O ano era 1982. Eu havia acabado de me formar em engenharia e dava início à minha dupla jornada de trabalho, acumulando as funções de jornalista, que havia começado em 1976, com o trabalho da minha nova profissão. Alguns amigos brincavam dizendo que eu tinha vida dupla, como os super-heróis ou os agentes secretos de filmes, mas isso era meio exagero. O fato é que isso durou até há pouco tempo, uma vez que me aposentei como engenheiro.
Meu primeiro emprego de verdade como engenheiro, sem contar alguns estágios e uma primeira experiência de apenas um mês, foi na construtora do Chiquinho, um empresário da noite que também era engenheiro. Outro personagem de vida dupla, que mais tarde se tornaria meu amigo. Certa vez ele me contou o porquê de ter escolhido o meu currículo, entre centenas de outros (estávamos atravessando a pior crise do setor, os engenheiros que se formavam iam, em peso, trabalhar em bancos): Chiquinho havia feito o primário e o ginásio no Liceu Coração de Jesus, tradicional colégio salesiano no bairro paulistano do Bom Retiro. Assim como eu.
Fiquei algum tempo como Clark Kent, escondendo o alter ego de Super-Homem, para que meu novo chefe não me mandasse embora. Sim, testar motocicletas, para um jovem como eu, naquela época, poderia ser comparado a voar por aí de colant azul e capa vermelha. E com a cueca para fora da calça.
Enquanto isso, do outro lado da cidade, o setor de motocicletas nacionais ainda estava começando e não tínhamos nada mais empolgante do que a Honda CB 400 para testar na revista Duas Rodas. As revistas gringas e os folhetos de motocicletas estrangeiras que chegavam na redação nos deixavam ainda mais frustrados com essa realidade. Esse material me fez conhecer, entre outras maravilhas, a novíssima Kawasaki GPz 1100, supermotocicleta que inaugurava a era das injeções eletrônicas de gasolina confiáveis. Eu faria qualquer coisa para experimentar uma motocicleta dessas, até procurar outro emprego.
Foi o que aconteceu, um dia, no meu ooooooooutro trabalho. Chiquinho, que sempre desfilava com automóveis nacionais recém-lançados (o primeiro Chevrolet Monza hatch que eu vi na rua foi o dele), chegou no escritório com uma reluzente Kawasaki GPz 1100. Reluzente era apenas forma de expressão, já que a moto esbanjava outra novidade, o cromo preto (essa era a GPz 1100 II, pois a primeira versão, de 1981, ainda tinha os componentes escurecidos pintados com tinta preta, como o motor e os escapamentos).
Como fazer para andar nessa motocicleta? A turma da revista iria pirar (esse termo nem existia, na época). Não poderia simplesmente dizer “chefe, me empresta tua moto pra uma voltinha?” Ou, quem sabe, uma voltona, com direito a sessão de fotos para uma revista? Era hora de revelar minha verdadeira identidade, mostrando a carteirinha de jornalista vinda diretamente do planeta Krypton.
Deu certo. Surpreso, Chiquinho não só gostou da ideia, afinal, a sua motocicleta iria aparecer na revista Duas Rodas, como se tornou meu amigo. E lá fui eu com meu macacão vermelho e branco (só faltou a capa azul) fazer uns cliques com o fotógrafo Mario Bock. Foi publicado no Planeta Diário de abril de 1983.
A motocicleta
A grande sacada da nova Kawasaki GPz 1100 era a injeção eletrônica de gasolina, algo impensável para nós, brasileiros, inclusive para automóveis. Diferentemente do que se propagou, essa não foi era a primeira motocicleta a ter injeção eletrônica, já que no ano anterior, em 1980, a Kawasaki produziu as últimas versões da Z1000, modelo de grande sucesso da marca, com exatamente esse sistema analógico de injeção eletrônica, da Bosch. A importância da Z1000 foi enorme, pois foi a sua antecessora, a Z900, que desbancou a Honda CB 750 Four de seu lugar no mais alto pedestal das motocicletas. A Z900, mais conhecida entre nós como “Kawasaki 900”, foi produzida de 1972 a 1976, sendo substituída pela Z1000 em 1977, que durou até 1980, esta última já com injeção. E você já viu essa moto por aí: era a motocicleta pilotada pelo policial australiano Goose, do primeiro filme do Mad Max, uma Kawasaki Z1000 1977.
Bem, voltemos à Kawasaki GPz. A GPz 1100 B1, de 1981, tinha motor e outros componentes pintados de preto fosco e injeção eletrônica analógica. A moto do Chiquinho era a GPz 1100 B2, de 1982, que ganhou muitas melhorias, a começar pela injeção eletrônica digital, que trocou o medidor de fluxo de ar mecânico anterior por sensores eletrônicos, incluindo um sensor de posição do acelerador. A potência não aumentou muito por causa disso, passou de 108 cv para 109 cv, o que já era muito para a época, mas o funcionamento da injeção ficou mais preciso.
No visual, a GPZ 1100 B2 também evoluiu, em relação à B1. Motor e escapamentos ganharam o moderno tratamento de cromo preto e uma pequena carenagem cobriu o farol e o painel de instrumentos. Este, por sua vez, ficou mais elegante e passou a ter marcador de combustível de cristal liquido, para acompanhar a injeção digital. É que os relógios do painel também mostravam um pouco da nova tecnologia que surgia na época. Na B1, o voltímetro era convencional, analógico, com um ponteiro magnético, enquanto que a B2 tinha um segredinho: um botão no painel transformava o conta-giros em voltímetro. Naqueles tempos, as pequenas baterias das motocicletas não eram tão confiáveis, de forma que essas novas motocicletas equipadas com sistemas eletrônicos podiam deixar o usuário “na mão”, caso elas apresentassem um defeito inesperado, por isso o voltímetro era tão importante.
Na minha avaliação para a revista Duas Rodas, de abril de 1983, o tom é de um pouco de entusiasmo com a bela GPz 1100, inclusive na descrição de detalhes que hoje são corriqueiros, mesmo em motocicletas populares de baixa cilindrada. É que essa Kawa, para aquele momento, realmente era o suprassumo das motocicletas, mesmo em relação às melhores motocicletas disponíveis no mercado mundial.
Quarenta anos depois
Aqueles longínquos anos 1980 foram cruéis para quem gostava de boas motocicletas. Com as importações proibidas, eram bem poucas as motos que conseguiam entrar no pais, legalmente ou não. Por isso o entusiasmo, todas as vezes que tínhamos acesso a uma delas. Ainda hoje, esses modelos dos anos 1980 são mais raros, pelo mesmo motivo, mas a atual onda retrô, que também chagou às motos, está fazendo com que algumas dessas raridades perdidas por aí voltem aos olhos do público. É o caso da Kawasaki GPz 1100 B1 de 1981 do colecionador Ricardo Pupo, que nos “emprestou” sua motocicleta para umas fotos.
É claro que não foi possível fazer um teste com a moto, por se tratar de um item valioso e também porque o dono estava “de olho”. Mas foi possível relembrar o passado, da época em que tudo era menos tecnológico, porém mais empolgante. Não cabe aqui uma comparação com as motocicletas atuais, afinal, passaram-se mais de 40 anos, mas ainda dá para sentir, na pilotagem, que se tratava de uma motocicleta muito especial.
Recordar ´é mesmo viver!
GM