Vários empresários brasileiros tentaram realizar o sonho de produzir um automóvel. Alguns deram certo: os que se mantiveram em nichos, como o Araripe da Troller, o Hellmeister (e sócios) da Puma e até o João Gurgel, enquanto fabricava jipes (mas deu com os burros n’água quando decidiu enfrentar as “poderosas”).
Vários outros nem puseram para rodar sua linha de montagem, como Nélson Fernandes no começo da década de 1960 com sua Industria Brasileira de Automóveis Presidente (IBAP). Produziu cinco protótipos do “Democrata” e fechou a fábrica. Entre outras tentativas frustradas, o compacto “Óbvio!”, em 2001 em Duque de Caxias, RJ, que também teve alguns protótipos mas não saiu do papel.
Mais fracassos que sucessos
Mais recentemente, o argentino Miguel Angel Bravo anunciou a “Bravo Motors” (em Nova Lima, MG) para produzir baterias e elétricos pesados. O início das obras da fábrica seria em 2021 e as operações em 2023, mas por enquanto o cronograma está bastante atrasado e os investidores que compareceriam com os anunciados R$ 25 bilhões para viabilizar o empreendimento ainda não apareceram. Duas fábricas de automóveis aqui foram implantadas — com sucesso — por brasileiros, porém com tecnologia asiática: Eduardo Souza Ramos (Mitsubishi) e Carlos Alberto de Oliveira Andrade (Caoa) com a Chery.
Outro brasileiro, um capixaba visionário que também sonha em produzir seu automóvel é Flavio Figueiredo Assis (foto de abertura, junto do Lecar) que desenvolve (sem parceria internacional nem know-how do setor) o projeto do elétrico Lecar 459. Anunciado em 2023, a sede da empresa é em Barueri, SP) e a fábrica em Caxias do Sul, RS. O carro foi projetado por uma equipe de técnicos e engenheiros brasileiros. Ao contrário das outras multinacionais, Assis não teme a superioridade dos eletrificados chineses. E nem receio das “poderosas”.
Um capixaba otimista
O otimismo com os prazos para iniciar as vendas do novo carro levantou suspeitas: o protótipo seria enviado em fevereiro de 2024 para homologação na Inglaterra num processo previsto para seis meses (não se sabe por que, pois a legislação inglesa não tem nenhuma similaridade com a nossa). As primeiras unidades já estariam disponíveis no mercado em dezembro deste ano. Fiz as contas: nenhuma fábrica de automóveis no mundo foi capaz de iniciar as vendas de um modelo dez meses depois do início dos ensaios de homologação, pois há extensos protocolos burocráticos e industriais para sua consecução. Mas talvez Assis imagina que consiga turbinar o processo com o tradicional “jeitinho brasileiro”.
A Lecar já anunciou até o preço do carro (R$ 279 mil) e também o alcance de 400 km com bateria a plena carga. Assis previa a produção de 300 veículos por mês em 2025 mas não informou como sua rede de concessionárias, showrooms, oficinas, central de peças e treinamento seriam estruturadas até o início das vendas no final de 2024. Entretanto, como ele mesmo se anuncia como o “Elon Musk brasileiro”, talvez tenha imaginado eliminar revendas, como a Tesla. Esquecendo-se, talvez, de uma legislação (lei Renato Ferrari) que não permite esta solução no Brasil.
A previsão de faturamento é também otimista: R$ 1 bilhão no primeiro ano de operação. E, para viabilizar seus elétricos, a implantação de “uma rede de carregadores rápidos disponíveis a cada 150 km da rodovia BR-101”. A empresa de Assis opera inicialmente com capital próprio mas vai recorrer a financiamentos internacionais e um IPO (lançamento de ações no mercado) para garantir a continuidade de suas operações. Desde que, naturalmente, encontre investidores que acreditem em seu projeto.
Desvio de rota
Nesta semana, Flávio Assis anunciou um significativo desvio de rota, desistindo do elétrico em favor do híbrido. Teoricamente, ele está correto, pois é mais adequado ao nosso mercado. Mas complica ainda mais sua operação, pois a fabricação de um híbrido é bem mais complexa e requer, além do elétrico, também um motor a combustão (não anunciado) e uma sofisticada tecnologia eletrônica para harmonizá-los. O carro ainda não existe, mas ele diz que vai rodar 30 km por litro de gasolina.
Novamente demonstrando desconhecimento do setor, anuncia sua tecnologia como única no mundo: um motor a combustão gerando energia para movimentar o carro eletricamente. Exatamente a mesma de um carro apresentado por um tal de Ferdinand Porsche em 1901 e também utilizada pela BMW (i3) e Nissan Kicks (e-Power). Mas, enquanto a japonesa esbarra em dificuldades tecnológicas para lançar o sistema no Brasil, Assis parece ter descoberto um possível “caminho das pedras”.
O “novo” Lecar 459 foi anunciado como “híbrido flex a etanol”. Outro disparate, pois, se é flex, queima gasolina também. Mas o pior é que a Fiat já tem um motor a etanol pronto há tempos, porém não o lança no mercado pelo receio do consumidor de depender dos produtores de álcool.
Uma sensível diferença entre o verdadeiro Elon Musk e o “nosso”, é que o da Tesla tinha capital suficiente para tocar sua fábrica e começou no milionário mercado dos EUA, enquanto o dono da Lecar depende de financiamentos e investidores para tocar seu projeto num mercado bem mais acanhado, como o nosso. Será?
BF
A coluna “Opinião de Boris Feldman” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.
Aviso aos meus leitores e leitoras que estou saindo de férias e voltarei no começo de agosto.
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