¹Informação ou asserção que distorce deliberadamente a verdade, ou algo real, caracterizada pelo forte apelo à emoção, e que, tomando como base crenças difundidas, em detrimento de fatos apurados, tende a ser aceita como verdadeira, influenciando a opinião pública e comportamentos sociais. – Academia Brasileira de Letras
A história se repetindo: de alguns meses para cá, uma campanha publicitária patrocinada pela Unica – União da Indústria da Cana-de-Açúcar do Estado de São Paulo, e com a presença do humorista Rafael Portugal, vem aparecendo nas redes sociais com o objetivo de fazer o consumidor optar pelo etanol, sob os argumentos de que só há vantagens no uso do combustível de origem vegetal, desde a questão de preço passando pela neurose e a hipocrisia carbônica que tomou conta da sociedade moderna.
Na era da pós-verdade, o apelo, a emoção são muito mais relevantes do que a verdade, os fatos, e por isso nada mais natural que colocar um humorista para protagonizar uma campanha como essa.
Os apelos da Unica (legítimos sim, na atitude, mas não na forma) visam exclusivamente trazer o consumidor de volta para o álcool, uma vez que muitos estão abandonando o uso desse combustível em decorrência do aumento de preços observados nas ultimas semanas, mesmo considerando a entrada da safra 2024/2025, oficialmente iniciada em 1º de abril ultimo.
Criando mitos do tipo “a queima do etanol é muito melhor para o motor”, ou ” o etanol’ impede a formação de depósitos de sujeira”, “a diferença de rendimento é muito pequena”, tudo para “tentar” trazer responsabilidade socioambiental e, com isso, tentar justificar os aumentos de preço do combustível obtido da cana-de-açúcar, matéria-prima que desconhecemos qual será o produto privilegiado na sua moagem, álcool ou açúcar
Falando em responsabilidade socioambiental, lembro-me de uma reportagem televisiva num posto de combustíveis quando o álcool deu um salto de preço absurdo e o repórter perguntou ao motorista de um carro sendo abastecido se ele usava gasolina ou álcool. “Álcool, claro, é melhor para o maio ambiente”, respondeu. O repórter estão comentou que o preço do álcool havia subido demais e o motorista disse, “Bem, nesse caso vou passar a usar gasolina”. Milhões de pessoas certamente assistiram essa matéria no “Jornal Nacional” da TV Globo.
A campanha propaga que nos motores modernos a diferença (a menor) do álcool é “muito pequena”, plenamente compensável pelo menor preço. Corrobora a informação algumas fontes “noticiosas” da imprensa afirmando ser o rendimento do álcool ser de pelo menos 75% da gasolina. Mas basta pegar os dados de consumo oficiais de quallquer carro e dividir consumo de álcool pelo de gasolina para verificar que o resultado sempre gravita em torno de 0,70.
Primeiro, que quimicamente, a energia contida em um litro de álcool é cerca de 70% da energia contida em um litro da mistura a base de gasolina que usamos. Segundo, a própria dinâmica dos motores flex.
Ate um passado não tão distante (2003), desde 1979 os motores eram a gasolina OU a álcool. Mapas de ignição, calibração de carburadores, pistões, taxa de compressão eram todos específicos para o combustível para o qual foram concebidos.
Para se tornarem flexíveis, foi necessário encontrar um meio-termo entre o álcool e a gasolina. Os primeiros AP-1600 flexíveis tinham taxa de compressão praticamente idênticas à dos motores a gasolina dentão (10:1, 9,8:1, na ordem) fabricados. Para queimar álcool, uma das estratégias utilizadas era o de adiantar o máximo possível a ignição, quando com álcool. O motor ficava mais “áspero”, porém sem haver detonação devido ao avanço de ignição excessivo, mas dava certo.
Depois outros motores foram surgindo, alguns meras adaptações de motores a gasolina para se tornarem flexíveis. Caso do GM Família 2, 2,4-L e 16 válvulas, exportado para o México e vendido em alguns raros Vectras Elite). Outros que privilegiavam o álcool em vez da gasolina e que muito embora a teoria reze motores com comportamentos idênticos funcionando com álcool ou gasolina, a prática mostra motores “grilando” com gasolina (que por lei tem que ter de 18 a 27% de álcool anidro), bicos injetores autolimpantes — em tese, mas que formam uma borra, enfim, todo um rosário de questões que, tivéssemos motores específicos (a gasolina e a álcool), certamente não existiria.
Importante destacar que o motor flexível existe porque no início da década de 2000 a frota de carros a álcool estava envelhecendo e o consumidor, que muitas vezes até queria um carro a álcool, receava em apostar no bom humor dos usineiros.
A saída da indústria do álcool para seu produto voltar a ser consumido em grandes volumes foi o carro flex que, por poder funcionar tanto com gasolina quanto com álcool, apagou da memória dos consumidores a grande falta de álcool no quarto trimestre de 1989.
Só que um dos efeitos colaterais do carro flex é justamente a indiferença pelos 70% de rendimento do álcool em relação à gasolina, causado pelo poder calorífico do álcool ser 70% daquele da gasolina, o preço do álcool acaba sendo indexado ao da gasolina na casa dos 70% também. E assim, se a gasolina sobe, certamente o álcool sobe em igual proporção, mantendo a paridade. Só que basta a gasolina cair de preço para começar a gritaria dos usineiros…
E por falar em gritaria, a absurda mistura de 27% de álcool anidro e gasolina, pode ser aumentada para 35%, numa aberração à brasileira sem limites em que a gasolina que compramos deveria mudar de nome oficialmente “combustível à base de gasolina”, jamais gasolina! Cadê o Código de Defesa do Consumidor?
Importante ressaltar que não se trata de ser contra o carro flex, ou mesmo o álcool. Trata-se de questionar o casuísmo das ações de marketing, criação de resultados de pesquisas tão estranhos quando correlacionar eventos aleatórios e o que talvez seja pior, o lobby favorecendo segmentos econômicos em detrimento da economia como um todo.
DA
P.S.: Eu estava assistindo a uma matéria na qual exibiram as imagens e áudios das câmeras no peito dos policiais militares que atenderam a ocorrência do jovem que colidiu com um Porsche 911 na traseira de um Renault Sandero dirigido por um motorista de aplicativo, e pelas conversas dos policiais concluí que a palavra “etanol” tomou conta mesmo…Agora quem bebe não fica mais alcoolizado e sim “etilizado”?. Aliás, “bafômetro” é apelido, o nome correto do aparelho que mede a presença de álcool no ar dos pulmões é etilômetro.