Se os Ferraris de corrida dos anos 50 e 60 são considerados obras de arte hoje em dia, pela sua fama, suas formas e reputação, possivelmente o GTO chassi número 3765LM seja a Monalisa.
Criou-se uma aura mística ao redor dos Gran Turismo Omologatto de Enzo Ferrari que transformou todos os carros fabricados em lendas sobre rodas, com valores atuais de mercado atuais na casa das dezenas de milhões de dólares. Contei a conturbada história do modelo aqui no AE há nove anos, mas com a notícia recente de quem um dos carros seria leiloado neste fim de ano, o assunto GTO tem voltado à tona no mundo todo.
Até pouco tempo atrás, um Ferrari GTO era tido como o carro mais caro do mundo a ser vendido, até ser desbancado por um Mercedes-Benz. Seria como uma sina, mais ou menos como ocorreu com a supremacia dos carros de Grand Prix de Enzo Ferrari quando os Flechas de Prata alemães chegaram para dominar a cena?
Resumidamente, a história dos GTO se confunde um pouco com a de seu criador, o engenheiro Giotto Bizzarrini, responsável por tornar boa parte dos Ferrari, tanto de passeio como de corrida, em máquinas mais acertadas, de boa condução e competitivas. A necessidade da criação do GTO deve-se muito a rápida ascensão de seus competidores nas pistas europeias, em especial a Jaguar com o incrível Tipo E, ou E-Type.
Bizzarrini entendia que para o carro ser mais rápido num circuito, a aerodinâmica tinha que ser aprimorada, por mais que Enzo Ferrari achasse que isto fosse uma grande besteira, o centro de gravidade tinha que ser o mais baixo possível, o chassi leve e resistente à torção e o momento polar de inércia, o mais otimizado para permitir que os carros fossem ágeis na mudança de direção.
O GTO englobava tudo isso, mas, seu principal criador não pode ver a obra pronta. A famosa revolta dos funcionários de Ferrari que resultou na demissão de muitos, inclusive Bizzarrini, fez com que o projeto do GTO fosse entregue ao engenheiro Mauro Forghieri para finalização. A linda carroceria foi concluída por Sergio Scaglietti, que harmonizou de forma primorosa o trabalho iniciado por Giotto e seus colegas. Bizzarrini partiu para projetos próprios, como o lendário Breadvan, cuja história também contei aqui no AE.
O motor, recuado ao máximo para o centro do carro e o mais baixo possível, era o já conhecido V-12 de 3 litros (246 cm³ em cada cilindro, que refere-se ao nome 250 GTO) criado por Gioacchino Colombo, acoplado a um câmbio de cinco marchas, todas sincronizadas que enviava o torque para o eixo rígido traseiro com molas semielípticas, mola e amortecedor hidráulico concêntricos, tensores longitudinais e paralelogramo de Watt
O novo Ferrari foi apresentado em fevereiro de 1962, sendo que quase a totalidade de suas unidades foram destinadas a clientes particulares. Isso que dizer que todas as conquistas do GTO foram alcançadas nas mãos de equipes privadas. Todas, exceto de um carro.
O CHASSI 3765LM
Em 1962, os organizadores da 24 Horas de Le Mans estavam trabalhando em um novo regulamento que permitisse uma categoria para carros protótipo, ou Experimentais como acabou sendo chamada a classe, com a cilindrada máxima dos motores passando de 3 litros para 4 litros.
A Ferrari não perderia a chance de entrar nessa categoria para manter sua sequencia de vitórias na prova francesa, e os novos GTO seriam uma boa ferramenta para tal. Como originalmente os carros seriam equipados com motor 250 (3 litros), estariam defasados nesta nova categoria. A solução seria montar um GTO com o motor de 4 litros.
Neste momento entra na história o chassi número 3765. As soluções dadas por Bizzarrini antes de sua sumária demissão da Ferrari seriam um grande passo para o sucesso do novo GT de Maranello. Se as novas regras permitiam um motor maior, por que não? Bastava jogar um dentro do cofre do GTO e, voilà.
Mesmo sendo dotado de sistema de lubrificação por cárter seco assim como os GTO convencionais de 3 litros, o 330 (como era identificado o motor V-12 de 4 litros, com 330 cm³ por cilindro) ocupava um pouco mais de espaço no cofre, fazendo com que o característico ressalto no centro do capô fosse mais pronunciado, uma das identificações visuais que poderia denotar que ali estava um carro especial. Como se o 250 GTO não fosse… O 4-litro, conhecido como Tipo 163, era o mesmo motor base usado nos Ferrari 400 de passeio. No 3765, três carburadores Weber 46 DCF3 foram usados. Diferentemente do 250 GTO, o 330 utilizava um câmbio de quatro marchas.
Forghieri trabalhou na montagem do carro para que pudesse ficar pronto para uma prova que antecedeu Le Mans naquele ano, a 1000 km de Nürburgring. O carro ficou pronto em 23 de maio de 1962, para correr na Alemanha quatro dias depois.
Para a corrida em Nürburgring, a equipe Ferrari designou Willy Mairesse e o Mike Parkers como pilotos. Eles defenderiam a SEFAC Ferrari, ou seja, seriam uma equipe de fábrica, representando a Ferrari. Mairesse era um piloto belga, que corria com Ferraris desde o fim dos anos 50. Parkers era um jovem piloto inglês, campeão local de carros de turismo com a Jaguar.
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A prova no circuito alemão é cruel, tanto para os carros, como para os pilotos. O GTO se saiu bem, venceu na categoria (P4.0, protótipos com motor até 4 litros) e terminou em segundo lugar na classificação geral, atrás de outro Ferrari, um Dino 246SP pilotado por ninguém menos que o americano Phil Hill e o belga Olivier Gendebien.
O batismo de fogo do GTO 330 foi dado como positivo. Venceu seus concorrentes diretos, como os Jaguar E-Type, os Maserati Tipo 151 e até mesmo o recém-chegado Chaparral de Jim Hall. O carro era rápido, mas ainda poderia melhorar para Le Mans, o objetivo principal da equipe.
De volta à fábrica, o motor foi atualizado. Os três carburadores foram substituídos por seis unidades do Weber 42 CDN, aumentando a vazão de mistura ar-combustível para os cilindros com câmaras de combustão hemisféricas de cada um dos doze cilindros, gerando assim quase 395 cv. A taxa de compressão foi reduzida de 8.8:1 para 8.6:1 para melhor confiabilidade, dado o uso do que os italianos chamavam de “aquela gasolina francesa”, de menor octanagem.
Praticamente um mês depois da prova de Nürburgring, em junho, Le Mans aguardava o novo Ferrari GTO. Ao todo, sete GTOs estavam inscritos. Seis eram do modelo 250 convencional, nas mãos de equipes particulares (Équipe Nationale Belge, P. Noblet, North American Racing Team, F. Tavano, Scuderia SSS Republica di Venezia e UDT Laystall Racing Team) e apenas um era tinha o motor 4-litros, o carro de número 7, chassi 3765, pilotado por Mike Parkes e o italiano Lorenzo Bandini. Apenas este carro era um GTO da equipe de fábrica. Por ter outro motor, ele foi inscrito na categoria Experimental com motores acima de 3-litros, e nomeado 330 LM.
A equipe Ferrari tinha no seu arsenal para a batalha de 1962 o 330 GTO, dois protótipos de motor central, um Dino 246 SP (V-6) pilotado pelos irmãos mexicanos Rodriguez e um 268 SP (V-8), conduzido pelos italianos Giancarlo Baghetti e Ludovico Scarfiotti. Contava ainda com um 330 TRI/LM da dupla Olivier Gendebien e Phil Hill, inscrito na mesma categoria do GTO, também com um V-12 4-litros dianteiro.
No treino classificatório para a largada, o TRI/LM foi o carro mais rápido, seguido pelo 330 GTO, três segundos atrás. Era um bom resultado para a equipe, o GTO se mostrava veloz, ficando imediatamente à frente de um de seus rivais direto, o Maserati 151 da equipe do americano Briggs Cunningham.
No dia da corrida, logo na primeira volta, Parkes se envolveu em uma confusão que o fez ficar preso em um banco de areia, perdendo muito tempo. Tendo que desatolar o carro sozinho, literalmente com as próprias mãos, o GTO ficou para trás. Parkes contou na época que foi um incidente com outro Ferrari da Escudeira que o colocou para fora da pista.
A dupla tentou a recuperação, mas um superaquecimento do motor acabou com as chances do GTO antes da metade da corrida. Para a equipe Ferrari, foi apenas um carro a menos na disputa, uma vez que o 330 TRI manteve um bom ritmo e venceu a corrida com cinco voltas de vantagem sobre outro GTO, um 250 convencional da equipe francesa de Pierre Noblet. Completando o pódio, outro 250 GTO terminou em terceiro, o carro da equipe Nacional Belga.
Foi um excelente resultado para Enzo Ferrari e seus incríveis V-12.
Após a prova em Le Mans, o 3765 foi vendido pela fábrica para um cliente particular, que utilizou o carro em corridas locais na Itália. O motor 4-litros e o câmbio originais foram retirados pela própria Ferrari a pedido do novo proprietário, quando um motor 250P Testa Rossa com o câmbio de cinco marchas foi instalado no carro. Algumas alterações na carroceria foram feitas também. Em 1965, o carro foi vitorioso em diversas provas italianas de subida de montanha e participou até da Targa Florio, com o número 114 na carroceria.
Passando por diversos proprietários ao longo dos seus 60 anos de existência, o GTO 3765LM nunca teve a chance de receber seu motor original de volta, por mais que alguns proprietários tentassem, inclusive diretamente pelos arquivos da Ferrari.
E O CHASSI 3673SA?
Ao todo, somando as unidades da Série I com os Série II (nova carroceria mais parecida com os 275), 36 Ferraris 250 GTO foram fabricados, mais três unidades equipadas com motor 330, totalizando 39 carros.
Um pouco de confusão existe quanto ao carro que correu em Nürburgring em 1962. Encontramos diversas citações do chassi de número 3673SA, que seria um futuro 400 Superamerica Passo Corto (entre-eixos curto) e teria uma carroceria de GTO e o mesmo motor 4-litros, mas não era o 3765LM.
A documentação apresentada no leilão do 3765LM mostra arquivos da Ferrari da fabricação do carro, teoricamente na sequência que o carro foi feito para Nürburgring e depois modificado para Le Mans. Pouco provável que estejam equivocados, dado o valor do carro em questão. E que valor: vendido no dia 13/11 por 51,7 milhões de dólares (após taxas, 47 milhões na batida do martelo no leilão), o mais alto já pago por um Ferrari publicamente. Pessoalmente achei até que seria bem maior o valor final.
Este 3673SA, ao que tudo indica, foi fabricado como um GTO 330, assim como o 3765LM, mas teve vida curta, pois envolveu-se num acidente nas primeiras semanas que acabou com a carroceria, e esta foi substituída por uma de 400 Superamerica SWB (short wheelbase, ou entre-eixos curto, o famoso passo corto como os italianos falam). Apenas nos anos 80 o carro foi desmontado e recebeu novamente uma carroceria de GTO. Além destes dois carros, existe um terceiro fabricado, o 4561SA, mas que não foi usado em corridas na época.
De qualquer jeito, é um carro magnífico, tanto o 3765LM como todos os outros GTO, mas que mesmo tendo sido um dos modelos mais bem sucedidos da Ferrari na época, nunca conseguiu vencer em Le Mans.
MB