Semana passada comecei a falar (seria escrever?) neste espaço sobre os Dodges argentinos, atendendo a um pedido do leitor Lorenzo Frigério. Vamos, então, à segunda e última parte deste assunto, agora exclusivamente sobre o Dodge 1500 (foto de abertura).
O modelo era chamado na Argentina, carinhosamente, de “Milqui”, abreviação de “Mil quinientos”. Sim, desde sempre os argentinos t~em(os) a mania de dizer as coisas pela metade e carro não poderia ficar de fora. No lançamento teve uma única versão, a STD, mas ao longo dos anos vieram outras.
Começou a ser fabricado em agosto de 1971 e foi o primeiro modelo médio fabricado por uma empresa americana na Argentina. Reconheço que o recorde é pouco usual, mas é o que temos para hoje e assim ele era promovido na época. Também foi o primeiro automóvel de 4 cilindros feito por um fabricante americano na Argentina — até então, o comum eram os modelos de 6 cilindros ou mais — e chegou a estar entre os modelos mais vendidos no país, especialmente como opção de carro para a classe média e a média baixa.
O Milqui marcou o ingresso da Chrysler no segmento de carros compactos médios, do qual estava ausente e onde perdia espaço para fabricantes como Fiat e Peugeot. Os italianos tinham modelos como o 1500 e o 1600 e os franceses concorriam com o 404 e, anos mais tarde, com o 504.
Lembrem-se, caros leitores, que a crise do petróleo começou a ser desenhada no final dos anos 1960 e início dos 1970 quando o mundo percebeu que o recurso era finito e que sua produção estava muito concentrada em países com conflitos internos e com seus vizinhos, como foi o caso da Guerra dos Seis Dias, em 1967. Claro que nada que se compare ao que viria em 1973, mas muitas indústrias começam a analisar alternativas que dependessem menos do petróleo ou que consumissem menos, e a automobilística não ficou totalmente fora, embora em alguns países tenha demorado mais para reagir do que em outros.
Sem contar com um modelo como base para o lançamento, a Chrysler usou o Hillman Avenger, produzido em suas unidades na Inglaterra, que também serviu de base para o Plymouth Cricket americano. Na Inglaterra, o Hillman Avenger saíra de linha em 1970, depois de oito anos de produção contínua.
Se a Chrysler já era um sucesso na Argentina, e a linha Dodge ainda mais, o Milqui representou um salto considerável nas vendas no país vizinho. Na época do lançamento, com muita pompa, teve a presença do já então pentacampeão de Fórmula 1 Juan Manuel Fangio e do piloto Juan Manuel Bordeu, protegido do próprio Fangio que tentou lhe ajudar na carreira e que chegou a dizer seria seu filho.
Vamos agora a um momento cultural totalmente banal: uma filha de Bordeu foi casada entre 1981 e 1991 com Mauricio Macri, que foi presidente da Argentina entre 2015 e 2019. O próprio Bordeu se casou pela segunda vez com a grande atriz argentina Graciela Borges, muito premiada e uma das mulheres mais lindas e elegantes de sua época.
O Milqui era produzido pela Chrysler-Fevre argentina, mas quando em maio de 1980 a indústria foi comprada pela Volkswagen criou-se a Volkswagen Argentina S.A. e a linha Dodge foi descontinuada — exceto o modelo 1500, que manteve o nome até 1982 e só então passou a ser chamado Volkswagen 1500. Ou, resumindo, entre 1971 e 1980 foi produzido pela Chrysler-Fevre Argentina, entre 1980 e 1986 pela Volkswagen Argentina e entre 1986 e 1990 pela Autolatina (lembram? A união da Ford e da Volkswagen no Brasil e na Argentina). Foi o último resquício de um Chrysler-Fevre.
No Brasil, o modelo foi produzido entre 1973 e 1981 na unidade de São Bernardo do Campo , SP apenas na versão sedã duas-portas como Dodge 1800 e posteriormente renomeado Dodge Polara. Juvenal Jorge escreveu sobre ele.
Esteticamente, o Dodge 1500 lembrava um pouco o Chevy da General Motors, especialmente pelo porta-malas e chegou a ser chamado de “pequeno Chevy”. Pessoalmente, acho um pouco forçado, mas…
O modelo, como já disse, era um compacto médio, de quatro portas, teoricamente mais para uso familiar, mas a Chrysler-Fevre resolveu lhe dar um toque esportivo e colocou rodas de aço, mas com desenho esportivo, simulando as rodas de magnésio que naquela época eram exclusivas de carros esporte e muito mais caros do que o 1500. Mas, como já disse muitas vezes, argentino adora carro rápido e acho que foi uma boa sacada de marketing fazer essas rodas.
E por falar em velocidade, o motor do Dodge 1500 de quatro cilindros em linha era de 1.493 cm³ e fornecia 61 cv a 5.400 rpm e o comando de válvulas era no bloco. A aceleração de 0 a 100 km/h levava hoje intermináveis 22,3 segundos e a velocidade máxima era de 142 km/h. Novamente, caros leitores, estamos falando de mais de meio século atrás.
O câmbio era manual de quatro marchas sincronizadas, com alavanca no assoalho A suspensão dianteira era independente, tipo McPherson e barra antirrolagem. O trem traseiro tinha sistema de suspensão de eixo rígido com molas helicoidais, braços longitudinais e barra Panhard, com relação final de 4,10: 1. Os freios eram a disco nas rodas dianteiras e a tambor nas traseiras.
O interior da versão STD não era lá grande coisa mesmo para os parâmetros da época. Os bancos do motorista e do carona não reclinavam, tinham apenas ajuste longitudinal. A única “modernidade” era esses bancos dianteiros individuais, em vez do comum (à época) inteiriço. Mas era, de fato, pouco ergonômico.
Nos primeiros modelos havia quatro instrumentos circulares — medidor de combustível, temperatura, velocímetro e amperímetro. Em pouco tempo adicionaram o conta-giros que não existia nos primeiros modelos, mas que no painel já estava previsto e vinha com um estranho buraco. Nunca soube o motivo de não incluir o que para mim é um dos instrumentos mais úteis num carro e, mais estranho ainda, terem deixado o espaço para isso.
Se os primeiros modelos eram um tanto quanto espartanos, em alguns meses a Chrysler-Fevre tratou de suprir algumas carências e, ainda em 1971, lançou a versão SPL, com bancos reclináveis, rádio original de fábrica (no STD era opcional), entre alguns outros detalhes de melhor acabamento.
Dois anos mais tarde, foi lançada a versão GT90 com servo-freio, estofamento exclusivamente preto e detalhes de pintura para dar ao modelo ares mais esportivos — que incluíam o famigerado conta-giros como item de linha, que faltava nos outros. O nome vinha dos 90 cv entregues pelo motor 1500, mas com alterações no comando de válvulas. Para ressaltar o aspecto esportivo, o coletor de escapamento era quatro-em-um, e o de admissão tinha com dois carburadores horizontais.
Ainda em 1973, é lançada a versão SP, exclusivamente na cor laranja com faixas laterais pretas e opção de câmbio automático de 4 marchas e, no ano seguinte, o SPL, exclusivamente automático em resposta ao lançamento do Ford Taunus.
Em 1974, sai ao mercado o Dodge 1500 M 1.8 que, como o nome mesmo indicava, era um “Milqui” com motor 1800 (1.799 cm³), 76 cv e velocidade final de 157 km/h para substituir o então modelo esportivo da linha, o GT90. E não, não me peçam para explicar o óbvio conflito de chamar um carro de “Mil quinientos” quando o motor é 1800…
Em 1977 a Chrysler-Fevre dá um novo passo e lança o GT100 – o mesmo motor 1800, mas com dois carburadores Stromberg horizontais, comando de válvulas mais esportivo que fornecia 105 cv. O novo modelo vinha em apenas duas cores: azul com listras brancas ou preto com listras douradas, mas durou pouco tempo e em cerca de um ano saiu de linha.
Apesar de todos esses novos modelos, até 1978 não havia sido feita nenhuma reestilização de verdade no Dodge 1500. Foi naquele ano que se mudam os conjuntos de faróis, a grade dianteira e o para-choque que deixam o carro mais parecido com o Chrysler Avenger, que havia substituído o Hillman Avenger, que foi um verdadeiro fiasco de vendas — mais por problemas com a falta de equipamentos, que eram considerados por demais básicos, do que por questões mecânicas.
Para não variar, a Chrysler-Fevre lançou um modelo station wagon, algo que durante décadas foi motivo de paixão dos argentinos. É difícil achar algum modelo que não tenha tido, em algum momento, uma versão station wagon na Argentina. Assim, em 1978 a linha toda incluía o Dodge 1500, o 1500 M.18 (como já disse, não me peçam para explicar o motivo de ser chamado 1500 quando o motor já era 1800 pois apenas o marketing e a boa aceitação do Milqui explicam) e o a 1500 M 1,8 rural (“rural”, como são conhecidos os modelos station wagon na Argentina).
O principal atributo do Milqui sempre foi a confiabilidade. Não era um modelo bonito nem mesmo para a época, os acabamentos também não eram lá grande coisa e eram muito escassos em quantidade, mas a mecânica era um fenômeno. Lembro de uma das campanhas publicitárias na qual dois mecânicos conversavam numa oficina sobre quando receberiam um Dodge 1500 e terminava com o slogan do modelo: “Anda, y anda, y anda…”
Desde meados dos anos 1970, o Milqui começou a participar de provas de Turismo Carretera, outra paixão dos argentinos. A versão com motor 1,8 disputou com sucesso o campeonato argentino de Turismo Carretera 2000. Os pilotos Jorge Omar del Río e Rubén Luís di Palma ganharam nada menos do que quatro campeonatos consecutivos, o de 1980, 1981, 1982 (del Río, com di Palma vice em 1981 e 1982, com um Milqui) e 1983 (com di Palma ao volante). Del Rio ganhou provas e campeonatos argentinos em várias categorias e Di Palma quase dispensa apresentações. Para quem acha o nome conhecido, foi um dos membros da famosa Missão Argentina Torino que em agosto de 1969 participou da Marathon de la Route em Nürburgring, sobre a qual já escrevi neste espaço e uma história tão linda sobre meu adorado Torino que se não me segurar começo a escrever de novo de tanto que gosto desse fato.
Já sob a marca VW, o Milqui ganhou também provas e o piloto Guillermo Maldonado foi vice-campeão na TC2000 contra ninguém menos do que Juan María Traverso (de merecido renome na Argentina e com participações internacionais como na Fórmula 2 europeia) num Renault. Num lance de marketing, a Volkswagen “relançou” o slogan do Milqui: “Anda, y anda, y gana…”
A segunda grande reestilização do Milqui veio em 1982 quando foi abandonado definitivamente o nome Dodge e passou a ser Volkswagen 1500. As maiores alterações foram nos para-choques e nos faróis. Até sua morte, foram vendidas 262.668 unidades do modelo.
Mudando de assunto: depois da confusão que a FIA fez no Grande Prêmio da Arábia Saudita, quando Fernando Alonso terminou em terceiro lugar com seu Aston Martin, para depois ser desclassificado, assumir o lugar George Russell com o Mercedes e depois desfazer tudo e voltar Alonso ao pódio, a Mercedes teve uma sacada genial. Vejam vocês no vídeo abaixo. E já antecipo que a Aston Martin não ficou atrás e fez um vídeo perguntando quanto eles deviam pelo combustível. Sensacional:
https://www.youtube.com/shorts/k7yt1pedrSc
NG
A coluna “Visão feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autora.