Navegando nas redes sociais encontrei a postagem da Hayburner Magazine no Facebook falando sobre este assunto que logo despertou minha atenção. E lá fui eu fazer pesquisas para uma matéria.
Um pouco de história para focalizar os acontecimentos no contexto daqueles tempos: estamos na década de 1950. Na traseira do carro que aparece na foto de abertura, do lado direito, se vê o adesivo DDR, sigla de Deutsche Demokratische Republik — República Democrática Alemã — também chamada de Alemanha Oriental, que apesar do “democrática” no nome era a parte da Alemanha que, depois da II Guerra Mundial, ficou em poder da União Soviética, desse modo um país comunista. Portanto, terminada a II Guerra Mundial a Alemanha ficou dividida entre os comunistas no Leste e os capitalistas no Oeste.
O carro da foto de abertura é um dos dois sobreviventes agora em sua condição restaurada. Falaremos dos dois sobreviventes oportunamente. Hoje vamos focar no primeiro da série.
É muito difícil manter um apaixonado por carros completamente distante do foco de sua obsessão. É por isso que existem kits para transformar Pontiacs Fiero em Ferraris e é por isso que as pessoas constroem “Lamborghinis” em porões. É também por isso que dois irmãos gêmeos acabaram construindo um carro baseado no Porsche 356 com recursos para lá de rudimentares que chegou a impressionar a própria Porsche. Esta é uma incrível história de determinação, sorte e uma bela ignorância de quando desistir.
Logo após a guerra a Alemanha Ocidental estava passando por algo que eles chamavam de Wirtschaftswunder, ou seja, “milagre econômico”. A economia da Alemanha Ocidental não estava apenas se recuperando, estava crescendo, e eles estavam construindo, entre outras coisas, uma quantidade absurda de carros, como o famoso Volkswagen Käfer e seu derivado mais elegante, mais rápido e mais atraente, o Porsche 356.
Enquanto isso, no leste da Alemanha, as coisas não estavam indo tão bem. O governo repressivo da Alemanha Oriental mantinha uma economia planejada e muito controlada, e esse plano não permitia nada tão “decadente” e “frívolo” como carros esportivos como o Porsche 356.
Em 1954, não havia muitas opções de carros na Alemanha Oriental: havia os EMWs — produzidos pela Eisenacher Motorenwerke — Fábrica de Automóveis de Eisenach, BMWs de antes da guerra rebatizados e construídos em uma das fábricas da BMW confiscada no lado errado da linha que dividiu as Alemanhas. Havia os Wartburgs e algumas outras ofertas de carros soviéticos. O Trabant, o “carro popular” da Alemanha Oriental, tinha acabado de entrar em fabricação naquele ano.
Não era um bom lugar para ser um autoentusiasta. Essa foi uma situação muito difícil para a dupla de irmãos autoentusiastas, Knut e Falk Reimann. Os irmãos Reimann trabalhavam juntos na empresa Lindner Karosserie, na cidade de Dresden, uma empresa que construía carrocerias de carros na era pré-guerra, mas estava lutando no pós-guerra para sobreviver devido à falta de recursos e materiais que eram rigidamente controlados pelo governo.
Os irmãos tinham visto os novos Porsche 356 que estavam tão tentadoramente próximos na Alemanha Ocidental ali mesmo em Berlim — do outro lado da fronteira, mas sabiam que não teriam permissão para levar um para o “seu” lado da fronteira, mesmo que tivessem dinheiro — o que, na verdade, não tinham.
O que eles tinham era inteligência, habilidade, um desejo intenso por um 356 e um precioso resto de guerra perdido na floresta.
A floresta proporcionou aos irmãos a chance de realizar seu sonho. Knut e Falk encontraram um velho VW Kübelwagen usado na guerra abandonado na floresta. Agora, o que é especialmente bom nisso é que o Kübelwagen usava essencialmente o mesmo chassi e a mesma mecânica do Fusca.
Os primeiros Porsche 356 usavam um chassi de chapas de aço feito em Gmünd e um motor Volkswagen de 1.131 cm³ aprimorado pela engenharia da Porsche, como elevar a taxa de compressão de 5,8:1 para 7:1 e mudar a alimentação para dois carburadores no lugar do único, mas fundamentalmente semelhante ao do VW Käfer. Com essas duas mudanças a potência passou de 25 cv para 40 cv. Embora não tenham encontrado exatamente um chassi de Porsche na floresta, eles encontraram algo que seria um substituto muito bom para o que tinham, em mente.
Eles retiraram a carroceria destruída do VW Kübelwagen e rebocaram o chassi com o motor para fora da floresta. Todos os elementos básicos estavam lá: o motor de quatro cilindros horizontais opostos arrefecido a ar e o transeixo na traseira, os eixos e a suspensão, a direção, os freios, tudo.
Mesmo que eles consertassem todas as peças mecânicas, ainda assim não havia como conseguir uma carroceria de 356 adequada. Lembre-se, porém, de que eles trabalhavam em uma empresa de construção de carrocerias, portanto, a falta de uma carroceria não deveria impedi-los por muito tempo.
Já a falta de materiais poderia ser um impedimento, mas os Reimanns eram engenhosos e conseguiram 15 capôs danificados de caminhões Ford antigos e os transformaram em chapas de metal para construir o carro dos seus sonhos!
Eles construíram uma estrutura de madeira de freixo sobre o chassi e o revestiram com seu metal recuperado dos capôs de caminhões. Não está claro exatamente com o que os irmãos estavam trabalhando em termos de guias de design; acredita-se que eles tinham fotos de revistas, talvez, possivelmente algumas fotos que eles tinham tirado para usar como referência, mas se acredita que eles não tinham nada além disso.
O carro que resultou do trabalho deles é absolutamente fascinante, porque definitivamente se parece com um 356, mas é diferente o suficiente para deixar claro que foi um 356 construído por pessoas que nunca estiveram perto de um Porsche 356 de verdade.
A Lindner Karosserie e sua equipe conseguiu reproduzir o formato do Porsche 356, mas como estavam partindo de um chassi mais longo e mais largo, sua versão era 30 cm mais longa que o modelo da Porsche. Na verdade, ele tinha 4,15 m de comprimento, 1,68 m de largura, 1,34 m de altura e quatro bancos reais, o
que antecipou o que muitos anos depois viria a ser o Porsche Panamera. O carro recebeu o nome de “Porscheli” (Porsche + Lindner) e também era conhecido como Lindner Coupé.
Eles agora tinham um carro que parecia um 356, mas seu motor ainda era essencialmente o mesmo que movera o VW Kübelwagen que encontraram na floresta: 1.131 cm³ e 25 cv de potência, nenhum destes números justifica a classificação “carro esporte!”
Quando a Porsche adaptou os componentes do VW Käfer ao 356 da VW, foram feitas algumas atualizações significativas no motor — em 1951, havia opções de 1.286 cm³/44 cv e 1.488 cm³/60 cv, todas tinham dois carburadores, comando de válvulas de maiores duração e levantamento, um virabrequim melhor, escapamento mais aberto e assim por diante. Não parece muita potência nos dias de hoje, mas era muito mais potência do que Knut e Falk tinham à sua disposição.
Os irmãos, orgulhosos do que haviam feito e esperando encontrar uma maneira de obter peças reais da Porsche, levaram o carro em uma espécie de peregrinação até a fábrica da Porsche de Zuffenhausen, em Stuttgart, a pelo menos cinco horas de carro. No início, os funcionários da fábrica reviraram os olhos para algo que consideravam uma imitação absurda com um motor de 25 cv.
Os Reinmanns deixaram na fábrica uma carta manuscrita, datada de 17 de julho de 1956, para Ferry Porsche com seu pedido de ajuda.
O próprio Ferry Porsche (que não estava na fábrica naquele dia) ficou sabendo do carro e da visita dos irmãos e, no início, foi hostil a eles e a seu projeto, que ele considerava uma imitação pobre e não aprovada que não tinha o direito de existir.
No entanto, depois de pensar um pouco, Porsche mudou de ideia e percebeu que o que os Reimanns haviam feito era menos plágio e mais tributo, e ele respeitou o incrível esforço que foi feito no projeto.
Através de seu secretariado o Ferry respondeu com a seguinte carta:
Segue a tradução desta carta:
Para o Sr. Knut e o Sr. Falk Heimann
Dresden 27, rua Schopenhauer 5
D.D.R.
Stuttgart, 26 de julho de 1956
Prezados Srs. Reimann,
O Sr. Porsche, que está atualmente em Le Mans para a corrida, pediu-me para agradecê-los por sua carta de 17 de julho de 1956 e para informá-los do seguinte:
Para ajudá-los a sair de sua situação difícil, estamos lhes enviando um conjunto de pistões e cilindros usados por meio da empresa EDUARD WINTER, de Berlim, conforme solicitado. Pedimos que vocês paguem apenas os custos de frete.
Desejamos a vocês uma boa recepção (dos itens enviados) e uma viagem feliz com seu ” PORSCHE construção própria “,
Com os melhores cumprimentos
Secretária
[Fim da tradução]
Os irmãos tiveram que pagar os custos de correio e tiveram que contrabandear as peças da concessionária que ficava em Berlim Ocidental pela fronteira altamente vigiada das duas Alemanhas, mas eles conseguiram e, usando como base um motor de VW Käfer que eles adquiriram, construíram montar seu motor “tipo” 356.
Embora o Muro de Berlim ainda não existisse (foi levantado em 13 de agosto de 1961) e a DDR não fosse um país completamente hermético, ou quase hermético em relação ao Ocidente capitalista, como o foi a partir da década de 1960, também não era muito fácil deixar a DDR (pois o êxodo em direção ao ocidente crescia exponencialmente). Assim, com uma placa falsa da Alemanha Ocidental e uma única carteira de motorista para os dois (já que eram gêmeos idênticos, univitelinos e tirar a carteira era muito caro), eles puderam circular pela Europa e cruzar a fronteira da DDR repetidas vezes. Estes gêmeos eram muito “corajosos” mesmo.
E conseguiram fabricar 13 unidades do “Porscheli”
Os gêmeos conseguiram contrabandear as peças mecânicas para a DDR como qualquer outro produto contrabandeado. E como conseguiram uma vez, eles e a Lindner pensaram que poderiam fazer isso de novo e de novo. E assim o fizeram. Os irmãos Reimann e a Lindner construíram 13 carros Porscheli ou Lindner Coupé, a maioria baseada no Kübelwagen Tipo 82. E com a ajuda da Porsche, esses carros tinham um motor digno do modelo original. Entretanto, nem todos os modelos eram exatamente iguais, devido à escassez de tudo. Por exemplo, alguns tinham uma carroceria feita com chapa de 1 mm de espessura… Muitas vezes os clientes tinham que fornecer materiais para a fabricação dos carros.
Aqui cabe uma informação que consta do site oficial da Porsche: “Na década de 1950, a Porsche AG apoiou a construção dos Lindner-Coupés devido às circunstâncias políticas da época. Essa foi uma situação única na história da empresa.”
Para a construção “em série” foi feito um molde em madeira com a forma do protótipo. As chapas eram rebatidas sobre este molde para conformar as carrocerias:
Finalmente, a produção foi interrompida em 1959. O regime comunista da DDR tornou-se cada vez mais severo e a atividade industrial de fabricar carros esportivos era malvista, fora do contexto programático do regime.
Em 1961, o governo fechou o país e ergueu o Muro de Berlim. Os guardas nas fronteiras, especialmente em Berlim, receberam ordens para atirar à vontade se alguém tentasse sair do país. Knut e Falk tiveram um pouco mais de sorte, pois foram presos pela Stasi (polícia política secreta da DDR) no mesmo ano quando tentavam fugir para a Alemanha Ocidental.
Os irmãos passaram três anos numa prisão de Berlim. Quando foram libertados, Falk foi para a Hungria e Knut ficou na Alemanha. O “Porscheli” deles foi confiscado e nunca mais se ouviu falar do carro. Diz-se que um dos motoristas da Melkus, uma fabricante de carros esportivos de Dresden, ficou com o carro e o vendeu para comprar peças.
Dos 13 exemplares de “Porscheli” se tem notícia de dois. Cada um com sua história. Vou falar deles oportunamente.
Esta história escancara a cruel comparação de dois países irmãos submetidos a condições governamentais diferentes. Os gêmeos souberam driblar muitas das restrições vigentes na DDR, mas no fim acabaram presos. Ao passo que na Alemanha ocidental (a famosa West Germany) o progresso, impulsionado pelas subvenções dos Aliados, vigia e prosperava.
Para ilustrar esta matéria apresento o vídeo (02:15) feito pela própria Porsche sobre o “Porscheli” (9:11 Magazine: the story of the “GDR Porsche”):
Lembrando que praticamente todos os vídeos podem apresentar legendas em seu idioma, pois o YouTube oferece a possibilidade de traduzir as legendas para muitos idiomas (é uma tradução por computador).
Para ativar a tradução de legendas ative a visualização no YouTube e siga os passos abaixo:
Selecione o ícone de legendas (é retangular com linhas de pontinhos), pause o vídeo e:
1) Clique no ícone de configurações abaixo da tela do vídeo (roda dentada);
2) Clique em Legendas/CC;
3) Clique em “Traduzir Automaticamente”;
4) Selecione o idioma desejado. Clique na tecla play e curta o vídeo.
AG
Para a realização desta matéria foram consultados, dentre outros: página da Hayburner Magazine no Facebook; site jalopnik.com com o trabalho de Jason Torchinsky; site motorpasion.com com o trabalho de Daniel Murias; site heinkelscooter.blogspot.com com o trabalho de Paul Merkham; site newsroom.porsche.com – oficial da Porsche; Wikipedia.
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