Acredito que a primeira vez que ouvi falar com mais ênfase no nome comercial Ford Zetec, foi no começo de 1994, quando o Benetton-Ford de Michael Schumacher se provou um competidor muito sério para o Williams-Renault FW16 de Ayrton Senna. De repente, V-8 Ford Zetec-R era sinônimo de agilidade e desempenho competitivo perante o poderoso e até tão intocável V-10 Renault, mesmo sabendo-se que havia muito mais coisa no entorno além da simples questão de motor.
Era o fim da eletrônica massiva nos carros de F-1, prejudicando o projeto de Adrian Newey mais do que se poderia supor. A vitória no GP do Brasil no mesmo ano deixou a Ford muito em evidência,
Udo Kruse, o presidente da filial brasileira da fabricante na época, nos estertores da holding Autolatina, capitalizou muito essa vitória para a Ford. Antes mesmo da corrida, Michael Schumacher podia ser visto andando de Escort XR3 – inclusive dando cavalos de pau no estacionamento do hotel segundo algumas fofocas — e os carros de apoio na corrida eram Veronas com motor 2-litros Volkswagen, nada de Zetec ainda, portanto.
A família de motores Zetec “civis” remonta ao final de 1991 na Europa, com o nome de Zeta e aqui no Brasil chegou pouco tempo depois com o Mondeo. Em seguida com uma nova geração de Escort lançada aqui no final de 1996, já fabricados na Argentina. Eram motores muito modernos e econômicos, e tinha toda aquela aura de “motor de Fórmula Um” por trás.
Minha mãe teve um Escort com esse motor no final dos anos 1990, e lembro como era gostoso de acelerar; as marchas eram bem longas e apesar disso o motor 1,8-litro proporcionava um excelente desempenho, girava macio até o limite e consumia pouca gasolina. Esses motores fizeram sucesso e deixaram saudade, estavam um bom passo à frente da concorrência direta
Até o diminuto Ford Fiesta veio com uma versão menor e mais atualizada desse motor (família Sigma), de 1,4, sendo opção do topo de linha tanto dele quanto da picape Courier até 1999.
ANDANDO NO FIESTA CLX 1999
Meu amigo Jeison Paim mais uma vez disponibilizou um carro seu para minha avaliação e novamente, um exemplar em excelente estado geral, como mostram as fotos. Ao entrar percebe-se que tudo é macio e aveludado, painel orgânico e mostradores pequenos e delicados.
O banco do motorista parece uns 2 cm mais alto do que seria o ideal, mas isso é mais questão de gosto pessoal. É fácil acomodar-se ao volante e as colunas dianteiras finas, junto com o capô pequeno, resulta em ótima visão o que vem à frente. A estrada está logo ali, parece que quase podemos alcançá-la com as mãos, pois o carro é baixo e existe pouco “material” entre eu e o caminho a tomar.
A embreagem é leve e faz o carro se movimentar naturalmente, sem exigir habituação nas primeiras trocas. O câmbio têm o”H” básico bem justo, pedindo pouco movimento do braço, Mas como Ford Ka XR, seus movimentos são mais lentos e exigem mais força do que se poderia supor olhando a alavanca. Ela não é pesada, apenas não é padrão Volkswagen daquela década.
Lembro que a família Escort Zetec tinha o toque mais seco da caixa e mais leve também na movimentação, mas não se pode comparar carros novos (na época) com um de 25 anos, como este belo Fiesta. Com o passar dos quilômetros nos acostumamos e passar as marchas com alegria, que só aumenta ao solicitar mais do acelerador, que nesse Fiesta era bem leve e progressivo.
Já o motor parece não sentir a idade, é silencioso e sobe de rotação com vontade e suavidade ao mesmo tempo. Transmite sua energia de forma decidida para as rodas motrizes dianteiras, seu funcionamento global é bem liso, sendo levado muitas vezes a 6.000 rpm (não fui além para respeitar a mecânica, e também era desnecessário, o pico de potência é a 5.500 rpm), parecendo estar trabalhando a regimes menores, pois não vibrava e não se tornava áspero ao ser mais solicitado seguidamente.
Sendo assim esticado o motor leva a segunda marcha até 80 km/h (indicados) e a terceira, a 120 km/h, podendo ir mais caso queira ir até quase o final da escala do conta-giros. A quarta entra macia e perto da rotação mencionada acima o velocímetro já mostra o Fiesta bem próximo de 160 km/h. Sua contida cilindrada de 1.388 cm³ (76 x 76,5 mm) não era nem de longe sinônimo de carro apático em 98/99.
Pelo contrário, o Zetec-S de 88 cv tornava o pequeno Fiesta um carro irrequieto, podendo enfrentar sem fazer feio muito Gol AB9 (segunda geração) com motor 1,8-litro e injeção multiponto de 99 cv. Gol 1,6-litro e Corsa 1,6 mpfi normalmente obtinham resultados cronometrados piores, apesar do pequeno Chevrolet andar muito perto. Seu desempenho para o trânsito de 2024 ainda é bastante adequado, não existem lacunas de potência mesmo em rotações mais modestas.
Ele encara subidas longas com valentia e acompanha o trânsito rápido das autoestradas com bastante tranquilidade. A cada mudança de marcha mais rápida sente-se o golpe sutil — mas presente — nas homocinéticas, dando a certeza de verdadeira conexão mecânica do motor com as rodas, aquela impressão real do motor se calando num brevíssimo momento no rápido desacoplamento da embreagem, para surgir em seguida esbanjando vitalidade, uma coisa muito física e tangível que está terminando nos carros de hoje por conta do fim dos câmbios manuais.
Objetivamente, um Fiesta 1,6 Rocam de mesma carroceria será um carro com mais energia de sobra, mas seguramente não terá um motor com funcionamento tão equilibrado, suave e sofisticado. Subjetivamente, o Zetec-S é um motor bem mais feliz quando provocado.
PELAS CURVAS
Carro pequeno em curvas curtas dificilmente dá errado, e o Fiesta não é exceção. Sua direção com assistência hidráulica estava em ótima forma, agindo exatamente como uma direção da sua época, com mínimo atraso de resposta às solicitações na direção. À medida que se vai travando conhecimento com este Fiesta, a velocidade nas curvas vai aumentando e os sinais de que vem algo bom ali começam a surgir.
Sim, ele rola, inclina, mas de uma maneira controlada e sem escândalo dos pneus. Para começar a ouvi-los chiando é preciso começar a forçar de verdade, seja dando excesso de comando proposital no volante, quebrando a aderência apenas como ponto verificador, ou tendo confiança no carro o suficiente para fazer as curvas curtas e médias bem perto do limite de aderência. E nesse caso, o Fiesta apresenta um comportamento bastante neutro, não escapando de frente ou de traseira, as rodas do eixo traseiro obedientemente seguindo as motrizes-diretrizes.
Podemos quebrar um pouco desse equilíbrio ao provocar o carro usando mais forte os freios no momento em que se vira o volante para dentro da curva – novamente, curvas fechadas de asfalto liso – surgindo dessa forma uma ligeira tendência real da traseira em fechar um pouco a trajetória, encurtando o espaço que o carro vai utilizar na nesse pedaço de estrada. Como que quase se “encolhendo”, ao contrário do que seria com uma escapada de frente…
Realmente delicioso e seguro, não é preciso nem imaginar uma contra-ordem no volante, é tudo muito sutil e equilibrado, deixando qualquer motorista à vontade para explorá-lo mais. Nas curvas médias, depois que ele deixa de rolar e se apoia nos pneus, basta apenas manter o acelerador apertado e a direção apontada que ele tira tudo de letra, transmite confiança e complacência mesmo andando em ritmos que parecem ser altos para quem olha do lado de fora.
Claro que a essa altura os macios bancos dianteiros sem abas laterais pronunciadas vão estar sinalizando ao motorista que ele está dirigindo um carro de passeio, mais voltado ao conforto do que à esportividade apesar da esperteza e da agilidade nas curvas, resultados diretos do tamanho, pouco peso e do acerto de suspensão primoroso desse pequeno Ford, que têm no seu DNA o trabalho do renomado engenheiro britânico Richard Parry-Jones, o homem por trás de muito Ford bom de dirigir nos últimos 30 anos — Sierra, Escort, Mondeo, Focus, Fiesta e Puma, por exemplo.
Andando forte ou devagar curtindo a paisagem depois da avaliação, a impressão geral é de um carro que veste o motorista, não o isola do que acontece lá fora, é pequeno a ponto de parecer um brinquedo, sua mão vai tocar quase todos os quadrantes internos do carro, bastando esticar bem o braço.
O veludo do interior é discretamente colorido e macio, quente e agradável para o inverno gaúcho, o motor e o sistema de escapamento proveem um jeito de rodar quase o de um pequeno carro de luxo gostoso de passar o tempo atrás do volante. É de dar vontade de pegar uma estrada com ele e sumir.
CONCLUSÃO
É visível que os carros de hoje são cada vez maiores, mais pesados, seguros, velozes e infalíveis. São claramente melhores do que os carros do passado em quase todos os aspectos, seria muito estranho e nada coerente que fosse o contrário. Afinal de contas, a humanidade sempre avança aqui e acolá, mas a ordem natural da civilização é sempre melhorar. Com os carros não é diferente, para se ganhar perde-se algo por ser inconciliável com novos parâmetros e exigências (de cunho governamental) estabelecidos.
A conexão mecânica que há com o Fiesta não se encontrará num compacto atual, que comparativamentevai parecer sempre grande e isolado demais e em cuja faixa de preço proporcional “presenteá-lo” obrigatoriamente com uma caixa automática, cortando substancialmente as relações táteis entre motorista e o motor que está comandando.
Não é que se tenha necessariamente um pendor natural por coisa “velha”, por nostalgia. Trata-se de reconhecimento do que é legal de dirigir, o que nos empolga, o que nos faz passar longas horas atrás do volante sem se cansar.
Também não é questão única de potência e velocidade, de fazer as curvas sempre com a faca nos dentes, e muito menos é uma questão de status e imagem social, essa coisa tão tola e da profundidade de um pires.
O Fiesta é um carro modesto em potência (para os padrões de hoje), em visual, tamanho e pretensão, mas que é tão bem construído e elaborado que merece tanto amor quanto um bom carro de 2024. Coisa boa e bacana não tem idade, os valores e os princípios são parecidos apesar das mudanças de contexto.
Dirigindo forte ou não, o Fiesta 1,4 é sempre uma experiência agradável e orgânica, não falha em nenhum fundamento quando em movimento, e é engraçado o quão pequeno é perto dos carros “pequenos” (em extinção) dos nossos dias, com exceção de Mobi e Kwid, que chegam a ser esquisitos em seus propósitos.
Este Ford é sofisticado na mecânica, no acerto da suspensão, no desenho elaborado do painel e na combinação de cores e tecidos do interior. Parece tão inofensivo e anônimo andando por aí, mas posso assegurar que tem agilidade quase felina nas curvas e seu motor bem elaborado geneticamente, mesmo nos dias de hoje, ainda proporciona sinceros sorrisos. Fiesta tristonho como foi apelidado? Tristonho fiquei eu depois que tive d abandonar o volante dele…
“Fórmula Finesse”
Bento Gonçalves – RS