Escrevo neste espaço há pouco mais de nove anos. Foram 410 colunas sobre muitos assuntos, mas hoje, pela primeira vez, discorro sobre carros numa posse presidencial. E por quê justamente agora? Na verdade, por uma somatória de fatores, mas é que desta vez o foco é um presidente que é apaixonado por carros e porque há uma história deliciosa por trás disto que acredito meus caros leitores autoentusiastas também acharão curiosa. Mas já aviso que ficarei atenta a outras posses em qualquer país, pois pode haver novas histórias interessantes. Acho que descobri um novo filão de assuntos.
Vamos lá, então, sem mais delongas. O assunto é a posse e a vitória do presidente argentino Javier Milei, ocorrido no mês passado. No quesito mobilidade, ele já se declarou fã de carros e tem, como pessoa física, três modelos. O mais chamativo deles é um Cadillac Sedan DeVille 1961, que chegou a ser usado no início de sua campanha, no agora longínquo agosto de 2021. Em sua garagem há também um Mazda MX-5/Miata 1988 e um Peugeot RCZ. Mais do que pelo valor, os carros chamam a atenção pela originalidade (foto de abertura)
No dia da posse, em 10 de dezembro de 2023, Milei foi até o Congresso argentino para prestar juramento e discursar num Volkswagen Touareg V-6 TDi com motor 3-L turbodiesel que entrega 258 cv, tem torque de 61,2 m·kgf e câmbio automático Tiptronic de 8 marchas. O carro é semelhante ao que havia utilizado Mauricio Macri quando foi empossado em 2016, só que o anterior era híbrido
A equipe de Milei procurava um segundo modelo, agora conversível, para que o trajeto de 2 quilômetros entre o Congresso e a Casa Rosada fosse feito num carro aberto. A primeira opção foi o famoso “Cadillac de Perón” um Cadillac série 62 conversível desenhado por Harley Earl com motor V-8 de 5.424 cm³, 250 cv e câmbio automático de 4 marchas. Assim como muitas coisas na Argentina, tem o nome do ex-presidente, mas nunca foi utilizado por ele.
Não, não me peçam para explicar o culto a algumas personalidades no meu país de nascimento. Precisaria de alguns anos para explicar este fenômeno e provavelmente nunca chegaríamos ao fundo da questão. Mas, resumindo, Perón não conseguiu usar o carro porque foi derrubado do poder no mesmo ano em que encomendou o veículo, como ocorreu tantas vezes e com tantos presidentes argentinos.
Acontece que o modelo havia sido adquirido por Juan Domingo Perón em 1955 e está no Museu do Bicentenário ou Museu da Casa Rosada. O veículo foi usado na posse de presidentes dos mais diversos segmentos políticos, como Jorge Rafael Videla, Arturo Frondizi, Arturo Illia, Raúl Alfonsín e Fernando de la Rúa e em 2006 foi utilizado pelo então presidente venezuelano Hugo Chávez numa visita a Buenos Aires. Também serviu aos deslocamentos de outros presidentes por Buenos Aires, como Dwight Eisenhower (dos Estados Unidos), Charles de Gaulle (da França), o príncipe de Edimburgo e o primeiro-ministro da Itália Giovanni Gronchi.
O Cadillac havia sido totalmente restaurado em 2018 e, teoricamente, tudo havia sido feito para que pudesse ser utilizado. À época, foi divulgado que a restauração consumiu dois meses inteiros só de funilaria e pintura. Teriam sido substituídos o carburador e a bomba de gasolina por um kit americano, trocadas todas as correias (ventilador, bomba de água e de direção hidráulica) e as mangueiras d’água. O motor de partida, foi consertado, assim como a bomba d’água e a direção hidráulica.
A lista de consertos teria incluído a substituição do alternador, a limpeza completa do sistema de arrefecimento (com um processo que permitiu que fosse mantido o radiador original do veículo). Internamente, foi feita toda a pintura do motor, das tampas de válvulas, da tampa do filtro de ar… Toda a fiação do veículo foi substituída e foram substituídos o escapamento e os silenciadores do carro. Os estofamentos foram feitos novos, com couro bovino, seguindo o modelo original.
No entanto, o uso do Cadillac foi descartado por especialistas do Museu do Automóvel que o examinaram e descobriram problemas no câmbio, nos freios, numa das rodas traseiras e no tanque de gasolina. Coisa pouca, como se pode deduzir (modo irônico ativado, é claro). Além dessas questões, que não haveria tempo para resolver, havia a burocracia. O veículo não tem seguro nem documentação em dia — e sequer a Verificação Técnica Veicular em dia. Ou seja, não poderia circular por questões mecânicas nem de documentação.
Foi então que o pessoal de Milei deu início ao Plano B para procurar um veículo que pudesse ser usado no desfile do Congresso até a Casa Rosada, a somente cinco dias da data da posse. O presidente havia colocado poucas condições, mas não eram negociáveis: pediu um conversível clássico, preto, de quatro lugares, que fosse de “uma marca capitalista” — ou seja, nada de Lada conversível, (hehehe). Num primeiro momento, foram analisados vários modelos e foi considerada a possibilidade de fazer o trajeto num BMW E30 conversível e até mesmo um Auburn da década de 1930.
Falou-se também de um Plymouth Valiant, mas paralelamente se procuravam outras opções, e, sempre, corria-se contra o tempo. Várias alternativas foram descartadas pois seriam necessários dois modelos quase totalmente idênticos para que houvesse um segundo carro para ser usado em caso de alguma falha mecânica.
Dois secretários da Presidência haviam recebido um contato de um dono de concessionária que conhecia um colecionador que tinha três modelos de Mercedes-Benz que poderiam ser usados na cerimônia, três deles CLK, dois pretos e um branco. O branco foi rejeitado por esta oportunidade pois além de não ter um segundo modelo idêntico considerou-se que ele poderia ser “usado oficialmente se, por exemplo, o Papa Francisco visitar a Argentina”. Apesar de ser um modelo menos raro do que o Valiant ou o Auburn, existem apenas oito unidades do Mercedes-Benz CLK 430 na Argentina.
Aprovada a escolha dos modelos, funcionários da Casa Militar foram à garagem particular onde ficavam guardados os carros. Junto com eles, os mecânicos oficiais e a segurança privada de Javier Milei fizeram as inspeções pertinentes antes de aprovar os veículos. A Secretaria solicitou um orçamento ao colecionador, mas ele decidiu fazê-lo de graça. “Eu disse a eles que era uma honra poder ajudar”, explicou o colecionador. Um carro do tipo destes costumam ter um valor de mercado em torno de US$ 25 mil na Argentina.
Dias antes da posse, os dois Mercedes-Benz CLK 1997 (um 430, que finalmente foi utilizado pelo Presidente e outro 230 Kompressor, que ficou como reserva) foram transferidos para a Quinta de Olivos para mais inspeções de segurança. No dia da posse, Milei saiu do Congresso rumo à Casa Rosada a bordo de um Mercedes-Benz CLK 430 cabriolé preto de primeira geração (baseado na plataforma do Classe C). O modelo foi produzido somente entre 1997 e 2003 e tem recursos como controle de estabilidade, controle de tração e freios ABS. O modelo, aberto, tem motor V-8 4,3-litros.
Justamente para garantir o anonimato do proprietário, foi impressa uma placa provisória com os dizeres “Mobile A01” para que o veículo não pudesse ser identificado. E continuamos com as histórias únicas que envolvem toda esta operação. Devido à crise econômica (para não mencionar outras muitas), o Registro Automobilístico reconheceu que não tinha em estoque ou mesmo como fazer placas para usar em ocasiões como estas e por isso a placa falsa foi autorizada… em papel! Fico aqui pensando o vexame se tivesse chovido naquele dia…
Os três carros do colecionador estão à venda – o da posse já estava quase vendido antes de ser usado na solenidade, mas o novo comprador teria manifestado a disposição de emprestá-los gratuitamente à Presidência caso voltasse a precisar deles.
Mudando de assunto: 2023 se encerrou com a triste notícia da morte de Gil de Ferran. Um cavalheiro e um grande piloto. Fará muita falta.
NG
A coluna “Visão feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autora.