Bem, caros leitores, dizem que a paciência é uma virtude e agradeço ao leitor Lorenzo Frigério que me pediu, no longínquo 2022, para falar sobre os Dodges argentinos e que só agora eu consegui atender. Faz tempo que não vejo comentários dele neste espaço e talvez tenha desistido de esperar, mas, em todo caso, lá vou eu cumprir minha promessa.
Vamos, primeiro, ao começo de mais uma interessante história do automobilismo argentino. O empresário Julio Fevre fundou em 1910 na Argentina a Julio Fevre y cia, dedicada à importação de veículos, especialmente franceses. Seis anos mais tarde, conseguiu a representação da Dodge e em 1928 Diego Basset entra como sócio e a firma passa a se chamar Fevre y Basset S.A. As vendas e a montagem de veículos vai muito bem (de fato, haviam triplicado em 1937) até que começa a Segunda Guerra Mundial e restringe a importação de insumos de todo tipo.
Naquela época, os carros eram produzidos em pleno centro de Buenos Aires, no Palácio Chrysler, na Avenida Figueiroa Alcorta (uma das minhas favoritas em toda a cidade) no já então elegante bairro de Palermo Chico e que era uma antiga concessionária Chrysler. O prédio havia sido inaugurado em 1928 para funcionar como concessionária de veículos. O projeto era de Mario Palanti, um famoso arquiteto italiano que morou na Argentina e desenhou outros lindos prédios na cidade, como o Palácio Barolo, na Avenida de Mayo. E vamos a mais um momento cultural do dia: o Palácio tinha uma pista de testes na parte superior. (foto palácio Alcorta)
O prédio era uma obra arquitetônica em si. A pista de testes ficava na parte superior, como se fosse o teto do palácio, e era chamada de Estádio Olimpo. Era circular, com curvas inclinadas num total de 1.730 metros – a primeira e única de toda a América Latina. Tinha arquibancadas com capacidade para 3.000 pessoas e, claro, era usada também para eventos sociais.
Momento cultural 2: anos mais tarde, o palácio passou para o Comando de Arsenales del Ejército e foi sede do Registro Nacional de Armas. Em 1994 foi reformado e se transformou num luxuoso edifício residencial, que passou a ser chamado Palácio Alcorta.
Em alguns anos, ficou evidente que o crescimento da cidade inviabilizava a manutenção da unidade fabril no centro, e o grupo inaugura uma fábrica de 38 hectares no município de San Justo, na província de Buenos Aires. Com o início da Segunda Guerra Mundial, a empresa enfrenta todo tipo de dificuldades a importação de insumos e fica praticamente parada durante cinco anos. A produção é retomada com o final da guerra e aumentam as marcas. Em 1957, a Fevre começa a construir pequenos caminhões da marca Krupp e o carro símbolo do pós-guerra, o Fusca.
Em 1959, com a implementação da política do governo argentino de estímulo à indústria nacional sobre a qual já falei neste espaço, a Chrysler Corporation transfere integralmente a construção de carros, caminhões e vans à Argentina. A Fevre y Basset assina um acordo com a empresa americana e surge a Chrysler Argentina. Pelo acordo, a Fevre y Basset seria a responsável pela montagem dos veículos na fábrica de San Justo e pela distribuição de marca em todo o país.
Já no ano seguinte são produzidos os primeiros Chryslers nacionais — inicialmente, apenas os caminhões D-400 e os vans D-100, equipados com motores argentinos, em cumprimento à política de incentivo de nacionalização.
O primeiro carro de passeio argentino da Chrysler começa a ser desenvolvido na mesma época, baseado no Plymouth Valiant que é lançado ao mercado em 1962 com o nome de Valiant I e Valiant II — a diferença entre um e outro era o formato do estepe na tampa do porta-malas, exclusiva do Valiant I.
Paralelamente, a Fevre y Basset produz caixas de câmbio para os veículos próprios e de terceiros. Entre 1962 e 1964 chegaram a ser produzidas 27.000 unidades, enquanto são lançadas novas versões do Valiant, equipado com motores Slant-Six (seis em linha inclinado) de 3.687 cm³, como o Valiant III e o Valiant IV, sempre derivados do americano Dodge Dart. Picapes e caminhões também recebem modernizações e a empresa passa a oferecer ao mercado outras marcas, como Fargo e DeSoto.
Em novembro de 1965 é formalizada de vez a Chrysler-Fevre Argentina. Amplia-se a fábrica de San Justo e em 1970 a Chrysler-Fevre compra a antiga fábrica da Siam Di Tella, na cidade de Monte Chingolo, e sobre a qual já falei aqui. Três anos mais tarde, a linha Valiant é substituída pela linha Dodge Polara e todos os utilitários passam a ser Dodge.
A linha Polara passa a ter várias versões: o Dodge Polara, o Dodge Polara RT (cupê esportivo), o Dodge Coronado (sedã de luxo) e o Dodge GTX (cupê esportivo com motor V-8). Em 1971 começa a ser produzido o Dodge 1500, o primeiro modelo médio fabricado por uma empresa americana na Argentina, e sobre o qual falarei na próxima coluna.
Desta vez, o ocaso da Chrysler Argentina não teve a ver com a empresa no país vizinho, mas principalmente com problemas nos Estados Unidos. Mesmo com a falência e a ajuda de US$ 1,2 bilhão do governo Jimmy Carter, em 1979 a Chrysler Corporation sai da Argentina e fecha as unidades de Brasil, Colômbia, Venezuela e Peru e até mesmo da Europa. Na Argentina, a Chrysler-Fevre é vendida e em 1980 se estabelece a Volkswagen Argentina. A linha Dodge é toda descontinuada (exceto o Dodge 1500) até que em 1990 até mesmo o Dodge 1500, chamado então de Volkswagen 1500, sai de linha e termina, oficialmente, a história da Dodge e da Chrysler na Argentina. Mas o financiamento, o fato de ele ter sido pago antes do vencimento e toda a operação de resgate da Chrysler fizeram o nome do executivo Lee Iacocca, que virou uma estrela pop do mundo empresarial. Mas essa é outra história.
Dodge GTX
Lançado no final dos anos 1970, o Dodge GTX (foto de abertura) era uma versão derivada do GT sedã, mas mais ousada — daí o “X” no nome, que vinha de “extremo”. Com seu motor V-8, no estilo muscle car é um dos ícones da indústria automobilística argentina. Ele reunia tudo o que meus patrícios amam num carro, especialmente o motor – um potente V-8 ou um seis -ilindros, dependendo da versão.
No caso do V-8, eram 212 cv a apenas 4.400 rpm e cilindrada de 5.210 cm³. O carro tinha 5 metros de comprimento e 2.800 milímetros de entre-eixos, mas com 1.600 kg. O chassi longo era perfeito especialmente nas retas.
A partir de 1972, a versão seis-cilindros do GTX passou a ser chamada de Polara Coupé e o motor V-8 passou a ser o único disponível para o GTX. O câmbio manual de quatro marchas havia sido projetado com marchas altas (curtas) e uma embreagem suave, o que o fazia ideal para uso em estradas de montanha, comuns em várias regiões da Argentina, mas também nos Estados Unidos.
Fez, é claro, bastante sucesso na adorada categoria argentina de Turismo Carretera, mas, por questões de regulamento não podia ter motor V-8, que havia sido substituído pelo Slant-Six dos modelos Polara e RT. Os modelos foram pilotados por glórias do automobilismo argentino como Juan Manuel Bordeu, Carlos Loeffel, Roberto Mouras, Oscar Castellano e Oscar Angeletti.
Boa parte da década de 1980 foi dominada pelo GTX, desbancando as tradicionais Ford e Chevrolet. Foram 8 dos 10 títulos da marca na categoria Turismo Carretera. A mudança só veio quando em 1989 os modelos da Chevrolet e da Ford passaram a receber uma maior taxa de compressão por mudanças no regulamento o que, somado ao aumento de custos de manutenção dos Dodges, acabou por provocar um êxodo de pilotos para as outras marcas.
Em meados dos anos 1990, a chegada dos motores Cherokee em substituição dos Slant Six provocou enormes mudanças na Turismo Carretera. No entanto, só voltaram a comemorar vitórias vários anos mais tarde, com Ernesto Bessone (campeão em 2003) e Norberto Fontana (campeão em 2006).
A saída da Chrysler da Argentina sepultou de vez o muscle car argentino que conta, até hoje, com um enorme número de fãs.
Mudando de assunto: tenho um sobrinho lindo de 5 aninhos, o Martín. Desde o ano passado dedico-me a ensinar a ele alguns princípios da Fórmula 1 e, para minha felicidade, é um aluno aplicado e entusiasmado. Já reconhece os símbolos das equipes no quadro que mostra as posições dos pilotos na pista (mesmo pequenininho como aparece na televisão) e, por eles, sabem quem é companheiro de equipe de quem, embora ainda não saiba ler. Assiste corrida junto comigo e reconhece alguns carros pelas cores. Semana retrasada antes do início da corrida do Bahrein, decidiu que ia torcer “pelo carro verde”. E não é que o Alonso pegou um pódio com o Aston Martin? Tia babona é pouco para mim…
NG
A coluna “Visão feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autoria.