A Volkswagen esteve presente na minha família desde que me conheço por gente. Em 1966, ano em que nasci, meu avô comprou seu primeiro Fusca e pelos 25 anos seguintes todos os seus automóveis seriam da marca alemã. A tradição se encerraria em 1987 com a aquisição de um Passat Flash vermelho, que viria a ser seu último carro. Meu pai seguiria em parte essa tradição, mas sucumbiria em 1986 aos encantos do Chevrolet Monza, para, a partir de então, nunca mais retornar aos VW.
Mas a história que quero contar diz respeito ao elo entre um avô e seu neto e ao automóvel que, fisicamente, viria a perpetuar essa relação. Na década de ‘60 meu avô comprou uma casa grande e convidou meus pais recém-casados para morar com ele e minha avó. Assim passei toda minha infância e adolescência nesse rico ambiente familiar, desde muito cedo sempre autoentusiasmado pelos nossos carros e por todos os outros que encontrava em meu caminho.
Aos dois anos, meu programa matinal e obrigatório era assistir à debandada de uma frota de táxis DKW que passavam a noite guardados em um estacionamento na minha rua. Em janeiro de 1973, meu pai me presenteou com minha primeira Quatro Rodas e, a partir de então, mensalmente eu devorava os testes e as notícias sobre o meu assunto preferido. Com o tempo, as outras publicações especializadas passariam a fazer parte da leitura. O sonho do carro próprio só crescia e, ao completar 18 anos, ele finalmente se materializaria.
Meu avô, apesar de sua personalidade discreta, sempre fez o que podia e o que não podia por mim. Estava presente em todas as ocasiões. Se meu sonho era ter um carro, o dele era proporcionar a realização desse desejo. Em sua visão de mundo, um garoto de 18 anos tinha que ter automóvel. E estava decidido a me dar o tal carro de presente de aniversário e nem que eu quisesse — devo confessar que eu não queria — seria possível tirar essa ideia de sua cabeça.
Pediu para que eu escolhesse o modelo. Minha opção, nada modesta, recaiu sobre o carro que, naquele momento histórico, certamente representava um dos melhores pacotes para alguém que tinha paixão por automóveis: o Gol GT. Um modelo pequeno, bem equipado para a época e anabolizado por um motor então bastante moderno e potente, o recém-lançado 1,8 arrefecido a água com sua potência declarada de 99 cv. Talvez um pouco demais para quem começava a vida em quatro rodas e carecia de experiência. Mas meu avô, sempre defensor da marca Volkswagen, abraçou a ideia e lá fomos nós em busca do Gol GT.
Após alguns dias de pesquisa, o negócio foi fechado por algo em torno de 16 milhões de cruzeiros na concessionária Central de Veículos, localizada na rua Penaforte Mendes, em São Paulo. Foi uma alegria. O carro não se encontrava na loja no momento da compra e combinamos com o vendedor uma data para que retornássemos apenas para vê-lo no pátio, mesmo sem ainda poder levá-lo para casa.
Assim foi feito, na companhia de meus amigos de colégio. Entrar no meu primeiro carro, sentar no banco do motorista ainda coberto por plásticos e mergulhar naquele ambiente impregnado pelo inconfundível, inimitável e indescritível cheiro de novo foi uma emoção que jamais viria a se repetir em minha trajetória autoentusiasta.
Finalmente, no dia da retirada do carro meu avô foi o primeiro a dirigir a novidade até nossa casa – nada mais justo! Depois, assumi o volante do Gol GT 1984 quatro-marchas para nunca mais largá-lo. Naquela época – e ainda hoje – o GT era um carro delicioso. Em relação ao Passat LS 1,5 1981 do meu pai, no qual eu aprendi a dirigir, a estabilidade era fantástica e o motor, assombroso. Um convite aos exageros no trânsito.
A partir daquele momento e pelos próximos anos, o Gol GT me levaria para a escola, à casa da namorada — com quem viria a me casar —, à faculdade e ao trabalho. Na retaguarda, meu atento avô permanecia sempre de olho nas peripécias do neto e pronto para qualquer imprevisto.
Por volta da metade da década de 90, o infalível “seu” Joaquim começou a adoecer e, com o avanço da doença, a perder a memória até o ponto de não mais conhecer ou se relacionar com as pessoas. Mais ou menos no mesmo período — e acho que só agora me dou conta da coincidência — circunstâncias diversas me levariam a guardar o Gol na garagem da casa de meu avô, onde ele viria a repousar pelos próximos 15 anos.
A vida havia mudado, eu tinha então minha família, um carro mais novo para o dia a dia e até alguns antigos para curtir aos finais de semana. Adormecido, meu Gol GT não era, então, nem um carro de uso e nem um clássico antigo. Perdido no tempo e no espaço, estava, na verdade, esperando o momento de renascer. Em 1995 meu avô se foi. Foi a primeira grande perda que tive.
A vida continuou seguindo seu curso e, por volta de 2009, após algumas iniciativas isoladas e pouco efetivas de reativação da máquina, havia chegado o momento de despertar o pequeno gigante. Resgatado de sua longa hibernação, o Gol GT recebeu os devidos cuidados para, finalmente, voltar às ruas ostentando seus 36 mil quilômetros rodados. Guardando até hoje algumas pátinas dos anos dourados em que serviu a um autoentusiasta jovem e empolgado — cicatrizes que, afinal, contam um pouco da minha própria história —, o Gol GT 84 roda orgulhoso pelas retas e curvas de uma estrada infinita que atravessa mais de três décadas de convivência com a mesma família.
Talvez já tenha atingido o status de sobrevivente. É um presente que recebi de alguém muito importante e que vou deixar para os meus filhos. Um tributo eterno a meu avô e em respeito ao entusiasta por automóveis que eu sempre serei.
Cláudio Milan
São Paulo – SP