da guerra, a Itália manteve o automobilismo rodando até onde pode. Uma das corridas mais importantes era a Mille Miglia, a prova de resistência em vias públicas mais famosa da Itália. Ferruccio tinha grande apreço pelas máquinas que nesta corrida disputavam um dos maiores triunfos automobilísticos da Europa. Como não tinha ainda condições de comprar um carro de primeira linha, partiu para a fabricação caseira, a partir de um Fiat 500 Topolino. Este seria na verdade o segundo Fiat modificado por Lamborghini, com o primeiro em 1946 com formas ainda rudimentares.
O pequeno Fiat com foco na Mille Miglia foi transformado em um barchetta (roadster) de dois lugares, assim como o primeiro Topolino de Lamborghini, mas agora com seu pequeno motor aumentado para 650 cm³ e bem mais refinado. Junto com Gianluca Baglioni, seu copiloto, Ferruccio até que foi bem na corrida, até que perdeu o controle do carro e bateu na lateral de um bar perto de Turim. Este acidente colocou um fim temporário no envolvimento de Ferruccio com a fabricação de carros.
As boas vendas de seus tratores na década posterior à Mille Miglia de 1948 fizeram de Lamborghini um homem de sucesso. Seu gosto por automóveis não havia desaparecido com o acidente em Turim, apenas sua ânsia em ser piloto. Com recursos no bolso, teve acesso aos melhores carros da Europa, incluindo Ferraris. Ele tornou-se um cliente da marca de Maranello, com não apenas um, mas dois carros fabricados por Enzo.
Dentre os modelos da Ferrari que dispunha na sua garagem, o que mais Ferruccio apreciava era o 250 GT. Entretanto, este carro tinha um calcanhar de Aquiles: a embreagem. Quando explorados ao máximo, a embreagem era a primeira coisa a falhar. E como Lamborghini gostava de acelerar, algumas embreagens já haviam passado pelos seus carros.
Cansado de toda a vez ter que levar os carros para manutenção, Ferruccio tentou solucionar o problema por conta própria, com uma adaptação feita com componentes mais robustos, bem como os usados em seus tratores. A solução estava lá, feita e funcionando, mas ele não se conformava que um carro de tamanha qualidade como um Ferrari tivesse um ponto fraco destes, e pior, que a solução não era nada impossível.
Como um cliente recorrente, Lamborghini tinha certo acesso direto a Enzo Ferrari, assim como outros bem-afortunados com amplos orçamentos para gastarem nas máquinas de Ferrari. Sabendo do que se tratava a conversa solicitada por Lamborghini, Ferrari o deixou esperando na entrada da fábrica por horas, assim como fizera com Tony Vandervell. Mas, diferente do inglês, Ferruccio aguardou até ser chamado, só para poder apontar as falhas do carro de Enzo. Vale lembrar que Lamborghini admirava Enzo e seus carros, mas um problema relativamente simples como o da embreagem não poderia ser aceito. Não era para ser um ataque contra Ferrari e seus carros, mas uma crítica construtiva.
A conversa entre eles foi breve e acalorada, típica de dois italianos com egos inflados. A história conta que a última gota da paciência de Ferruccio evaporou-se quando Enzo jogou a culpa do problema nos carros no próprio Lamborghini. “Pode saber dirigir seus tratores, mas não sabe dirigir um Ferrari”. Com essa frase, saiu enfurecido do escritório de Enzo para nunca mais voltar.
Remoendo-se com tal ofensa, Ferruccio sabia que a única forma de mostrar para Ferrari e para o mundo que ele sabia que estava dizendo, era fabricar seu próprio carro, e que este fosse melhor que os Ferrari. Mesmo contra os conselhos de sua esposa, então responsável pelas finanças da Lamborghini, Ferruccio seguiu em frente. Gastou todo o orçamento que dispunha para a publicidade de seus tratores para investir na criação do que seria sua vingança pessoal contra o vizinho de Modena.
No começo dos anos 60, o primeiro automóvel totalmente fabricado por Ferruccio (sem contar os FIATs adaptados da sua juventude) foi apresentado. Era o 350GTV, um lindo cupê equipado com motor V-12 e carroceria desenhada por Giorgio Prevedi e Franco Scaglione, e construída na Carrozzeria Sargiotto de Turim. O V-12 foi um projeto encomendado para a Società Autostar, empresa de engenharia de Giotto Bizzarrini, ex-projetista da Ferrari. Com ele, veio Gian Paolo Dallara, projetista de chassi e estruturas, para cuidar do desenvolvimento do carro. Lamborghini deu instruções claras de como queria o carro e o motor, e assim os dois fizeram.
Depois do 350 GTV e seu sucessor direto, o 350 GT, a empresa ganhou grande destaque com o lançamento do lendário Miura, o carro que de fato colocou a Automobili Lamborghini no mapa-múndi dos automóveis mais desejados do mundo. Depois da fatídica reunião com Ferruccio em seu escritório, Enzo Ferrari nunca mais dirigiu uma palavra a Lamborghini, mesmo o tendo encontrado por acaso em ocasiões posteriores.
DE TOMASO
Alejandro de Tomaso é famoso hoje pelo seu lendário Pantera, um carro esporte de motor central criado nos anos 70 e que foi fabricado por pouco mais de vinte anos em diversas versões. Elvis Presley teve um.
A fábrica de Alejandro ficava localizada em Modena, que, por acaso, era a mesma cidade de Ferrari. Neto de imigrantes italianos, de Tomaso nasceu em Buenos Aires na Argentina em 1928. Sua família era bem envolvida na vida política do país, que sob o governo de Juan Perón, não ia lá muito bem. Alejandro foi para a Itália em 1955, após ter que se retirar da Argentina depois de participar de um atentado contra o palácio do governo.
Na região de Modena, conheceu sua futura esposa, lsabelle Haskell, herdeira de uma rica família americana. Isabelle tinha grande interesse em corridas e eventualmente se dispunha a participar de algumas provas na Europa, pilotando Maseratis e eventualmente Ferraris. Alejandro estava se inserindo no meio automobilístico italiano, também pela Maserati. Eventualmente o casal se conheceu, dividiram até pilotagem em provas longas.
Alejandro tinha interesse em ingressar no meio de fabricantes e oferecer seus próprios carros, e com os recursos financeiros de sua esposa, montou a De Tomaso Modena SpA em 1959, nas vizinhanças da Ferrari e Maserati. Seu primeiro carro comercial foi o Vallelunga, um pequeno esportivo com motor central de quatro cilindros do Ford Cortina e carroceria feita pela Fissore. O Vallelunga não era nenhuma obra de arte, estava numa classe mediana em termos de qualidade e desempenho junto com diversos outros concorrentes europeus. Pouco menos de 60 carros foram feitos em três anos de produção.
Em meados dos anos 60, já com um conhecimento do mercado local e das competições europeias, que ainda interessavam a Alejandro, uma nova parceria estava prestes a surgir. O texano Carroll Shelby tinha agitado o mundo das competições com seu Cobra, o AC inglês com coração V-8 americano. Shelby queria também entrar no campeonato americano chamado Can-Am, que já contei aqui no AE, mas o Cobra não era elegível tecnicamente.
Um projeto chamado P70 foi feito, unindo alguns elementos do Vallelunga (estrutura) com o Cobra (motor) debaixo de uma carroceria tipo protótipo aberto. Por inúmeros motivos, entre eles as fortes personalidades de Shelby e de Tomaso, o projeto teve vida curta. Shelby seguiu seu caminho para logo depois ingressar no projeto do GT40 com a Ford.
Alejandro também seguiu em frente, e aposentou o Vallelunga em prol de um novo carro, com algumas heranças técnicas do P70. Este seria o Mangusta, o primeiro de Tomaso equipado com motor V-8. A lenda diz que o nome veio de um animal parente do suricato, muito habilidosos em caçar cobras. O fim do relacionamento entre Shelby e Alejandro não foi dos melhores, como o nome do novo carro deixou evidente.
Com cerca de 400 unidade fabricadas, o Mangusta deixou a linha de produção para dar espaço ao Pantera. Pois bem, até o momento, a única relação de de Tomaso com Enzo Ferrari foi o Ferrari 500 que ele pilotou, fora a localização geográfica de sua fábrica. Entretanto, Enzo tinha seus problemas com Henry Ford II, chefão da Ford que estava tentando comprar a Ferrari.
O negócio entre Ford e Ferrari ia de mal a pior, e Henry II queria a todo custo acabar com o reinado do italiano no universo dos carros esporte. Uma das possiblidades era uma parceria com algum outro fabricante mas que o produto final levasse o nome Ford junto. Com a experiência do Mangusta em fase de lançamento, Ford via a de Tomaso como uma forte opção a ser considerada.
O fornecimento de motores e outros componentes menores a um baixo custo era exatamente o que Alejandro precisava para seu negócio decolar, e uma parceria com a Ford para fabricar um carro matador de Ferraris seria como acertar na loteria. O Mangusta teve vida curta, pois seus problemas de fabricação e complexidade aumentavam os custos e as reclamações dos clientes. Um novo projeto, pensado desde o marco zero para ser fabricado em escala maior, seria o melhor caminho. E assim nasceu o Pantera.
A Ford daria assistência técnica aos Panteras em suas concessionárias, poderia até vendê-los como um representante nos Estados Unidos (a produção continuaria a ser feita em Modena, com a Ford enviando motores e componentes, e recebendo os carros completos). Para Alejandro, o negócio era fazer dinheiro. Ser um famoso construtor de carros na Itália, ter fama e respeito, já não eram mais importantes. Se ele fosse apenas um instrumento de Henry Ford II contra Enzo Ferrari, não seria problema, contanto que lhe desse retorno.
Como um homem de negócios, de Tomaso dirigia seus investimentos com uma visão clara de business. Alguns de seus movimentos foram falhos, em termos estratégicos e de gestão, mas sempre guiados pela busca de resultados e lucro.
Aquela coisa de paixão por automóveis, da cena romântica dos fabricantes de carros exclusivos, não era para ele. Talvez este fora um dos motivos pelo qual seu negócio aos poucos foi se deteriorando.
(Fim da primeira parte). Em breve continuaremos com a história de outras empresas que devem parte (ou toda) sua história a Enzo Ferrari, pelo bem ou pelo mal.
MB