Gosto muito de pesquisar o cyberespaço aleatoriamente. Gosto de pensar, pelo menos de vez em quando, que sou eu quem decide o que vai ver nas páginas a internet — claro que isto é só parcialmente verdade, pois conheço muito bem os algoritmos dela e conheço apenas um pouco como driblá-los. Mas o fato é que, numa busca aleatória por assuntos para este espaço, lembrei de algo que havia visto aqui neste Autoentusiastas em novembro de 2020 mas que foi mencionado meio de passagem e, claro, fui atrás de mais informações.
O primeiro carro a ultrapassar os 100 km/h foi um carro elétrico, belga. Apaixonei-me (ênclise simples, mas ainda assim está valendo, não?) imediatamente pela história e por isso estou cá a escrever sobre ela.
O piloto do Jamais Contente era o engenheiro belga Camille Jenatzy, filho de Constant Jenatzy, um fabricante de pneus de borracha, o que por si só já era uma novidade naquela época quando ainda eram comuns os pneus maciços. O veículo foi chamado de “La Jamais Contente”, algo assim como “nunca satisfeito”, lembrando que carro, em francês, é feminino. A mulher de Camille alegava que era isso o que seu marido era, pois nunca estava satisfeito com as próprias realizações.
O desenho era como o de um torpedo e o carro tinha dois motores Postel-Binay de 34 cv cada um, que acionavam o eixo traseiro por uma corrente, gerando uma potência total de 68 cv. O protótipo usava duas baterias de 100 W·h cada uma e os pneus eram Michelin, fornecidos direta e pessoalmente por Édouard e André Michelin, fundadores da marca.
O recorde foi quebrado no dia 1º de maio de 1899, em Achères, perto de Paris quando o carro alcançou 105,882 km/h. A melhor marca antes desta havia sido alcançada em 4 de março daquele mesmo ano pelo conde Gaston de Chasseloup-Laubat, que alcançou os 92,78 km/h. Ambos foram ferozes rivais na busca pelo recorde de velocidade durante vários anos.
Camille era um obstinado pelos motores elétricos e por bater o recorde de velocidade. Ele chegou a construir diversos veículos com essa propulsão, mas seu primeiro carro, fabricado em 1898, alcançou apenas 27 km/h, prova de que perseverar num projeto muitas vezes dá certo.
A carroceria do Jamais Contente foi desenhada para fazer o carro mais rápido e usando materiais inovadores. Nas fábricas da família Rothschild foi feita uma liga metálica muito leve de alumínio, tungstênio e magnésio chamada partinium.
Atualmente, a primeira coisa que chama a atenção ao ver o protótipo é a posição do piloto, que certamente seria reprovada nas pranchetas do “mago” da aerodinâmica Adrian Newey por ser alta demais. O chassi tão exposto também não acompanha os modernos conceitos de aerodinâmica, mas, novamente, estamos falando de 1899.
A ironia desta história é que apesar do recorde ter sido batido com um carro elétrico, o século seguinte inteiro foi amplamente dominado pelos motores a combustão e não pelos elétricos.
Jenatzy e Chasseloup-Laubat continuaram disputando corridas, mas depois do recorde do belga a rivalidade esmoreceu um pouco. Camille Jenatzy, apelidado de “O diabo vermelho” por causa da cor de sua barba e da sua paixão pela velocidade, morreu em 1913 ao ser atingido por uma bala disparada pelo seu amigo Alfred Madoux num acidente de caça. Mas a história reserva duas versões para este acidente. Uma diz que numa brincadeira besta, o belga teria se escondido atrás de um arbusto e imitado um urso para assustar o amigo. Se foi assim, deu certo, pois Madoux se assustou e atirou. A segunda versão é mais, digamos, romântica e chocante e certamente mais rocambolesca. Madoux teria atirado em Jenatzy porque ele seria amante de sua esposa. O fato é que a precoce morte de ambos pôs fim a uma disputa interessantíssima, pois o conde francês morreu aos 37 anos, em 1903, por causa de problemas nos pulmões.
O Jamais Contente está no museu do automóvel na cidade de Compiègne, na França (foto de abertura).
Mudando de assunto: a corrida de F-1 da Espanha (ou da Catalunha, como diriam meus amigos catalães embora este não seja o nome oficial) mostrou a enorme superioridade não apenas da Red Bull, mas especialmente da dupla Adrian Newey e Max Verstappen. Um projeto vencedor e um piloto excepcional, juntos, são praticamente imbatíveis. Ao contrário do que algumas pessoas me dizem, não acho a Fórmula 1 atual chata. Nem um pouco. Já tivemos muitos períodos de dominância absoluta de uma escuderia (em 1988 a McLaren venceu 15 dos 16 grandes prêmios e só deu chance a outra marca quando seus dois carros quebraram) e até mesmo de um piloto, como foram os anos de ouro de Michael Schumacher e de Lewis Hamilton e jamais deixei de acompanhar a categoria. Assim como eles, Max tem se mostrado um piloto fora de série, o que não impede que eu aprecie as impecáveis estratégias da Red Bull (e as incríveis trapalhadas de estratégia da Ferrari) e muitas disputas na outra categoria, a Fórmula 1 propriamente dita já que como muitos dizem, há a categoria F-1 e a categoria Max Verstappen. A cada prova fica mais difícil eu torcer por Charles Leclerc e já perdi as esperanças de bons resultados da McLaren, especialmente de Lando Norris. Em compensação, a Aston Martin e a excepcional fase de Fernando Alonso tem sido motivo de muita empolgação, a ponto de me fazerem mudar de ideia quanto ao espanhol – alguém em quem sempre vi um talento enorme, mas que nunca me simpatizou pela enorme quantidade de sujeiras em que se envolveu em toda a carreira. Na verdade, não acho que eu tenha mudado de ideia — acho que Alonso é que mudou de atitude. E para melhor.
NG
A coluna “Visão feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autora.