Após 50 anos de ausência, a Ferrari voltará a disputar a categoria principal do Campeonato Mundial de Resistência da FIA e que inclui a prestigiosa competição 24 Horas de Le Mans, prova em que a marca foi uma das principais protagonistas, senão a principal, de 1949 a 1973. Em 25 anos e 24 participações oficiais, a Ferrari obteve nove vitórias, sendo seis consecutivas de 1960 a 1965, e também venceu em 1949, 1954 e 1958.
No final de 1973, com a péssima campanha da Scuderia na Fórmula 1 e resultados pouco significativos nas provas de longa duração, Enzo Ferrari foi forçado pela Fiat, que já era então sua sócia, a optar pela Fórmula 1 e abandonar as competições de Endurance, nas quais a marca continuou a participando não oficialmente, passando a ser representada por equipes independentes com esportivos de produção e nas categorias Grã-Turismo.
Com a nova regulamentação do campeonato adotada pela FIA (Federação Internacional do Automóvel) em 2021, a Ferrari aceitou o desafio de retornar à disputa. Para isso, a marca desenvolveu o Hypercar 499P, um modelo híbrido com motor a combustão V-6 biturbo de 3 litros, que traciona as rodas traseiras, enquanto um motor elétrico aciona as dianteiras. A potência total é limitada pelo regulamento em 500 kW, ou 680 cv.
A participação da Ferrari, entretanto, vai ser de forma semioficial. Apesar de ter desenvolvido o carro, a marca não será defendida pela Scuderia, mas pela equipe independente AF Corse, que já defende a marca de Maranello na categoria GTE há muitos anos, mas que passou a ser denominada Ferrari AF Corse. Vale lembrar que a última vitória da marca em Le Mans foi em 1965, com um Ferrari 250 LM da equipe independente americana NART.
A AF Corse, vai ampliar sua estrutura, mas também terá apoio técnico de pessoal da própria Ferrari. O carro número 50 será pilotado pelo italiano Antonio Fuoco, o espanhol Miguel Molina e o dinamarquês Nicklas Nielsen, enquanto o número 51 terá dois italianos: Antonio Giovinazzi (piloto reserva da equipe Ferrari F-1) e Alessandro Pier Guidi, que dividirão a tarefa com o inglês James Calado.
O novo regulamento, além de estimular o retorno da Ferrari, também incentivou a volta da Peugeot, que juntamente com Toyota e Glickenhaus, fabricante americano de esportivos de elevado desempenho, vão disputar na classe LMH. Já a Porsche, assim como Cadillac e, a partir de 2024, Lamborghini, BMW e Alpine, vão disputar na classe LMDh, que tem algumas características diferenciadas.
Enquanto nos modelos da classe LMH (Le Mans Hypercar) os fabricantes têm maior liberdade técnica para projetar e construir todos os elementos de seus carros, na classe LMDh (Le Mans Daytona hypercar) o regulamento exige chassi ‘específico’ fornecido por fabricante terceirizado e sistema híbrido plug-and-play pré-especificado, embora as marcas possam construir seu próprio motor e carroceria. Mas a limitação de potência é igual: 680 cv.
Ferrari em Le Mans, sinônimo de vitórias e paixão
O sucesso na desafiadora competição de 24 Horas, além do enorme retorno promocional alcançado pela pequena fábrica de Maranello, chamou a atenção de Henry Ford II, que após tentar e não conseguir comprar a fábrica de esportivos italiana, prometeu “esmagar” a Ferrari. Não poupando meios, nem recursos, ele conseguiu domar o Cavallino Rampante e os carros da Ford venceram quatro edições seguidas, de 1966 a 1969.
Mesmo assim, a Scuderia continuou sendo protagonista não vendendo fácil cada sofrida derrota para o gigante americano. Tanto que, a história acabou virando roteiro de filme: “Ford x Ferrari” (2019). Posteriormente, em 1970 e 1971, os protótipos 512 da Ferrari não conseguiram se impor frente aos potentes e eficientes Porsches 917. Desforra, com gosto de vingança, para a marca de Stuttgart, que por longo tempo ficou na sombra da Ferrari em Le Mans.
A última participação oficial da Scuderia na difícil competição francesa foi com o protótipo 312Pb, que basicamente utilizava o mesmo motor Flat 12 (ou V-12 a 180º) da Fórmula 1, mas devidamente “amansado” para competições de longa duração. Por isso, em 1972, a Scuderia não participou oficialmente em Le Mans, apesar de ter dominado o World Makes Championship (Campeonato Mundial de Marcas), com dez vitórias em dez participações.
A ausência oficial da Ferrari em Le Mans em 1972, conforme fontes da Scuderia, foi por motivos técnicos e também políticos. Segundo consta, o receio de que o motor de Fórmula 1 não aguentasse a longa prova foi acompanhada por uma contestação de Ferrari com relação ao regulamento da competição. Por sinal, uma artimanha que Enzo Ferrari sempre utilizava quando sentia que seus carros não seriam competitivos.
Em 1973 a Scuderia voltou a se inscrever oficialmente em Le Mans com três protótipos 312Pb. Um deles, pilotado pelo belga Jacky Ickx e o inglês Brian Redman, outro pelo argentino Carlos Reutemann e o australiano Tim Schenken. Esses dois carros tinham a estratégia de acompanhar o ritmo dos quatro carros da Matra-Simca, que havia vencido em 1972. Já o Ferrari, pilotado pelo italiano Arturo Merzario e o brasileiro José Carlos Pace (“Moco”), tinha a estratégia de forçar o ritmo de corrida para “quebrar” a concorrência.
Tudo corria bem, com Merzario e Pace imprimindo um ritmo muito forte e liderando a corrida nas primeiras horas quando, no começo da noite, o piloto italiano sentiu seu macacão encharcado de gasolina, que vazava do tanque. Andando bem devagar, para não precisar frear e provocar alguma faísca que pudesse iniciar um incêndio, ele levou o carro até os boxes, onde em pouco mais de uma hora os mecânicos substituíram o tanque.
De volta a competição, sem ter mais grandes expectativas, Merzario e o nosso Moco continuaram com o pé embaixo rodando em ritmo mais forte que todos outros concorrentes. Acabaram chegando em segundo, apenas seis voltas atrás do Matra-Simca vencedor. Se não fosse a parada forçada, com certeza poderiam ter vencido a corrida, naquela que poderia ter sido a mais merecida vitória da Scuderia Ferrari em Le Mans.
RM