Esta é mais uma matéria investigativa escrita pelo amigo André Chun, que já contribuiu com várias matérias importantes para esta coluna, com um aguçado espírito de pesquisa. De maneira perseverante ele desvendou este que era um mistério para a maioria dos aficionados por automóveis do Brasil.
Lembramos, por oportuno, que a partir da matéria “Pesquisa: VW Kombi e seus apelidos pelo mundo” foi decidido que para o AUTOentusiastas o gênero do “carro de entregas” da Volkswagen passou a ser masculino, e dali em diante no AE passou a ser O Kombi.
Combi mexicano made in Brazil
Como pesquisado e reportado por André Hak Joo Chun
A Volkswagen do Brasil nos surpreende de tempos em tempos. Passadas mais de duas décadas, viemos a descobrir um fato que até então era de total desconhecimento da grande maioria dos apreciadores de Kombi.
Mas antes deste fato ser revelado, sabíamos que a Volkswagen do Brasil, de 1976 a 1997, fazia os Kombis conhecidos como Clipper e que no segundo semestre de 1997 foram introduzidas os Kombis com teto alto que alguns chamavam de “Kombi mexicano”; que ficou em produção até dezembro de 2005, para em seguida receber o motor arrefecido a água que possibilitaria o Kombi ser produzido até dezembro de 2013.
Alguns marcos na produção de Kombis no Brasil estão registrados nas fotos abaixo. A primeira é o último Kombi arrefecido a ar produzido no mundo no dia 30 de dezembro de 2005, com o famoso chassi 6200:
Abaixo está o último Kombi produzido no mundo, com chassi EP022.526, que deixou a fábrica em 18 de dezembro de 2013. Este exemplar foi incorporado ao acervo da Garagem Volkswagen, o núcleo de preservação de automóveis antigos da Volkswagen do Brasil:
Por volta de 2018 viemos a descobrir, através do grupo de WhatsApp Kombi T2, dois Kombis Carat (portanto com teto alto) que foram fabricados ainda em 1996, que foi o estopim para que Helder Sobreda, presidente do Kombi Clube do Brasil, viesse a pesquisar esse dado com mais detalhe. Para minha surpresa, apareceram cerca de 400 Kombis teto alto 1996/1997 que foram montados e vendidos no mercado interno. E isso havia chamado bastante atenção porque conflitava com a informação de que os Kombis com teto alto começaram a ser feitas apenas em setembro de 1997.
Não se sabia onde estes Kombis de teto alto 1996/1997 foram produzidos, mas o fato é que depois do aparecimento desses 400 Kombis teto alto, a linha brasileira seguiu produzindo Kombis Clipper até setembro de 1997, sem que nenhum de teto alto tivesse sido produzido de janeiro a setembro de 1997.
Paralelamente a isso, era sabido que no Salão do Automóvel de 1996 a VW trouxe um Kombi Carat para ser exposto, e que esse Carat era arrefecido a água.
Especulava-se que poderia ter sido um Kombi Caravelle vindo do México:
Este exemplar possuía um motor que o Kombi nacional nem sonhava ter:
A título de comparação, enquanto a Volkswagen do Brasil fazia os Kombi Clipper 1600 a carburador e com portas do salão com dobradiças em 1997, no México, os Kombi com teto baixo, já em 1987 receberam o motor 1800 a carburador, arrefecido a água. E em 1991 receberam o teto alto. Adiante, em 1993, receberam a injeção eletrônica.
Todos esses modelos mexicanos possuíam porta de correr. As diferenças entre os modelos vendidos no Brasil e México eram enormes.
Com o passar do tempo, apareceram quatro Kombis arrefecidos a água no Brasil, anos 1997, 1998 e 2001. Dois Kombis standard e dois Kombis furgão, três deles com motores 1,8 e alguns com seus documento apresentando a estranha combinação ano-modelo (1982 modelo 1997, 1997 modelo 2001 e assim por diante).
O sr. Daniel Augusto dos Santos, de Uruguaiana, RS, possui um deles e acabou mostrando algumas de suas diferenças, mas o Kombi dele estava com motor Diesel. Nenhum desses quatro Kombis estava em estado de 0-km e ainda não tínhamos muitos dados sobre eles até o final de 2021.
Aí o amigo José Ricardo Azevedo nos alertou sobre um Kombi 0-km escondido na Zona Sul de São Paulo (foto de abertura), que tinha motor e painel diferentes dos nossos Kombis. Ele me enviou as seguintes fotos:
Esse Kombi faz parte de um lote de cinco Kombis arrematados no dia 12 de dezembro de 1998 num leilão da Volkswagen, em que todos eles vieram com motor 1,8 (detalhe: estes veículos foram leiloados como sucata). Junto ao lote, vieram alguns motores, câmbios, suspensões e barras da direção do Kombi mexicano. O Kombi cujas fotos o José Ricardo enviou era o último que restava desse lote de cinco veículos.
Verificando o chassi deste Kombi, chamou-me a atenção o código: 9BWZZZ237VP. Isso indica que era um Kombi Teto Alto (237), feito no Brasil (1998) feito em 1997 (letra V) na Fábrica Anchieta (letra P). Com esses detalhes já dava para saber, ao menos, que esse Kombi havia sido fabricado no Brasil!
Este veículo apresentava a etiqueta de identificação da carroceria onde constava a cor branca, e a data de fabricação: 27 de junho de 1997:
Contatei Imediatamente Andreas Wolfsohn (ex-engenheiro da Volkswagen, onde trabalhou por 35 anos) para falar sobre este Kombi, e a resposta dele foi: ”Ué, mas vocês não sabiam que exportávamos Kombis para o México? O México fabricava poucos Kombis. Aí transferiram tudo para cá. Estocaram a produção de Kombis em 1995 no Mexico para não faltar Kombis no mercado e mandaram o maquinário para a Fábrica Anchieta em 1996”. O Kombi ia para o México sem alguns itens que eram montados em Puebl, para atingir uma quota de manufatura local exigida pelo país. No caso, para-choques, revisteiro (acabamento que vai por baixo do painel), bancos, espelhos e limpadores de para-brisa, que eram colocados no México.
A partir dessa informação do Andreas, fui buscar informações adicionais com quem esteve na linha do Kombi naquela época e consegui falar com Rogério Rodrigues, que entrou na linha do Kombi a partir de maio de 1997. Ele montava o powertrain (motor e câmbio) na linha de produção e explicou que passavam sempre nove Kombis a ar e um Kombi mexicano a água.
Por dia, eram feitos de 12 a 13 Kombis mexicanos. Ele dizia: ”Os Kombis mexicanos levantavam a frente quando se acelerava forte. E que Valdomiro Megiolaro, que foi o supervisor da linha do Kombi por um tempo, podia passar mais detalhes”.
Ao conversar com o Valdomiro Megiolaro, ele relatou que ainda em 1995 ele havia ido ao México, para a Fábrica de Puebla, para aprender o funcionamento da linha e do maquinário. Então ele foi transferido para a linha do Kombi da Fábrica Anchieta, onde ele ficou de supervisor até 1998. Ele revelou que o maquinário foi trazido no início de 1996 e que aproveitaram que a linha do Fusca “Itamar” iria ser paralisada e que ficava ao lado da linha do Kombi, para montar o motor, câmbio e alguns componentes do Kombi mexicano.
Complementando a informação, Paulo Guino (mais de 40 anos de Volkswagen, chegando a diretor de fábrica) esteve no México assinando o contrato de fornecimento de Kombis produzidos na Anchieta e ele confirmou que o primeiro lote de 19 Kombis foi produzido em maio de 1996. Em julho de 1996 foram feitos 115 Kombis de exportação, e 220 em julho, que passava a ser produção mês a mês.
Inclusive ,ele deu um detalhe a mais: “Na montagem final, embora os motores fossem bem diferentes, o que tínhamos eram carrinhos que transportavam os motores para serem montados na carroceria e tudo isto no térreo da Ala 14. Antes a montagem era no primeiro andar da Ala 14, que depois foi transferida para dar lugar para a linha do Polo. Na carroceria tínhamos uma linha de chassi para água e ar e alguns dos dispositivos específicos para montagem do quadro do motor entre as versões além do assoalho dianteiro, que na versão a ar não tinha o recorte do “cupim”, que era a abertura para montagem do radiador na versão arrefecida à água. E o painel frontal liso para ar e com o “cupim” para a versão a água”.
E para sanar quaisquer dúvidas, nosso amigo italiano Alessandro Ferazoli, visitou a fábrica em 1996 e notou dois Kombis sendo produzidos, os Clippers e os teto alto mexicanos.
Abaixo, fotos feitas na linha de montagem, a primeira detalhando um Kombi Clipper:
Logo abaixo uma carroceria de um Kombi mexicano, com o recorte do “cupim”, tal qual o Paulo Guino tinha relatado:
Basicamente foram exportados Kombis para o México de 1996 a 2001. Essa informação pode ser vista nos catálogos mexicanos, referenciando o Brasil como seu país de origem. Nesse período, foram enviadas ao México cerca de 12.000 Kombis. O regime de importação de peças para esse veículo era via drawback, ou seja, nesse caso, os componentes importados (motor, painel, suspensão…) eram isentos de impostos, mas deveriam ser utilizados apenas em carros que tivessem como destino a exportação. Com isso, nenhum Kombi desses poderia ser vendido no mercado local. Observando que entre as peças importadas havia uma grande quantidade de peças fabricadas na Alemanha e no México.
Cenário nacional
Além do lote de cinco Kombis que foi localizado na Zona Sul de São Paulo, tem-se notícia de que dois irmãos de sobrenome alemão, de São Bernardo do Campo, adquiririam cerca de 20 desses Kombis no leilão.
Não se tem certeza, mas muito possivelmente, o Kombi mexicano 0-km encontrado pelo José Ricardo tenha sido um protótipo de um eventual estudo da Volkswagen do Brasil para o que poderia vir a ser um Kombi Carat com motor arrefecido a agua, o que infelizmente acabou não se tornando realidade na configuração do Kombi mexicano. Todo o interior desse Kombi 0-km, é rigorosamente igual ao da versão Carat brasileira a ar. Abaixo detalhes deste Kombi 0-km:
O que o “Combi” mexicano tem de diferente do nacional?
Motor: trata-se de uma unidade que gera 90 cv de potência, aliado a um torque de 14,3 m·kgf. E a título de comparação nossos Kombis 1,6 a injeção tinham 58 cv e torque de 11,3 m·kgf (gasolina) e 67 cv e 12,5 m·kgf (álcool), enquanto nossos Kombis 1,4 de quatro cilindros em linha (EA-111) entregavam 80 cv e um torque máximo de 12,7 m·kgf usando álcool como combustível e 78 cv e 12,5 m·kgf com gasolina.
Nota-se que a numeração do motor não segue a mesma sequência dos motores nacionais:
Câmbio: Olhando a peça de fora, se observa que o câmbio possui dimensões maiores do que os nacionais e as relações das marchas são mais longas, devido ao motor mais forte. A tabelinha abaixo ajuda a entender as relações de marchas entre os Kombis:
Em resumo, o powertrain dos Kombi mexicanos não tem nada a ver com nossos Kombis. Elementos de fixação, coxins, escapamentos, refratários, entre outros itens, são sempre diferentes:
Suspensão: A suspensão dianteira do Kombi mexicano é pivotada, isto é, tem articuladores esféricos na manga de eixo em vez de pinos. Na suspensão traseira, braço arrastado, facão e juntas homocinéticas são maiores do que as respectivas peças dos Kombis nacionais. Os braços de suspensão são os mesmos dos Kombis alemães. Os freios possuem pinças de dois pistões com a finalidade de conter o potente motor 1,8, e a caixa de direção também é diferente da nossa.
Para-choques: Externamente, ambos para-choques, dianteiro e traseiro, não são arredondados como nas nacionais. Teoricamente, deveriam vir com capas de plástico cobrindo a alma metálica.
Alarme: Tanto o Kombi quanto o Vocho mexicanos, vinham com um alarme de fábrica com acesso na parte externa dos veículos. Este alarme é acionado por meio de uma chave específica, diferente da chave de ignição e partida:
Tampa do tanque de gasolina: além das tampas serem diferentes, tampa mexicana de metal e brasileira de plástico, existe um problema na hora de abastecer gasolina aqui no Brasil em um Kombi mexicano. O bico de abastecimento das bombas dos postos de gasolina do Brasil não entra no bocal do tanque do Kombi mexicano, que tem o diâmetro menor do que o especificado na norma brasileira para que no México ele só possa ser abastecido com gasolina sem chumbo tetraetila. Idêntica solução é usada nos carros de mercado americano.
Painel: O painel do Kombi mexicano é bem diferente do painel do Kombi nacional. Ele possui ventilador de 3 velocidades, além de ar quente. O volante é o mesmo dos Kombis T3 alemães
O aquecedor/ventilador do Kombi leva o ar quente/frio para os pés, vidro dianteiro e difusores do painel:
Alças de apoio (“PQP”): existem alças de apoio em todas as colunas e em várias partes do teto do Kombi mexicano. Já os Kombis nacionais só têm uma alça de apoio do lado do passageiro, embora possuam os furos para as demais alças que acabaram não sendo instaladas.
Luzes de cortesia: existem luzes de cortesia também no porta-malas e no teto. Elas acendem com os interruptores instalados nas portas.
Forros de acabamento internos: os forros do salão, central do lado esquerdo e traseiros de ambos os lados são presos com clipes e parafusos. Os forros da porta de correr e das portas são apenas presos por clipes. A razão disto é porque o Kombi mexicano, com esse motor mais potente, impõe um esforço de torção maior na carroceria, daí a fixação por parafusos nos itens fixados à carroceria. Nossa Kombi nacional tem todos os forros presos apenas por clipes.
Tampa do porta-malas: Diferentemente dos Kombis do Brasil, a tampa do porta-malas possui um sistema que dispensa o uso de molas a gás para manter a porta aberta.
Carroceria: por conta da maior potência do motor 1800 a injeção, a carroceria dos Kombis mexicanos recebeu reforços estruturais, que incluem uma estrutura transversal adicional na parte traseira do teto. Sem esse reforço, a altas velocidades, o teto sofreria deformações. Outros reforços foram necessários em alguns pontos da carroceria, por exemplo, por causa dos ruídos que o silenciador do motor arrefecido a água causava e que não se escutavam nos Kombis arrefecidos a ar, apesar do seu barulhento motor 1600 boxer. As carrocerias de Kombis brasileiros fabricados de 1996 até 2001 acabaram recebendo esses reforços, que foram eliminados assim que a exportação ao México foi encerrada.
Como curiosidade, o molde e ferramental que fazia a frente e assoalho do Kombi exportação, após 2001 ficou largado em algum canto da fábrica. Decorridos quatro anos adicionais, com a iminente retirada de fabricação do motor a ar programada para 30.12.2005, houve um corre-corre na fábrica atrás do ferramental dos Kombis mexicanos, a fim de fazê-los operacionais novamente. Foi um desafio que deu certo, porque esses moldes trabalharam incessantemente por mais oito anos.
Finalmente agradecemos ao ex-proprietário que prefere não ser identificado, por ter guardado tão raro exemplar por 25 anos, e que nos permitiu compartilhar detalhes dessa bela nave feita pela VW do Brasil.
A paca CKV, “Combi” (que, repetimos, é a nomenclatura do Kombi no México), Kombi (nomenclatura brasileira) e Volkswagen, veio bem a calhar para esse exemplar.
De um lado é muito bom ter esse exemplar de “Combi” mexicano preservado como item raro de coleção e em mãos conscientes de um colecionador que também prefere ficar no anonimato. Ele tem vários Fuscas raros também.
Por outro lado há um aspecto intrigante nesta história: foi emitido um manual do proprietário em português para os Kombis mexicanos Made in Brazil. Mas por que que isto foi feito? Talvez houvesse a intenção de lançar esses veículos no Brasil também, com as devidas adaptações às condições brasileiras. Abaixo, algumas fotos de detalhes deste manual:
Até o final da década de 1990, era comum que veículos protótipos ou pré-série adquiridos em leilões da fábrica viessem a ser “legalizados”, através de caminhos que incluem a Lei do Usucapião de Bens Móveis, nos quais os aspectos técnicos da legislação são solenemente esquecidos em favor de tecnicalidades jurídicas que conduzem à liberação para circulação. Para evitar tais procedimentos, as fabricantes passaram a não mais vender esses carros montados. Um exemplo recente é o Gol Last Edition 0000/1000, um pré-série, que tem como destino o triturador.
No caso dos Kombis mexicanos, o fato de existirem alguns exemplares rodando contribuíram para contarem uma história que era desconhecida, mas aqueles que compraram exemplares de Kombis mexicanos certamente enfrentam problemas com a reposição de peças originalmente importadas, além de terem que fazer adaptações com o bocal de gasolina do Kombi nacional para poderem abastecer o carro (no caso, o Kombi 0-km foi mantido o bocal original e o abastecimento da gasolina é feito através de um funil).
Isto posto eu gostaria de dar meus parabéns e agradecer ao André Chun por mais esta importante participação nesta coluna.
AG
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