A recente coluna do Douglas Mendonça narrando um pouco a história dos motores VW EA-827 despertou algumas lembranças gostosas, levando-me a abandonar um pouco os textos mais sisudos e técnicos sobre aviação e compartilhar aqui, no AUTOentusiastas, minhas vivências e lembranças dos carros com essa motorização que passaram pela minha garagem.
Falar da história dessa família de motores é assunto mais do que esgotado, então seria “chover no molhado”. Dessa forma, concentrarei em narrar algumas lembranças e vivências que tive com modelos dotados dessa motorização.
Meu primeiro 827
Apesar de ter sido proprietário de três Gols, nenhum foi “AP” ou “MD”: meu primeiro VW EA-827 estava num Golf GLX 1997!
Tratava-se de um 827 diferente, de 2 litros de cilindrada com o famoso bloco alto e cabeçote de fluxo cruzado, dutos de admissão e escapamento oposto em vez de do mesmo lado. Confesso que ao pegar o carro pela primeira vez (usei-o de zero até os 90 mil km), fiquei meio surpreso ao abrir o capô e ver aquele motor inclinado para trás (como no Logus/Pointer) e aquele tubo condutor de ar protuberante, em metal, por cima da tampa de válvulas, com o emblema VW em alto relevo e o “2.0” em baixo relevo.
Com 115 cv a 5.400 rpm e 16,9 m·kgf a 3.200 rpm, o pacato e discreto GLX tinha uma tocada engraçada: era um motor meio morto abaixo de 1.500 rpm que para sair tinha “jeitinho”. Se acelerasse demais, a embreagem patinava muito, se acelerasse de menos o motor apagava.
O volante desse motor devia ser significativamente mais leve, pois ele subia e descia giro muito rápido. Alguns sites vendem a peça e dizem que que pesa cerca de 5,7 kg, mas não posso afirmar com precisão.
Em termos práticos, as trocas de marcha ascendentes não podiam ser calmas, uma vez que a queda rápida de rotação a deixava abaixo da correspondente à da marcha superior, ocorrendo tranco ao soltar o pedal de embreagem. Era necessário fazer as trocas ascendentes com certa vivacidade para evitar o citado tranco ou recorrer à “mudança paulista”, chamada assim jocosamente pelos cariocas, que é a (desnecessária) aceleração interina nas trocas ascendentes, nada mais que para mostrar aos outros que sabe dirigir, que tem estilo.
Eu, como aprendi a dirigir em uma Marajó (e seu pesado eixo cardã) e em caminhão, costumava segurar o acelerador levemente pressionado para evitar a queda excessiva de rotação e fazia uma “cambiada” mais suave.
À parte isso, esse EA-827 de bloco alto girava liso que dava gosto. Depois das 2.500 rpm ele “estilingava” e subia até à rotação de corte (6.500 rpm) sem vibrações ou asperezas, numa experiência bem diferente dos demais VW 2-L que eu havia experimentado até então. A principal razão da suavidade de que o nosso 2-litros (AP-2000) carecia era as bielas de 159 mm, que resultava na relação r/l 0,29, enquanto no AP-2000 com bielas de 144 mm era 0,32, acima do máximo ideal 0,30.
Uma coisa que me deu um certo trabalho na época foi uma manutenção corretiva: o sistema de injeção desse carro era o Bosch Digifant, gerenciada por uma ECU que na época era pouco conhecida e eram poucos os mecânicos com equipamentos que pudessem ler a central. Passei mais de um ano com o Golf falhando e gastando gasolina até descobrir o que acontecia.
Outra observação que fiz foi que depois dos 50 mil km o consumo de óleo passou a ser religiosamente de 0,5 L/1.000 km, que coincidia com comentários que ouvi de outros proprietários de VW com motor AP-2000.
Para um pacato GLX, o EA-827 de bloco alto tinha uma calibração um tanto nervosa (demais para o meu gosto). Para o Golf GTi da época decepcionava, pois somente a tocada era nervosa. As marchas de relações abertas e os 115 cv não condiziam com o que se esperava de um carro com emblema GTi na parte traseira e o danado não era nervoso nem em arrancadas para compensar a falta de desempenho de final.
Neste quesito, o Golf GL 1,8-L era mais gostoso de dirigir no dia a dia.
O segundo EA-827: Saveiro CLi 1997
Pois é, um carro raro e inusitado. Saiu apenas em 1997 e algumas poucas unidades modelo 1998. Era o final da família “quadrada” e para atender aos controles de emissões, a Volkswagen pôs injeção multiponto digital fabricado pela Magneti Marelli especialmente para a linha AP.
Esses primeiros EA-827/AP eram praticamente os mesmos anteriores da época da Autolatina com sistema Magneti Marelli em vez da FIC/Ford empregada até então (monoponto nos 1,6 e 1,8-L e multiponto nos 2-L). Era o 1AVB com injeção sequencial de combustível e nos modelos 1,6-L produziam 86,3 cv a 5.400 rpm e 13,3 m·kgf a 2.750 rpm (números do manual do proprietário).
À guisa de curiosidade, os motores EA-827 tiveram os bicos injetores deslocados para o coletor de admissão. Até então, nos sistemas LE-Jetronic (Gol GTi e Santana EX) e nos VWs com motor 2-L e injeção FIC multiponto, os bicos injetores eram colocados diretamente nos dutos de admissão do cabeçote.
Algumas características desse carro eram peculiares a ele: o tanque de combustível, dupla bomba de combustível e o silenciador.
A Saveiro CLi tinha um tanque de combustível de apenas 47 litros, se não me engano, o mesmo dos primeiros Gol GTi. Havia uma bomba de combustível submersa e uma segunda bomba ao lado do tanque, externa, o que, ao virar a chave fazia um ruído alto e característico de seu funcionamento.
O duplo silenciador é outra coisa que sempre me intrigou. Além do que havia no meio do assoalho, tradicional da linha Gol, havia um grande e pesado traseiro, muito similar ao da família Santana, bem perto do meio do carro, não era na extremidade esquerda ou direita. Era perto do meio!
Com absoluta certeza foi um dos melhores carros que tive! Apesar de espartano ao máximo, com uma direção pesada igual à de um caminhão velho, o carrinho era gostoso de dirigir!
Longe de ser um rojão, arrancava e acelerava bem e, pasme, não abaixava um milímetro na vareta de óleo.
O consumo também surpreendia. Sem muito cuidado na condução fazia mais de 14 km/L de gasolina (E22) na estrada.
Foi a penúltima alteração do EA-827/AP antes dele se tornar flex. Já em 1998 vieram os AP com jato de óleo embaixo dos pistões (modelos 1600 e 1800 cm³), alguns gramas a mais no volante e injeção Magneti Marelli 1AVP de maior capacidade de processamento, o que no caso do 1,6-L elevou a potência para 92/99cv a 5.500 rpm e para 13,9/14,4 m·kgf a 3.000/3.250 rpm.
O terceiro EA-827/AP-1600: desta vez flex, Saveiro Supersurf 2004
Foi meu ápice automobilístico como cobiça e desejo. Lembro até hoje do dia em que a comprei com apenas 17 mil km. Carrinho completo, com ar-condicionado, direção hidráulica, bancos de couro… Fechamento na chave-controle “gordinha”… Um luxo só. Mas vamos ao motor, o foco do texto.
Um AP diferente, com capa da da correia dentada de plástico e uma geometria de correia que permitia abrir a tampa da capa da correia e examinar seu estado. No lugar do distribuidor de ignição, uma tampinha metálica fechando o orifício do bloco e pendurado nela, a bobina da ignição estática.
A potência? 97/99 cv a 5.750 rpm e 14,1/ 14,4 m•kgf a 3.000 rpm. Taxa de compressão de 10:1, pouco acima do 9,8:1 dos anteriores, um número altamente conservador.
Foi estranho no começo, quando trocava abruptamente de combustível, nada perceber de diferente, exceto o motor mais áspero (álcool) ou girando mais liso (gasolina) e nada mais.
Apesar das aparentes vantagens, o EA-827 flexível da primeira leva me deixou a desejar: parecendo mais fraco que seus irmãos monocombustível. O 827 flex bebia com gosto de gente grande.
Na mesma Castello Branco onde minha velha CLi com aerodinâmica de “caixa de sapatos” fazia mais de 14 km/L, a Supersurf com muito esforço fazia 12 km/L com gasolina. E com álcool, se fizesse 9 km/l podia ter certeza que o vento tinha sido de cauda na viagem!
A taxa de compressão baixa dos AP-1600 flexíveis deve ter sido a coroação da parcimônia germânica. Tanto que com a infame e malfadada Geração 4 do Gol/Saveiro/Parati, o AP-1600 teve a compressão aumentada para 11:1 e ganhou alguns cavalinhos a mais, 101/103 cv.
Seja como for, a dirigibilidade decepcionava um pouco e toda vez que dirigia o Gol 1,6 Special de um conhecido, com seus 99 cv com álcool e mais de 100 mil km, sentia que os s quartos de milha do Gol eram mais vigorosos que os meus 99 “pangarés” com pouco mais de metade da quilometragem.
Naquela época cogitei trocar a Supersurf 1,6 por uma 1,8 ou 2-L mas aí já era 2006 e a infame Geração 4 surgia para tentar matar a linha Gol.
O EA-827 “Gourmet”: EA-113 2-litros!
Acreditem, minhas escolhas automobilísticas sempre as fiz olhando primeiro o conjunto motor-câmbio para depois ver o resto! Não foi diferente quando adquiri o carro de minha ex-esposa, aliás, modelo escolhido por mim — ela só escolheu o modelo dentre duas ou três opções selecionadas por mim.
E para provar que minha escolha é pelo motor, paguei, em 2016, mais por um Jetta Comfortline 2-L EA-113 aspirado 2015/2016 do que num Highline 2.0 TSI 2015/2015, ambos zero-quilômetro, para espanto dos vendedores. E nem quis o TSI 1,4-L EA-211 que também me fora oferecido! E tudo para ter um carro com um motor que atendesse aos meus critérios de escolha! E fui bem atendido pelo EA-113!
O Jetta em questão era um Comfortline com motor EA-113, 116/120 cv a 5.000 rpm e 17,8 e 18,4 m•kgf a 4.000 rpm. Essa rotação deve ser em virtude de alguma regulagem eletrônica para controle de emissões, pois os primeiros EA-113 flexíveis no Golf e Polo tinham o torque máximo em baixas 2.400 rpm.
No Jetta, essa motorização é associada a um transeixo Aisin TF60 epicíclico de 6 marchas com bloqueio no conversor de torque a partir da segunda marcha. Por sinal, essa combinação de conjunto motriz é perfeita, incrivelmente suave e sem trancos como em um CVT e infinitamente superior ao que experimentei nos motores TSI subsequentes.
O EA-113 no Jetta é um luxo! Os dutos de admissão em plástico formam um conjunto lindo de se olhar, ainda mais com o emblema VW colorido em cima. No mesmo lugar (aproximadamente) do EA-827 da Saveiro, onde deveria haver o distribuidor, a bobina de ignição estática e os quatro cabos de vela saindo para os respectivos cilindros. Um trocador de calor água-óleo, como nos motores AP2000 do Santana.
Também destacava a ausência da arvore intermediaria existente no AP (usada para girar o distribuidor) e do motor ter bielas de 144 mm. Mas talvez devido ao trabalho de redução de atrito e a taxa de compressão de 11,5:1 fez desse motor, um perfeito modelo flexível, onde a indiferença no uso de gasolina ou álcool transcende o funcionamento regular do motor para o ruído e os níveis de aspereza e mesmo a ausência de “grilos” quando usando gasolina e condições de alta carga/baixa rotação.
E o primeiro impacto da partida? Por trás do ruido mais rouco e abafado, um som com alta semelhança do de ligar um Logus!
Infelizmente não tive a chance de experimentar um EA-113 acoplado a um câmbio manual mas deve ser altamente interessante! No automático, numa tocada normal, parece motor diesel de grande porte! O Aisin troca a marcha antes de chegar nas 2,000 rpm, e em retomadas, quando levemente exigido, a partir de rotações inferiores a 1500 rpm, o cambio segura a marcha (não reduz) e acelera-se o carro!
Muito se criticou o uso do EA-113 no Jetta. Poderia elencar até nomes conhecidos do público mas a insensibilidade (ética e coerência?) jornalística que criticava os 116 cv do Jetta é a mesma que achava “adequado para a proposta” os 106/108cv do GM 1,8 Família 1 do Cobalt/Spin… Coisas da imprensa.
Todavia, para um uso tranquilo, urbano e em boas rodovias, os 116 cv do EA-113 eram mais do que suficientes. Só se sentia falta de motor em ultrapassagens mais vigorosas, como cruzar um caminhão, ultrapassando pela faixa contrária, em uma BR carregada.
Era interessante que quando vigorosamente acelerado, o câmbio baixava uma ou duas marchas e jogava o giro lá em cima. Mas quando se atingia 5.000 rpm, o motor deixava de crescer, dai a sensação de “falta de motor”. Mas eram casos esporádicos, não observadas em mais de 90% do tempo.
O consumo do EA-113 era bem satisfatório para um motor ortodoxo como um guarda-chuva preto: cerca de 13,5 km/L com gasolina (E25/27) e entre 10,5 e 11 km/L com álcool, no meu trajeto de Rodovia Castello Branco.
Confesso que esse carro tinha um único sabor amargo: por que a Volkswagen não investiu só um pouquinho. Para, tal qual a GM, arrancar uns cavalos a mais desse motor? Lembrando que a GM colocou coletor de admissão de plástico, reduziu atrito e colocou alavancas-dedo roletadas no Família II do Astra/Zafira e Vectra e arrancou 136/140c v!
Agora, tal qual a experiência anterior com o Golf 2-L e outros conhecidos comentando o mesmo fato, depois dos 50 mil km, o consumo religioso de 0,5-L de óleo a cada 1.000 km!
Rodamos cerca de 100 mil km com o Jetta e em nenhum momento me arrependi de não ter escolhido o 2,0 TSI ou ter esperado três meses e pegado um 1,4-L EA-211!
DA