O valente motor VW boxer de quatro cilindros horizontais opostos arrefecido a ar tem uma grande flexibilidade em suas múltiplas utilizações. Aqui na coluna já falamos de aviões, barcos, carros caça-minas e outros veículos especiais. Agora, mais uma façanha deste motor, propulsionar um autogiro.
Autogiro ou girocóptero é um tipo de aeronave cuja sustentação é provida por asa rotativa. Ao contrário dos helicópteros, o rotor gira livre, em força motriz, em autorrotação, como resultante aerodinâmica do movimento à frente. A propulsão é fornecida por uma hélice convencional movida por um motor. Para decolar, o autogiro necessita de uma pista, mas para aterrissar a pista pode ser menor.
O exemplar mostrado na foto de abertura é um modelo brasileiro equipado com motor VW boxer que ilustra um tipo atual de autogiro e nele se destacam seus componentes principais como rotor de sustentação, motor e hélice vertical, estabilizador traseiro, banco para piloto, instrumentos e dispositivos de comando e trem de pouso. Este tipo de aeronave é considerado experimental no Brasil.
História do autogiro
Juan de la Cierva foi um engenheiro, inventor, piloto e entusiasta aeronáutico espanhol. Em 1921, participou de um concurso de design para o desenvolvimento um bombardeiro para os militares espanhóis. De la Cierva projetou uma aeronave de três motores, mas no primeiro voo o bombardeiro estolou e caiu.
De la Cierva ficou preocupado com o fenômeno do estol (perda súbita de sustentação por velocidade insuficiente) e prometeu desenvolver uma aeronave que pudesse voar com segurança em baixas velocidades. O resultado foi a primeira aeronave com rotor horizontal para sustentação, de sucesso, que ele denominou autogiro, isso em 1923. O autogiro de De la Cierva usava fuselagem de avião com motor e sua hélice montado na frente, um rotor horizontal de giro livre montado em um mastro e um estabilizador horizontal e outro vertical. Sua aeronave seria a precursora do helicóptero.
Após quatro anos de experimentos, de la Cierva inventou a primeira aeronave de asa rotativa prática. Seus três primeiros projetos (C.1, C.2 e C.3) eram instáveis devido a deficiências aerodinâmicas e estruturais em seus rotores. Seu quarto projeto, o C.4, fez o primeiro voo documentado de um autogiro em 9 de janeiro de 1923, pilotado por Alejandro Gomez Spencer no aeródromo de Cuatro Vientos, em Madri, Espanha.
De la Cierva equipou o rotor do C.4 com dobradiças oscilantes para prender cada pá do rotor ao cubo. As dobradiças oscilantes permitiam que cada pá do rotor oscilasse, ou se movesse para cima e para baixo, para compensar a assimetria de sustentação, a diferença de sustentação produzida entre os lados direito e esquerdo do rotor ao o autogiro se mover para frente.
Três dias depois, o motor parou logo após a decolagem e a aeronave desceu lentamente e na vertical para um pouso seguro, validando os esforços de de la Cierva para produzir uma aeronave que pudesse voar com segurança em baixas velocidades.
De la Cierva desenvolveu o seu modelo C.6 com o apoio da Aviação Militar Espanhola, tendo gasto todos os seus fundos no desenvolvimento e construção dos primeiros cinco protótipos.
O C.6 voou pela primeira vez em fevereiro de 1925, pilotado pelo capitão Joaquín Loriga, incluindo um voo de 10,5 quilômetros (6,5 milhas) do aeródromo de Cuatro Vientos ao aeródromo de Getafe em cerca de oito minutos, um feito significativo para qualquer aeronave de asa rotativa da época.
Pouco depois do sucesso de de la Cierva com o C.6, ele aceitou uma oferta do industrial escocês James G. Weir para estabelecer a Cierva Autogiro Company na Inglaterra, após uma demonstração do C.6 perante o Ministério da Aeronáutica britânico no centro de pesquisa aeronáutica RAE Farnborough, em 20 de outubro de 1925. A Grã-Bretanha havia se tornado o centro mundial de desenvolvimento de autogiros.
Seguiu-se uma longa fase de desenvolvimento de autogiros por vários países sendo desenvolvidos modelos interessantes. Autogiros chegaram a ser empregados militarmente. Mas com o surgimento e desenvolvimento dos helicópteros os autogiros perderam interesse.
Por outro lado autogiros pequenos, para um ou dois ocupantes, com motor traseiro, passaram a ser uma solução acessível e segura para consumidores particulares, sua situação nos dias de hoje. Há diversos modelos sendo vendidos inclusive em kits.
O voo recordista do autogiro “La Cabra Loca” de Porto Rico à República Dominicana
O nosso personagem se chama: Tirso Garcia. Nascido na República Dominicana, era filho do pioneiro da aviação civil na naquele país caribenho, Zoilo Hermógenes García Peña. Ele morou boa parte de sua vida “na ilha ao lado”, em Porto Rico, onde recebeu as honrarias de cidadão porto-riquenho. Abaixo uma foto dele, então com 90 anos, em frente á sua residência em Bayamón, Porto Rico, com uma de suas esculturas
No decorrer de 1982 ele decidiu construir um autogiro, escolhendo o motor VW boxer para propulsioná-lo. Trabalhando na base da tentativa e erro ele acabou tendo vários acidentes com sua então incipiente aeronave. Um parente próximo, presente nas experiências, disse que aquilo (o autogiro em construção) mais parecia uma “cabra louca”, e o apelido “La Cabra Loca” pegou e virou nome deste autogiro.
Quando o autogiro ficou pronto o Tirso decidiu realizar uma grande proeza para aquela época que era voar com aquele “banco voador”, que é outro apelido dado aos autogiros, feito em casa, da Ilha de Porto Rico para a ilha Espanhola, onde está a República Dominicana.
Era um “salto” de 83 milhas (134 km) voando a maior parte sobre águas internacionais, atravessando o canal “La Mona”. Abaixo o mapa mostrando as duas ilhas:
Chegou o dia de realizar a proeza, 15 de fevereiro de 1983, uma terça-feira. A foto é deste dia:
Este voo foi acompanhado por um avião Cessna 172 pilotado pelos filhos do Tirso, Zoilo H. Garcia e Tirso Garcia Filho. A foto acima registrou a partida do voo de Tirso e os filhos dele filmaram o voo de Porto Rico para a República Dominicana. Veja o vídeo (18:18) detalhando o voo e a chegada à República Dominicana:
Esta proeza acabou sendo registrada no Livro Guinness de Recordes, já que o recorde de voo com autogiro sobre o mar até então era de 40 milhas (64 km). Esta proeza e este recorde repercutiram muito na República Dominicana.
Ainda hoje Tirso Garcia é venerado pelos dominicanos, não só como recordista do Livro Guinness, mas em especial como inventor, excelente piloto e fundador da primeira escola de aviação civil do país, sem esquecer que ele também era escultor.
O autogiro Cabra Loca HI-412 está preservado no Museu da Aviação, na República Dominicana sendo motivo de admiração de todos:
No dia 2 de maio de 2011 foi realizado em Porto Rico um ato de reconhecimento a Tirso García por suas contribuições para a aeronáutica civil e como cidadão comprometido com a investigação, a promoção do engenho e o desenvolvimento, conforme registra a foto abaixo:
A foto abaixo foi tirada em Bayamón, Porto Rico, onde o Tirso morava. É uma das esculturas dele que ele tinha instalado em um mastro na frente de sua casa:
Tirso Garcia nos deixou aos 101 anos, no dia 18 de abril de 2018, com um legado reconhecido pelos dominicanos e pelos porto-riquenses.
Esta matéria foi uma sugestão de meu amigo dominicano Fadyl Gomez, diretor do Bar Bug VW Club da República Dominicana, onde o VW Fusca é chamado de “Cepillo”. Estive com ele quando de sua visita a São Paulo em março de 2017.
Na foto abaixo vemos uma foto do encontro com ele no dia 9 de março de 2017, quando eu presenteei-o com uma reprodução do certificado do segundo recorde do Livro Guinness de Recordes que o Fusca Clube do Brasil quebrou em Interlagos, durante a minha gestão, atingindo 2.728 carros:
Agradeço ao Fadyl pela sugestão. A matéria em si demorou para ser elaborada já que foi necessário pesquisar bastante, pois as informações sobre o Tirso e seu Cabra Loca foram se perdendo com o tempo. Mas, no fim, foi possível elaborar mais uma matéria testemunho da valentia do motor VW Boxer em mais uma aventura.
AG
Nota de alteração: em 02/07/2024 às 13h50 o vídeo que estava na matéria mostrando a chegada à Ilha Espanhola foi substituído por um video mais completo enviado nos comentários da matéria pelo leitor Fernando Moreira a quem agradeço a contribuição.
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