Muitos anos atrás (falando de 1962) chegou às minhas mãos um livro de bolso (pocket book) intitulado “Tout se complique” (Tudo se complica) do francês Jean-Jacques Sempé. Sem texto, apenas quadrinhos, caráter humorístico, mostrando as complicações da vida moderna no dia a dia. Vale a pena comprar, tem na Amazon em francês e inglês.
Mas o que tem a ver o tema da obra com o automóvel? Tudo.
No começo, até onde minha experiência de vida alcança (nasci em novembro de 1942, no meio da Segunda Guerra Mundial) os automóveis e até caminhões eram movidos a gasolina. Não havia o que escolher, a gasolina era uma só. Isso sem contar que durante o conflito (1939-1945) a gasolina foi severamente racionada, pois além de ainda não termos descoberto poços de petróleo, a gasolina era importada.
Terminada a guerra, mundo entrou numa era de grande crescimento, em especial a indústria automobilística. Motores evoluíram válvulas antes no bloco passaram para o cabeçote., ganharam eficiência, mas precisaram de gasolina de maior octanagem e a indústria do petróleo atendeu. Primeira complicação, agora eram dois tipos de gasolina, inclusive aqui a partir de 1953, ano da criação da Petrobrás. Qual gasolina usar?
Em 1973 o mundo se viu às voltas com uma elevação brutal do preço do petróleo, do qual necessitávamos em 80%, levando a um gasto desmedido de divisas. Como medida de aliviar esse gasto criou-se em novembro de 1975 o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) e quatro anos depois surgiram os primeiros carros a álcool.
Segunda complicação: era preciso ficar atento a qual combustível estava sendo efetivamente colocado no tanque. Se fosse o errado para o carro, era necessário retirá-lo todo do tanque, algo trabalhoso e demorado. E como isso acontecia!
Combustíveis só faltam por motivo de força-maior, como guerras, acidentes geológicos, cataclismas Não houve nada disso aqui e, entretanto, no quarto trimestre de 1989 o álcool sumiu, escafedeu-se, como na canção do Blitz “A dois passos do Paraíso).
Não era para faltar álcool, tínhamos cana-de-açúcar à vontade, mas o vil metal falou mais alto e os produtores produziram mais açúcar, então em alta nos mercados mundiais, em detrimento do álcool. Mas a lavoura da cana havia sido estimulada pelo Proálcool para produzir… álcool!
Terceira complicação, esta para quem tinha carro a álcool, uma amarga experiência que proprietários de veículos a gasolina ou diesel nunca tiveram e nunca terão, exceto em situações excepcionais como as citadas acima. Nenhum proprietário de um desses dois tipos de veículos quanto a motorização se preocupa com o fato de não serem flexíveis (“flex”) em combustível.
A quarta complicação foi após a retomada da produção de álcool, o preço do petróleo cair acentuadamente, com isso baixando em muito o preço da gasolina. Isso acabou por prejudicar os donos de carros a álcool por passarem a despender mais para rodar em relação a quem tinha carro a gasolina. Quem confiou no Proálcool se deu mal.
Esse quadro desfavorável para o carro a álcool continuou a se intensificar e atravessou a virada da década e do século. A produção de carros a álcool caiu tanto que em muitos casos quem quisesse um era preciso encomendar nas concessionárias.
O álcool foi salvo pelo gongo: em março de 2003 a Volkswagen lançou o primeiro carro flexível do Brasil, o Gol 1,6 Total Flex. Curiosamente — coincidência? —, as propagandas desse Gol eram coassinadas pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). Gongo: agora podia faltar álcool que ninguém ficaria com pane seca na estrada. E a indústria do álcool floresceu. Salva pelo gongo.
Em 2009, nova complicação — a quinta — do nada. A Unica sensibilizou a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) no sentido de usar um nome “internacional para para o velho e bom álcool: etanol. Só que essa grafia só se encontra nos países lusófonos, no resto do mundo é ethanol. Foi mais um exemplo de mudar por mudar. Álcool e etanol são mesma coisa e tudo começou com o Proálcool, não Proetanol. Por isso, em respeito à História, etanol é palavra banida no AE.
Quem mais pagou o pato com o carro flex foi a imprensa, em especial a especializada em veículos. Agora temos de informar potência, torque, a que rotações. acelerações e retomadas, velocidade máxima e consumo de combustível referentes a gasolina e álcool. Nunca tais dados nas publicações americanas. A propósito, no AE os dados nas fichas técnicas e nos textos sempre são primeiro gasolina, depois álcool (G/A)/
As fabricantes também saíram prejudicadas: o mesmo carro precisa ter duas homologações, a de álcool e a de gasolina, não são baratas.
Falando de homologação, uma situação bizarra ou surreal, como queira; a homologação de versões a gasolina, bem como o trabalho de desenvolvimento de motores, é feito exclusivamente com gasolina E22, com 22% de álcool. Carros que rodarão nas mãos dos consumidores com gasolina E25 ou ou E27; E com a nuvem escura pairando sobre “gênios” que estão pensando em E35…
Finalmente, a última e mais recente complicação: os carros híbridos. Tem fabricante divulgando que seu híbrido de carregar na tomada roda 200 quilômetros com 1 litro de gasolina. Alegam, justificando, que a medição é feita pelo ciclo mundial WLTP e ponto final. Durma-se com um barulho desses! Há de ser encontrada uma maneira de determinar o consumo de combustível dos veículos com esse tipo de propulsão.
“A tecnologia avança de forma mais rápida que a regulamentação”, disse numa recente apresentação para a imprensa o engenheiro João Irineu Medeiros, vice-presidente de Assuntos Regulatórios da Stellantis.
BS
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