Gosto de estar informada, por isso sigo em redes sociais e leio textos de pessoas com as quais não concordo em absolutamente nada — apenas para saber o que pensam. É um exercício diário de paciência e muitas vezes algo apenas irritante, mas, mesmo assim, prossigo. Claro que pode haver algo de masoquismo nisto tudo, mas prefiro pensar que é minha interminável curiosidade. Isso serve para tudo política, esportes, economia…
No final do ano passado, depois que terminou a temporada de Fórmula 1, comecei a ler com mais afinco as notícias e os comentários que vários grupos de fãs postavam — um pouco para passar o tempo sem as corridas, outro para saber o que acontecia fora da minha bolha. Fiquei assustada.
Eu, que sempre achei os fãs britânicos meio assim, fanáticos, especialmente os seguidores de Lewis Hamilton, descobri uma outra seita tão ou mais fanática do que esta: a dos torcedores mexicanos. É impressionante o grau de belicosidade da maioria destes grupos.
É claro que fã é fã e assim como não questiono torcer por um time de futebol, também não questiono o motivo pelo qual se torce por um piloto. Mas sempre achei que podia se defender um sem necessariamente atacar outro. Que os mexicanos em geral são passionais não é novidade para ninguém — nem critico isso em si, uma característica muito latina e que tem seus lados positivos. O que me assusta é o fanatismo e a agressividade, além do grau de inconsistências. Reconheço que sou fã de Fórmula 1, mas não sou tonta de engolir lorotas.
Em comum esses grupos têm a defesa cega de Sergio “Checo” Pérez. (foto de abertura) Até aí, normal, é por isso que são chamados fãs e não seres racionais. Mas parecem mais seitas do que outra coisa. Acreditam em qualquer coisa por mais inverossímil que seja e atacam quem argumenta que aquilo não faz sentido. Nos últimos dois anos, com a ida de Checo para a Red Bull, proliferam as coisas absurdas. Vários defendem que sem o mexicano a Red Bull não teria ganho dois campeonatos seguidos de pilotos e um de construtores pois “antes da chegada do mexicano isso não havia acontecido”. Nada de ponderar que foi somente nos dois últimos campeonatos que a equipe passou a ter um carro realmente vencedor.
Tenho um faceamigo que é gênio em mercado financeiro e estatísticas. Ele faz análises de cenários para um banco e é fera no que faz porque está sempre muito bem-informado, lê absolutamente tudo e tem um bom-senso incrível. Bem, uma das coisas que ele sempre explica é que a causalidade é uma das coisas mais difíceis de se provar em Estatística. Segundo ele, medir a correlação entre fenômenos é relativamente fácil. O problema é definir, numa correlação, qual fenômeno causa o outro — se é que existe alguma causalidade. Eu acrescento: às vezes trata-se de mera coincidência.
É mais ou menos como concluir que por que houve lua cheia em 90% das decisões de campeonato mundial de F-1 as provas disputadas em datas com noites de lua cheia têm mais chances de serem decisivas. Um pouquinho de senso crítico indicaria que isso é pouquíssimo provável se a prova com lua cheia for a primeira ou segunda do campeonato. Afinal, há realmente uma causalidade entre lua cheia e decisão de campeonato? Quais as provas para esta teoria? Mas fã que é fã manda o bom-senso para as calendas e se agarra à teoria que lhe convém.
Numa discussão bizarra desse tipo li os argumentos, ponderados, de um venezuelano. O que alguns do grupo disseram, em vez de rebater os dados? “A Venezuela nem tem piloto na F-1, então cala a boca” e “O dia em que a Venezuela ganhar um campeonato de F-1 vamos conversar, até lá, cale a boa”. Obviamente, nenhum dos dois comentários faz o menor sentido e eu estive tentada a comentar que como brasileira-argentina posso falar, sim, pois temos 13 títulos mundiais entre meus dois países. Mas isso seria dar algum tipo de fundamento para um comentário apenas idiota. Quanto ao primeiro “argumento”, desnecessário dizer que em toda a história da F-1 o México teve somente 6 pilotos e que em 845 provas disputadas na categoria tiveram somente 6 vitórias e não venceram nenhum campeonato. Mais uma vez, me segurei para não entrar em disputas furadas. Mas foi por pouco. O argentino foi elegante, mas quando um terceiro (porto-riquenho) disse que a Argentina tinha 5 títulos mundiais a turba disse “há quanto tempo não ganha um título?”. Claro, zero coerência (há quanto tempo o México não ganha um campeonato?) e mil de agressividade.
Nesse mesmo grupo tive que ler que Checo é menosprezado por ser latino-americano. Ok, caros leitores, vocês ou eu contarmos que Brasil e Argentina ficam na América Latina e somam 13 campeonatos? E que são, respectivamente, o terceiro e o quarto país com mais títulos mundiais?
Não raro os comentários caem na xenofobia, como contra o venezuelano. Houve quem atacasse comentários feitos sobre F-1 por argentinos durante o mundial de futebol —
.obviamente, calaram-se assim que o México saiu da disputa e mais ainda quando a Argentina levou o tricampeonato. O que tem a ver futebol com F-1? Obviamente, nada, e se fosse para argumentar algo eu mesma poderia ter rebatido que como brasileira-argentina tenho autoridade para falar sobre o assunto pois somo 8 títulos mundiais e o México mal passou das quartas de final — na verdade, somente uma vez, nas outras ficou ainda mais atrás. Na verdade, o México é o país recordista em jogos perdidos em mundiais da Fifa, com 27 partidas. Mas, mais uma vez, me recolhi ao meu respeitoso silêncio. Tenho vários amigos mexicanos muito queridos e já estive várias vezes nesse lindo país.
Nesta entressafra de corridas, a torcida mexicana alimenta os fãs com estatísticas e informações que, se fosse no Brasil, já teriam mandado alguns disseminadores para a cadeia por espalharem feiquinius. Circula uma tabela de quantas vezes Checo Pérez teria ajudado Max Verstappen ao longo de 2021 e 2022, onde estão incluídos “dados” como “no GP da Grã-Bretanha, Max estava em sétimo lugar e Checo o ajudou fazendo com que Leclerc somasse menos pontos ao ultrapassar Hamilton, deixando-o em terceiro lugar e com isso fazer com que o monegasco ficasse fora do pódio”. Hã? Quer dizer que o mexicano não estava correndo por vitórias dele, para fazer mais pontos no campeonato? Detalhe: Pérez chegou a Silverstone em segundo lugar no campeonato, com 129 pontos e Leclerc estava em terceiro, com 126 — logo, parece muito razoável ele querer ficar à frente do monegasco independentemente de se isso ajudava ou não seu companheiro de equipe.
Também tem as vezes em que Checo tirou o ponto de melhor volta de Hamilton — como se ele mesmo não tivesse sido favorecido por isso, mas apenas o neerlandês.
A mesma lista diz que a saída de pista de Leclerc no Japão no ano passado teria sido provocada por Pérez para ajudar Max. Novamente pergunto: hã? Na corrida anterior, Singapura, o mexicano havia terminado a prova em terceiro lugar no campeonato com 235 pontos, atrás de Leclerc, que tinha 237. Verstappen estava disparado em primeiro lugar, com incríveis 341 pontos. Ou seja, o mexicano chegou em desvantagem à prova do Japão e tinha que lutar para tentar o vice-campeonato. Parece tão óbvio que dá preguiça explicar.
Checo ajudou Max nestes dois anos? Um pouco, mas levando em consideração que ele esteve sempre bastante atrás do neerlandês, como diria minha avó: você tem razão, mas tem pouca, e a pouca que tem não vale nada.
Quando foi anunciada a chegada de Daniel Ricciardo como terceiro piloto da Red Bull, voltaram a surgir os fanatismos. Teve gente que disse que isso colocava em risco a posição de Max na equipe, porque Checo era fundamental para a escuderia. Sério. Muitos chegam a afirmar que a Red Bull está em dificuldades financeiras porque a torcida mexicana estaria boicotando a compra de camisetas e bonés da marca depois das brigas entre os dois pilotos e a não-ajuda de Max a Checo no final do campeonato. Muitos, orgulhosos, alegam que Pérez vende mais produtos com seu nome do que Max. Confesso que não achei absolutamente nenhum número que confirme ou desminta isso, mas os mexicanos acham que os fãs de Pérez estão pelo mundo todo e os de Max se limitam à Holanda. Sério, parte II. Número, mesmo, claro que nenhum porque isso obrigaria a estabelecer a tal causalidade que meu amigo sempre diz que é difícil de provar.
Outros dizem que o patrocínio de Carlos Slim é que sustenta a Red Bull e se Checo sair (tinha gente que dizia que ele tem lugar garantido na Ferrari e na Mercedes…) a equipe quebra. Ninguém menciona que os milhões desse patrocínio vão quase todos para o salário de Pérez…
Destacam também a “humildade” de Pérez de comer num bar de rua (mesmo que a foto não seja clara o suficiente para se ter certeza de que era ele) e como contraste mostram Max “num restaurante caríssimo” que é, na verdade, um recorte da foto de Natal de 2021 na casa de Nelson Piquet em Brasília. E dá-lhe feiquinius…
Houve postagens hilariantes no dia 28 de dezembro, o Dia dos Santos Inocentes, que nos países ibero-americanos equivale ao Dia da Mentira. Muitos fanáticos nem pararam para ler direito as “notícias” e saíram falando besteiras. Independentemente da data, o ódio a qualquer piloto que ganhe de Checo é impressionante — especialmente Max que estaria “bloqueando” a ascensão do mexicano, que já poderia ter sido campeão várias vezes. Christian Horner e Helmut Marko são alvos constantes.
E, claro, qualquer declaração de Max é enviesada. Quando ele disse que não gostava de circuitos de rua (muitos campeões mundiais e ex-campeões não gostam), teve postagem dizendo que era óbvio, porque não vencia nessas provas como o mexicano. Os mexicanos chamam Pérez de “rei dos circuitos de rua”, mas, novamente, nem a estatística apoia essa teoria. Pérez tem quatro vitórias na carreira, três3 delas em circuitos de rua (Baku 2021, Singapura 2022 e Mônaco 2022). Max tem 35 vitórias, quatro delas em circuitos de rua (Mônaco 2021, Baku 2022, Arábia Saudita 2022 e Miami 2022), mas Lewis Hamilton tem um total de inacreditáveis 103 vitórias, das quais 21 em circuitos de rua – incluo aqui o Canadá que é uma área cinzenta, mas, tecnicamente, é circuito de rua, assim como Sotchi. Ayrton Senna teve 41 vitórias na carreira, das quais 13 foram em circuitos de rua. Nem vou seguir pesquisando, mas certamente muitos outros pilotos mereceriam o título de “rei das ruas” e não consigo encaixar Checo em nenhuma lista.
Como eu disse, fã é fã, não um ser racional, mas sinceramente acho que tem gente que passa vergonha demais. Muitas vezes basta apenas dizer “gosto do piloto tal”, sem justificar nem nada. Torcer por algum esportista entendo e acho saudável. Torcer os fatos é que me incomoda.
Mudando de assunto: este é totalmente outro assunto, mas me tocou. O grupo argentino Les Luthiers anunciou oficialmente sua aposentadoria. Muitos brasileiros os conhecem porque eles fizeram apresentações por estas paragens, mas seu humor era tipicamente argentino com muito erudição mundial. O grupo fabricava os próprios instrumentos (daí vinha o nome, pois em francês luthier é aquele que faz o próprio instrumento musical), mas não reproduzia os convencionais. Os inventava. Havia um originalíssimo baixo barriltono (justamente um baixo feito de um barril), a gaita de câmara (feita de câmara de ar de pneu), o OMNI (objeto musical não identificado), o narguilófone (feito de um narguilé) e o meu favorito, o datilófono, ou a máquina de tocar (feito de uma máquina de escrever). Todos eles tinham sons perfeitos — nada surpreendente, pois todos eram músicos profissionais. As letras eram impagáveis — eles colocaram música no Teorema de Tales (https://www.youtube.com/watch?v=OXrYNPJQoTA ) e eu só o sei até hoje desde que possa cantá-lo. Tem um argentiníssimo tango com uma letra improvável (https://www.youtube.com/watch?v=PFBSn7eFimQ ) onde brilha o datilófono, uma engraçadíssima “Candonga dos motoristas de ônibus”, mistura de candombe e milonga que é um verdadeiro retrato de como eram os motoristas de ônibus de Buenos Aires (hoje um pouco menos, mas ainda há muitas características deles na música) (https://www.youtube.com/watch?v=0FZoPwOu9cE ), a Epopeia de Edipo de Tebas (https://www.youtube.com/watch?v=d48I385Hutw ) e uma brasileiríssima Bossa Nostra (https://www.youtube.com/watch?v=y3HhjRXXVLM ). A página oficial do grupo é muito boa: https://lesluthiers.org/titulares.php
NG