A Alfa Romeo é muito conhecida pelos seus brilhantes motores de aspiração natural, como o V-6 Busso do modelo 164 e também o 2-litros duplo comando dos clássicos GTV dos anos 60 e 70. Mas, o renome conquistado no automobilismo veio dos motores supercarregados.
Nos tempos da Escuderia Ferrari, equipe oficial da fábrica Alfa Romeo conduzida com sucesso por Enzo antes da Segunda Guerra Mundial, os monopostos Alfa de Grand Prix mais bem sucedidos eram equipados com motores supercarregados. Mesmo antes de Enzo, quando a Alfa corria com os modelos P2 criados por Vittorio Jano, o supercarregamento nos motores de oito cilindros em linha era largamente usada pela equipe.
Com as mudanças nas regras das provas de Grand Prix e o surgimento da Fórmula 1 em 1950, o uso dos motores de aspiração natural estava crescendo. Eram conjuntos mecânicos mais simples e até mais duráveis, uma vez que as pressões de trabalho eram bem menores e o esforço no motor era mais controlado. A mesma filosofia valia para os carros esporte em momentos similares da história.
Com os passar dos anos, alguns projetistas estavam apostando novamente na tecnologia dos motores supercarregados. mas, desta vez, utilizando o turbocarregador no lugar dos conhecidos supercarregadores mecânicos, tipo Roots — de deslocamento e não volumétricos — que equiparam a maioria dos carros de Grand Prix da pré-guerra. Esse tipo de supercarregador é muito usado nos EUA até hoje e se chama blower (soprador).
Este poderia ser um recurso interessante para deixar ainda mais competitivo o pequeno GT da marca de Milão, o Giulia GTA.
GIULIA SPRINT, O PEQUENO SUCESSO DA ALFA
O mercado italiano, assim como o europeu de modo geral, recebia bem os modelos compactos com um toque esportivo. Foi assim com o Giulietta, o Alfa Romeo que deu origem ao Giulia. Disponível em diversas versões, desde o sedã quatro-portas, passando pelos cupês Sprint e os conversíveis Spider, o Giulietta nasceu em meados dos ano 50 e foi fabricado até 1965.
Em seu lugar, vieram os modelos Giulia, também conhecidos como Tipo 105, mais modernos e mantendo a mesma configuração, com motor dianteiro e tração traseira numa carroceria monobloco. Os modelos Sprint GT duas portas, desenhados por Giorgetto Giugiaro do estúdio Bertone, eram feitos sobre um arcabouço mais curto que a dos modelos de quatro portas.
A família de motores dos cupês ia desde os menores 1,3-litro até os 2-litros, todos com bloco de alumínio, duplo comando de válvulas e duas válvulas por cilindro. Diversas versões vieram derivadas deste conjunto, e rapidamente tornaram-se um sucesso de vendas e também nas pistas, uma vez que o compacto modelo italiano era equilibrado, com boa potência e baixo peso.
A Autodelta
Desde os tempos de Enzo Ferrari e sua Escuderia, a Alfa Romeo não contava com um forte braço de competições dedicado ao desenvolvimento de modelos dignos dos gloriosos carros vencedores nos anos dourados da marca as corridas de Grand Prix.
Quando o jovem Carlo Chiti, ainda um engenheiro aeronáutico concluindo sua graduação, entrou para trabalhar na Alfa Romeo no começo dos anos 50, mal poderia ele saber que seria um dos nomes mais importantes da empresa, e também da Ferrari. Ele trabalhava diretamente com Orazio Satta Puliga, chefe do departamento e substituto de Wifredo Ricart, uma das grandes desavenças de Enzo Ferrari na Alfa. Junto também estava Giuseppe Busso, criador do famoso motor V-6 da marca.
Chiti logo recebeu tarefas importantes, sob a tutela de Satta, e rapidamente destacou-se na empresa, mas pouco tempo teve para brilhar. A volatilidade da empresa em relação ao automobilismo acabou com sua pretensão a curto prazo na Alfa. Enzo Ferrari sabia que Chiti era um jovem promissor e ofereceu-lhe emprego de projetista. Junto com Vittorio Jano criaram os melhores carros da Ferrari dos ano 50, inclusive com dois campeonatos mundiais de Fórmula 1 para sua conta (1958 e 1961).
Tudo ia bem para Chiti na Ferrari, até que em 1962 a famosa revolta dos funcionários de Enzo fez com que boa parte dos líderes da empresa fossem demitidos sumariamente por Enzo. Chiti foi um deles. Com uma breve passagem pela empresa ATS juntamente com Giotto Bizzarrini e Romolo Tavoni, Carlo logo voltou para debaixo das asas da Alfa Romeo.
O então presidente da Alfa, Giuseppe Luraghi, queria trazer de volta uma equipe profissional para a preparação dos carros de corrida da marca. Chiti estava montando uma pequena empresa de preparações e projetos com Lodovico Chizzola e seu irmão Gianni Chizzola, outro ex-Ferrari. As negociações com Luraghi levaram à incorporação da recém criada Auto-Delta pela Alfa em 1963, e no ano seguinte, passaria a ser chamada de Autodelta SpA. Em 1965, a Alfa Romeo adquire a empresa e a incorpora na sua gama de divisões especiais, também a equipe oficial de competições, colocando Chiti como chefe.
O Giulia GTA
Dentre os alvos da Autodelta para elevar o nível da Alfa Romeo nas competições estava o Giulia GT. Pequeno, leve, com um excelente motor de alumínio e bom equilíbrio de chassi, era um ótimo candidato a passar pelos aprimoramentos da nova divisão de competições.
Para ser ainda melhor, o GT precisava perder mais alguns quilogramas e ganhar mais um pouco de potência. Assim criou-se o modelo GTA, o A sendo de Alleggerita, ou aliviado, mais leve. Os painéis externos da carroceria foram feitos em alumínio Peraluman 25, uma liga leve especial, as chapas de aço estruturais foram estampadas com material mais fino e novas fixações foram adicionadas para garantir a rigidez do monobloco. O carro pesava pouco mais de 730 kg.
O primeiro motor de corrida foi preparado em 1965, um 1,6-litro com 165 cv capaz de girar a 7.800 rpm, equipado com dupla ignição (o avô do Twin Spark moderno da marca) e dupla carburação Weber 45 DCOE duplo-corpo.
Outras versões do GTA foram criadas, entre elas a Junior com motor 1,3-litro e as maiores com motores de até 2 litros e 250 cv.
Os GTA rapidamente mostraram potencial em competições na Europa e na Estados Unidos. Logo no primeiro ano, em 1965, os pequenos Alfa enfrentavam de igual para igual carros já consolidados nas pistas. Em março de 1966, um GTA 1,6-litro venceu a prova 4 Horas de Monza. A famosa Equipe Jolly de Emilio Zambello e Piero Gancia correu com modelos GTA aqui no Brasil no fim dos anos 60 e começo dos 70.
Um GTA era praticamente um novo carro, se comparado ao Giulia original que lhe deu origem. Com todas as modificações incluídas, desde a preparação do motor até a carroceria de liga de alumínio mais leve, fazia com que o custo de um GTA fosse quase o dobro de um Giulia GT para o cliente final.
O Grupo 5
As categorias do automobilismo, ao redor de todo o mundo, evoluem ao longo do tempo. A FIA (Federação Internacional do Automóvel) dita boa parte das regras de todas as categorias que querem reconhecimento mundial, como uma forma de unificação de regulamentos e possibilitar que participantes de diversas localidades possam competir entre si sem problemas de compatibilidade.
Em meados dos anos 60, as novas tecnologias surgindo no mercado automobilístico abriam caminho para carros de corrida mais sofisticados e velozes, e os regulamentos dos grandes campeonatos tinham que acompanhá-las. Com a proposta de definir os padrões para carros mais evoluídos e com novos recursos, mais distantes dos modelos originais de produção regular, o Grupo 5 surgiu.
Inicialmente, o título dele foi Special Touring Car (carro de turismo especial). Rapidamente este regulamento foi adotado pelo British Saloon Car Championship (BSCC), o campeonato britânico, que posteriormente evoluiu para o BTCC (British Touring Car Championship).
Os modelos que se enquadravam neste regulamento eram verdadeiras máquinas de competição, com cada vez menos similaridades com os carros de série.
O GTA/SA
Dentro da Alfa Romeo, um dos departamentos da engenharia era chamado Servizio Esperienze (Serviços de Experiência), responsável por testar os projetos da divisão Progettazione Meccanica Auto (Projeto Mecânico, liderado por Giuseppe Busso) e da Progettazione Carrozzeria (Projeto de Carroceria, comandado por Ivo Colucci). Estes departamentos eram ligados diretamente ao desenvolvimento de automóveis de produção regular.
Dentro do Servizio Esperienze, o responsável era Gianpaolo Garcea, funcionário da Alfa desde 1935, especialista em testes de motores. Garcea foi nomeado chefe do Centro de Estudos e Pesquisas em meados dos anos 50, a parte dos testes estava dentro do escopo do trabalho. O desenvolvimento de motores era um dos pontos fortes da engenharia da Alfa Romeo, sempre com novidades e motores sofisticados.
Uma das pesquisas de Garcea foi o uso de turbocarredores, uma novidade que estava surgindo no meio automobilístico, mas já bem conhecido na aviação. Como a Fiat fabricava motores aeronáuticos, o uso dos turbos não era tanta novidade. Pouco se sabe sobre os resultados obtidos por Garcea, uma vez que eram pesquisas internas para possíveis novos motores Alfa.
Do lado da Autodelta, Carlo Chiti assistia de perto tudo o que era feito pela Alfa Romeo e o Centro de Estudos e Pesquisas. A ideia dos turbocarregadores não pareceu uma boa ideia no início, mas Chiti, como um curioso engenheiro em busca de novas tecnologias, assumiu o desafio de tentar utilizar tal recurso nos carros de corrida.
O novo projeto, iniciado em 1966, seria conhecido com o GTA/SA, com o sufixo representando o termo Sovra Alimentata (sobrealimentado em italiano). A proposta era utilizar a base do GTA e adicionar supercarregamento ao conhecido 1,6-litro de alumínio e duplo comando de válvulas. As dimensões diâmetro dos cilindros e curso dos pistões eram as mesmas do GTA (78 x 82 mm).
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Com o uso de duas turbinas pequenas de origem Fiat para aplicação aeronáutica, o ar admitido seria comprimido em uma caixa fechada de ar de admissão montada na entrada de dois carburadores Weber 45 DCOE. Assim, a pressão positiva (entre 0,6 e 0,7 bar) antes da entrada dos Weber “empurraria” mais mistura ar-combustível para dentro do motor, elevando a potência final para a casa dos 240 cv girando a 7.500 rpm. A taxa de compressão praticamente não foi alterada, mas pistões diferenciados foram usados. Foi usada também um sistema de ignição por transístor, novidade na Alfa, mas com a já conhecida solução de duas velas por cilindro.
Diferente dos demais carros da época equipados com turbocarregadores, onde os gases de escapamento movimentam a “parte quente” do turbo e que por sua vez faz girar a “parte fria”, comprimindo o ar de admissão, no GTA/SA não havia a interação com os gases de escape. O acionamento era feito por um sistema de bomba e fluido hidráulico.
No esquemático abaixo vemos que as duas turbinas com acionamento hidráulico (turbina idraulica) recebem o óleo de acionamento (olio) que é bombeado por uma bomba hidráulica (pompa olio). O movimento das turbinas hidráulicas aciona os compressores de ar (compressori) que pressurizam o ar de admissão para os carburadores.
Trabalhar com um motor equipado com turbocarregadores é um desafio. A geração de calor dentro do cofre do motor é muito maior que em um carro com motor de aspiração natural, e não foi diferente com o GTA/SA, mesmo sem a parte quente do conjunto do turbo. Havia necessidade de se instalar um radiador de óleo adicional para arrefecer o fluido que passava pelas turbinas para lubrificação e acionamento. Foi também criado um sistema de arrefecimento com injeção de água na admissão para tentar controlar a detonação.
Por fora, o SA era igual a um GTA convencional, exceto aos olhos mais atentos que notariam os pneus traseiros mais largos da Dunlop, e alguns carros que não tinham o tradicional escudo da Alfa Romeo na grade do radiador. Por dentro, apenas um manômetro de pressão de turbocarregamento montado no painel ao lado esquerdo do conta-giros indicava que havia algo diferente no carro.
O Alfa turbo nas pistas
Ainda em 1966, os primeiros testes do novo Giulia Sovra Alimentata foram realizados no campo de provas de Balocco, de propriedade da Alfa Romeo, inaugurada em 1962 para suprir as necessidades de validação tanto dos carros de passeio da marca, como dos novos protótipos de corrida, longe dos olhos de curiosos e potenciais competidores.
Nas mãos de um dos principais pilotos da marca, Teo “Dorino” Zeccoli, o GTA/SA mostrou que as preocupações de Carlo Chiti eram verdadeiras. O motor tinha a tradicional características dos motores turbo de não entregar uma curva de torque e potência lineares, sendo que abaixo dos 3.500 rpm o motor era praticamente igual ao do GTA convencional, e entre 3.500 e 7.000 rpm o pico do potência era abrupto e nem sempre no mesmo ponto, tornado o carro muito imprevisível nas retomadas e saídas de curva. Zeccoli descreveu o primeiro teste como “uma tragédia” pois o controle do carro era prejudicado com “uma explosão imprevisível de força que chegou repentinamente e sem aviso prévio”.
O carro era potente, veloz, mas quase indomável. Carecia de confiabilidade pois com facilidade o motor superaquecia em velocidades mais baixas. Nas pistas de alta velocidade, o arrefecimento era suficiente e mantinha a temperatura do pequeno quatro-cilindros sob controle. O consumo de combustível era absurdamente alto se comparado com o GTA aspirado.
Mesmo sendo apresentado no Salão de Turim de 1967, o GTA/SA não ficou muito conhecido, mesmo na época. O maior feito do carro foi a vitória na 100 Milhas de Hockenheim de 1967 (pista de alta velocidade, favorável ao arrefecimento do motor) com o piloto alemão Siegfried Dau ao volante. Nomes de peso pilotaram o SA em outras provas, como Mario Casoni, Nino Vaccarella, Nanni Galli, Lucien Bianchi e Giancarlo Baghetti. Um dos carros participou da 24 Horas de Spa-Francorchamps, largando em segundo lugar atrás de um Porsche 911, mas não terminou pro problemas no motor.
Também participou de corrias em Monza, como a tradicional 4 Horas de Monza, que utilizava o anel de alta velocidade da pista antiga (foto de abertura).
Alguns dos SA foram usados por particulares em corridas na Europa, como o Campeonato Europeu de Carros de Turismo, onde um dos SA venceu duas provas na categoria e deu o título de 1969 aos pilotos Andrea de Adamich e Spartaco Dini na respectiva categoria.
Ao final de 1969, a Alfa e a Autodelta abandonaram a ideia do motor supercarregado para o GTA em campeonatos de maior relevância visto que os ganhos de potência não compensavam os inúmeros problemas que o carro ganhou, focando os esforços nos novos Alfa Romeo 33 com motor V-8 central.
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Alguns relatos apontam que Chiti ainda tentou uma última investida no GTA/SA no fim de 1969, com uma versão mais potente, perto dos 300 cv, motor equipado com cárter seco e nova refrigeração para o sistema das turbinas, além de uma asa traseira com acionamento hidráulico para melhorar o comportamento aerodinâmico do carro. Ao que tudo indica, se este carro realmente existiu, mal passou de um teste.
Talvez o GTA/AS tivesse mais sucesso se um sistema convencional tivesse sido utilizado, com uma única turbina que utilizava os gases de escape como fonte de energia, como seria no futuro BMW 2002 Turbo dos anos 70, ou no Chevrolet Corvair dos anos 60.
Não há registros precisos de quantos AS foram fabricados, mas estima-se que entre seis e dez carros foram montados. Hoje, são uma raridade sem tamanho, pouquíssimos continuam rodando pelo mundo.
MB