Na procura de material para a matéria da semana eu me lembrei do que tinha postado anos atrás numa página que escrevi quando a produção do motor VW boxer arrefecido a ar terminou, o que ocorreu no Brasil em 23 de dezembro de 2005. O texto que eu tinha escrito para ilustrar o uso do motor VW boxer em aviões foi o seguinte:
O “Spirit of Santa Paula” atravessou o Atlântico acionado por um motor VW boxer 1200. Foi o resultado de um concurso que o piloto tcheco Mira Slovak ganhou, voando durante 147 horas, 42 minutos e 7 segundos. Foram realizadas etapas de dez e doze horas entre as 9 aterrisagens para reabastecimento. Este concurso foi lançado pelo jornal britânico Daily Mail e o prêmio seria ganho por um piloto que voasse mais rápido entre o Empire State Building de Nova York e a Torre de televisão de Londres. Slovak foi o vencedor em sua classe.
Deixei de explicar que o “Spirit of Santa Paula” era um avião planador motorizado, que vamos conhecer adiante. A foto que usei na época foi a que agora é a foto de abertura. Ao chamar o seu avião de “Spirit of Santa Paula” o Mira Slovak fez uma alusão ao avião de Charles Lindbergh, o “Spirit of St. Luis” com o qual ele fez o primeiro voo sem escala entre Nova York e Paris em 20 e 21 de maio de 1927.
A grande escapada do comunismo
Mira nasceu em Cifer, Tchecoslováquia, em 25 de outubro de 1929. Quando tinha apenas 9 anos, os alemães invadiram a Tchecoslováquia e Mira e sua família tiveram que conviver com os horrores da ocupação alemã seguida pela igualmente sangrenta “Libertação Russa” (que manteve a Tchecoslováquia ocupada por muitos anos e foi até pior que a ocupação alemã).
Após a guerra, Mira ingressou na Força Aérea Tcheca quando tinha apenas 17 anos e tornou-se piloto de bombardeiro bimotor aos 19 anos. Quando um golpe comunista derrubou o governo tcheco eleito e todos os oficiais tchecos que serviram na Segunda Guerra Mundial foram “expurgados”, Mira foi promovido a capitão com apenas 21 anos de idade. A Força Aérea Tcheca o emprestou à companhia aérea civil da Tchecoslováquia e ele se tornou piloto de linha aérea.
A história conta que, em uma noite de 1953, um jovem piloto da Czechoslovak Airlines chamado Mira Slovak entregou os controles de seu voo comercial DC-3 de Praga para Brno ao seu copiloto, voltou para a seção de passageiros do avião e perguntou casualmente se alguém gostaria de ir até a frente e ver a cabine de comando. Três passageiros aceitaram e, assim que entraram na cabine, sacaram armas e as pressionaram contra as cabeças do copiloto e do navegador. Em seguida, ordenaram que a tripulação alterasse a rota e voasse para Frankfurt, na Alemanha.
Nada disso foi uma surpresa para o capitão Slovak, que havia arquitetado todo o plano. “Nós nos preparamos por dois anos”, lembrou ele. “Contrabandeei as armas a bordo e as entreguei aos meus amigos. Todos nós queríamos fugir dos comunistas.” Voando abaixo da linha de detecção dos radares eles chegaram a Frankfurt onde o grupo de amigos pediu asilo político, que foi concedido.
A CIA o levou da Alemanha para os EUA
Mira trouxe consigo um tesouro de informações valiosas e foi imediatamente acolhido pela mídia ocidental como um herói da Guerra Fria que estava em pleno vigor naquela época. Em dezembro de 1953, Mira foi levado para Washington, DC pela CIA, a Agência Central de Inteligência dos EUA, e passou mais seis meses trabalhando para a agência protegido em um esconderijo na Universidade Georgetown., em Washington.
Apesar da extraordinária cooperação de Mira com a comunidade de inteligência dos EUA, Mira, por causa de seu histórico comunista, ainda era legalmente impedido de obter uma licença de piloto comercial.
Na primavera de 1954, Mira conseguiu um emprego como pulverizador agrícola na Central Airways de Yakima, Washington.
Pilotando hidroplanos em altas velocidades
Após 2 anos na Central Airways, Mira foi contratado por Bill Boeing Jr. para ser seu piloto pessoal. Na primavera de 1956, Bill Boeing Jr. decidiu entrar no esporte de corridas de hidroplanos com um novo hidroplano chamado Miss Wahoo.
Bill ofereceu o emprego de piloto do Miss Wahoo para Mira. Embora ele nunca tivesse andado em nenhum barco mais rápido que um caiaque, ele aproveitou a oportunidade. Mira e o Miss Wahoo foram uma combinação vencedora, conquistando o primeiro lugar no Troféu Mapes de 1957 em Reno Nevada. Em 1958, com o Miss Wahoo fora da temporada e tendo seu motor Allison trocado por um Rolls Royce Merlin, Mira assumiu a pilotagem do Miss Bardahl e o conduziu a um Campeonato Nacional!
Em 1959, Mira estava de volta ao Miss Wahoo e ganhou a prestigiosa President’s Cup, o que lhe deu a chance de conhecer o presidente Dwight D. Eisenhower.
Mira queria muito ter a oportunidade de agradecer à ajuda do presidente Dwight Eisenhower que assinou um decreto liberando para ele a possibilidade de tirar a licença de radioamador, coisa que era proibida para estrangeiros, mas era condição para se tornar piloto profissional nos EUA.
Mira continuou a ser o queridinho da mídia nacional, com histórias publicadas na Life, Time, Look e Sports illustrated, além de aparições em programas de TV nacionais como “This is Your Life!” (Esta é a sua vida).
Em 1959, Mira foi contratado pela Continental Airlines como piloto profissional e, em janeiro de 1960, finalmente obteve a cidadania americana.
O caso de amor de Mira com o Wahoo (o barco foi renomeado) terminou abruptamente em 8 de agosto de 1960, quando o barco capotou e se acidentou durante a corrida Seafair de Seattle. Mira voltou a competir em 1963 com o veloz, mas de manuseio ruim, Miss Exide.
Apenas em sua segunda corrida, Mira tinha o Miss Exide na frente, lutando com Bill Muncey e o Miss Thriftway pela liderança, quando o barco se acidentou em um terrível mergulho de nariz. Mira ficou gravemente ferido.
Mira se afastou temporariamente dos barcos, mas não conseguiu ficar longe das corridas. Em 1964, ele pilotou o Miss Smirnoff Bearcat de Bill Stead e conquistou o primeiro lugar na primeira corrida aérea de Reno, Nevada.
Em 1966, Mira voltou aos hidroplanos, conduzindo o Tahoe Miss de Bill Harrah a quatro vitórias, incluindo uma Golden Cup e um Campeonato Nacional.
Durante a etapa oeste do circuito ilimitado, Mira entretinha os fãs entre as baterias, fazendo uma acrobacia de tirar o fôlego com seu avião biplano Bücker Jungmeister, um antigo avião alemão da Força Aérea da Tchecoslováquia que ele reformou cuidadosamente.
A última temporada competitiva de Mira em hidros foi em 1967, quando Mira substituiu Bill Sterett, que estava machucado, no Miss Chrysler Crew, ganhando o Troféu Seafair de 1967.
Uma curiosidade: o hidroplano Miss Chrysler Crew era o único barco da classe ilimitada a ser acionado por motores automobilísticos, eram dois motores Hemi 426 pol³ (7 litros) supercarregados acoplados. Os demais hidroplanos tinham motores de avião.
Em 1967, Mira tornou-se comandante de Boeing 707 e suas novas responsabilidades profissionais forçaram uma redução em suas corridas. Mira mudou do voo mais rápido possível para voar o mais lento possível…
O primeiro voo transatlântico com motor VW 1200 foi da Alemanha para os EUA
Acredito que o que foi relatado até agora já deve ter dado uma visão clara deste intrépido piloto do ar e do mar. Agora chegamos à parte do relato que começa a ser “movida por um motor VW boxer 1200 arrefecido a ar” mostrando as incríveis qualidades deste motor. Estamos em maio de 1968, quando nossa história continua. Estamos na Alemanha, na região chamada Eifel onde nosso herói se prepara para mais um feito.
Por volta das 10h50 da manhã de quarta-feira, 8 de maio de 1968, o piloto americano Mira Slovak, de 38 anos, decolou para uma ousada travessia do Atlântico em um planador com motor de apenas 39 cv, na verdade um motor VW boxer 1200. O piloto do Boeing 707 de Los Angeles havia comprado o planador com motor da fábrica de aeronaves Sportavia-Pützer em Dahlemer Binz, perto de Schmidtheim, na Alemanha, e estava determinado a pilotar ele mesmo a aeronave esportiva mais leve do mundo para casa.
Na fotocomposição abaixo vemos detalhes do planador motorizado modelo RF 4 D da Sportavia-Pützer tiradas em maio de 1968 quando o Mira estava cumprindo as 25 horas mínimas de voo neste avião preconizadas pelo fabricante para antes de sua entrega:
De cima para baixo:
-O avião completo, que tinha um trem de pouso principal retrátil, uma roda traseira dirigível e duas rodinhas de apoio fixas nas asas.
-O valente motor VW Boxer 1200, com ignição por magneto e carburador de fluxo ascendente. Foi acrescentado um alternador para alimentar a instrumentação, se bem que também havia uma bateria de emergência capaz de alimentar a instrumentação por 15 horas. Também foram acrescentadas uma bomba de combustível elétrica e outra manual.
-O Mira dando a partida que era manual, na posição preconizada para esta operação (o motor estava sem sua carenagem).
-Um teste no avião sem a carenagem do motor para agilizar algum ajuste necessário.
-O “Spirit of Santa Paula” na entrada em um hangar do aeroporto de Dahlemer Binz.
O voo de Mira Slovak, de 38 anos, através do Atlântico foi comparável aos voos pioneiros de Charles Lindbergh (que cruzou o Atlântico em voo solo em 1927), e de Hermann Köhl, James Fitzmaurice e Freiherr von Hünefeld (que cruzaram o Atlântico no sentido inverso em 1928). O risco do voo de Mira foi semelhante ao de um bote no Atlântico, embora a duração do voo seja muito menor. E por falar em cruzar o Atlântico de bote a remo, lembro do feito do brasileiro Amyr Klink realizado em 1984, indo da Namíbia, na África, para Salvador na Bahia.
Mira Slovak escolheu uma rota de voo que permitia várias escalas. Para começar, ele planejou voar até Glasgow, na Escócia, de onde decolou, em condições de vento razoavelmente favoráveis, para a Islândia, um dia depois para a Groenlândia e, finalmente, para o salto mais distante até o Canadá, a costa de Goose Bay. Suas escalas foram na Inglaterra: Luton, Glasgow e Stornoway, e Vagar, nas Ilhas Faroe. De lá, ele voou para Keflavik, na Islândia, Kulusuk e Narsarssuak, na Groenlândia, e aterrissou em Goose Bay depois de cruzar o Estreito de Davis.
Este planador motorizado, que custava 19.700 marcos alemães, foi desenvolvido pelo francês Fournier. Com uma envergadura de 11.260 mm. e um comprimento de 6.050 mm. 390 kg de peso máximo permitido em voo e equipado com um motor 1.2-LRactimo, o avião atinge uma velocidade de cruzeiro de 180 km/h com uma potência contínua de 35 cv a 3.400 rpm. A velocidade máxima com 39 cv é de 185 km/h.
Mira Slovak acabou não chegando perto dessas velocidades em seu voo no Atlântico, pois o avião acabou ficando pesado com dois tanques adicionais, cada um com capacidade de 40 litros, que foram instalados nas duas asas (no total o avião ficou com 120 litros de capacidade que permitiam cerca de 12 horas de voo). E ele também colocou um barco inflável enfiado atrás de seu banco por precaução. Além disso, o avião foi equipado com um rádio de ondas curtas e recebeu uma radiobússola também. Finalmente, o avião leve teve que receber um gerador (alternador) auxiliar para os instrumentos auxiliares.
Segue mais uma foto colagem feita pelo fabricante do avião destacando mais alguns de seus aspectos:
De cima para baixo:
-Mira dentro do avião, mostrando que não sobrava muito espaço para ele, o que tornavam penosos os voos longos de até 12 horas.
-O painel de instrumentos do avião, com equipamentos adicionais para o voo transatlântico.
-Pequeno espaço atrás do banco do piloto onde foi enfiado o barco de borracha e um traje de mergulhador (para águas geladas), ao lado de um equipamento eletrônico.
-Detalhe do leme com o logotipo da Continental Airways empresa na qual o Mira trabalhava.
-Mais uma foto do avião.
Mira atravessou o Atlântico com sucesso e chegou a Montreal no Canadá no dia 19 de maio, depois de ter voado por 6.300 km sobre água e gelo. A travessia do continente americano, de Montreal a Los Angeles, ficou em segundo plano em relação ao sensacional desempenho da primeira etapa.
Ao chegar em Los Angeles muito perto de seu campo de pouso regional, Mira fez uma manobra perto do chão e caiu. Ele foi levado ao hospital com ferimentos graves, tendo ficado vários dias em coma.
Em um jornal local foi publicado que: a 15 metros do final de sua jornada o Spirit of Santa Paula “caiu do céu como um pato abatido” Por quê? “Eu poderia culpar alguém”, disse Mira, que mal sobreviveu. Eu poderia culpar o vento quente, a alta temperatura do motor ou poderia dizer que fiz algo errado, mas não seria a verdade.”
Carta do Mira ao fabricante Sportavia
Terminando a Parte 1 desta história eu reproduzo a carta de 10 de junho de 1968 do Mira ao pessoal da Sportavia na qual o Mira já dá uma dica sobre a Parte 2:
[Início da tradução da carta]
Prezado Sr. Putzer e Sr.
Após uma travessia muito bem-sucedida do Atlântico e dos Estados Unidos, encontrei uma forte corrente descendente sobre meu destino, Santa Paula, que resultou em um acidente que, como tenho certeza de que vocês sabem, praticamente destruiu meu avião, N 1700. Eu estou atualmente no hospital me recuperando de lesões físicas que devem me manter aqui pelos próximos 3 meses.
Para mim, este foi um final triste para uma viagem de muito sucesso, que foi cuidadosamente planejada com a assistência competente do seu pessoal da Sportavia. Posso assegurar-vos, no entanto, que este infeliz resultado não me irá me deprimir permanentemente. Atualmente estou formulando novos planos que exigirão alguma ajuda sua e de sua empresa. Na próxima semana será tomada uma decisão sobre se os restos do N 1700 serão enviados para a sua fábrica para serem totalmente reconstruídos ou para serem substituídos por um novo.
Como vocês sabem, este avião gerou uma enorme publicidade em todo o mundo. Além disso, o Sr. Dobry precisará do N 1700 para completar sua história quase finalizada do filme do RF 4. Então, como você pode ver, precisamos desesperadamente deste avião. Dado que considero que este projeto também é do seu interesse e que deve ser realizado no menor tempo possível para ser eficaz, a sua cooperação será essencial para o seu sucesso. Portanto, eu apreciaria que vocês informassem a data mais próxima em que um novo N 1700 possa me ser entregue nos EUA. Recebi a garantia de uma concessão automática de ser concessionário de sua empresa como resultado de minha travessia bem-sucedida do Oceano Atlântico e, como tal, esperarei pagar a vocês o preço normal de concessionária por esta, bem como por futuras aeronaves que encomendarei em conexão com isso.
Por favor, estenda meus cumprimentos a Monsieur D’Asce, Herr Gruber e Herr Miller, bem como a toda a sua equipe. Gostaria que a viagem tivesse terminado com mais sucesso. Aguardo sua resposta o mais breve possível,
Atenciosamente,
Mira Slovak
[Fim da tradução da carta]
Pois bem, esta história continua na Parte 2, na semana que vem. Há mais peripécias para serem contadas, O Mira ainda ficou algum tempo no hospital para cuidar de seus múltiplos ferimentos, mas a sua fé permaneceu inabalada e a sede por aventuras tampouco.
AG
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