Hoje quando pensamos em veículos de luxo no Brasil lembramos dos veículos Mercedes-Benz, BMW, Audi e outros veículos importados. Em 1976 foi fechada a importação de carros no Brasil e o brasileiro não tinha mais a possibilidade de adquirir um carro importado.
Em 1983 a Ford encerrou a produção do Landau, o Alfa Romeo Ti4 foi até 1986, mas era um veículo muito caro. As opções de carros de luxo na década de 80 eram o Opala, Del Rey, Monza e Santana.
Mas no Brasil havia um segmento que oferecia carros de luxo em tamanho extra, eram as picapes transformadas em cabine dupla e peruas. Este tipo de veículo era oferecido por empresas como Souza Ramos, Engerauto, Sulam, Envemo e muitas outras empresas espalhadas pelo Brasil afora.
O que todas elas ofereciam era transformar uma picape cabine-simples em uma cabine-dupla com muito luxo e espaço para seis ocupantes, bancos especiais, carpete, som, rodas esportivas, pneus mais largos, pintura especial com faixas decorativas e outros acessórios para se ter um veículo com muito luxo.
Havia também algumas opções de peruas, ou SUVs como conhecemos hoje, sempre partindo da picape cabine-simples Chevrolet D-20 ou Ford F-1000.
Haja chapa de aço, maçarico e fibra de vidro… Só quem viveu esta época vai se lembrar das coisas que faziam. Algumas realmente enchiam os olhos e outras davam vontade de sair de perto por seu desenho duvidoso.
O renomado desenhista Anísio Campos foi um dos desenhistas que mais contribuiu para este segmento de veículos, com muitas criações com sua assinatura.
Nesta época, se uma pessoa fosse bem-sucedida, certamente teria uma picape transformada para suas viagens de finais de semana em família ou até para seu dia a dia.
Entre as empresas criadas na década de 1980 que participaram ativamente deste segmento de veículos destacou-se uma do Grupo Brasinca, a Brasinca Veículos Especiais (BVE). A BVE nasceu em meados de 1985 com a missão de montar veículos especiais conforme a necessidade do cliente, ou seja, veículos de serviço focados em segmentos específicos definidos por cada consumidor. Este tipo de veículo nada mais é do que veículos com configurações e equipamentos especiais como, por exemplo, os carros de concessionárias de rodovias, veículos de empresas de energia elétrica, saneamento básico, ambulâncias, etc. Um exemplo de empresa voltada a este segmento hoje é a Rontam.
Após criada a empresa no papel, a BVE mudou totalmente seu plano de negócios e decidiu direcionar a empresa para o segmento de veículos de luxo, mais precisamente o constituído de picapes.
Neste momento a engenharia da Brasinca havia iniciado o projeto do Bonanza e do novo Veraneio que seria lançado em 1989.
A engenharia da Brasinca, já tendo as informações do chassi da picape Chevrolet A-20/C-20 cabine simples caçamba curta (115”/2.921 mm entre eixos) e o da picape Chevrolet A-20/C-20 cabine dupla (127”/3.226 mm entre eixos), iniciou o projeto dos primeiros veículos da BVE, que foram o Passo Fino e Manga Larga.
Diferente das outras empresas que transformavam as picapes D-20 cabine-simples toda montada em cabine-dupla ou algumas empresas que conseguiam comprar um kit da picape Ford F-1000 parcialmente montada, a BVE conseguiu um contrato com a GM de fornecimento de kits compostos de chassi completo das picapes Chevrolet A-20/C-20 cabine-simples de caçamba curta (115”/2.921 mm entre eixos) e A-20/C-20 cabine dupla (127”/3.226 mm entre eixos), e mais as peças comuns às picapes Chevrolet e o Passo Fino ou o Manga Larga, ou seja painel frontal, para-lamas dianteiros, capô, parede fogo, assoalho dianteiro, teto cabine-simples, abertura da porta lateral e porta lateral dianteira, enquanto o restante das peças era estampado pela Brasinca por um processo de ferramentas de baixa produção.
A parte traseira do Passo Fino e do Manga Larga consistia de uma capota de compósito de fibra de vidro com estrutura interna tubular. O “pulo do gato” foi que tanto o Passo Fino quanto o Manga Larga tinham a mesma capota, mesmo vidro lateral traseiro, mesma tampa traseira superior e inferior, e mesmo vidro traseiro.
Um grande diferenciador dos veículos da BVE em relação às picapes e demais peruas transformadas era que seus veículos não possuíam nenhum recorte com maçarico ou modificação grosseira em sua montagem. Todas as peças eram estampadas e montadas na linha de produção com solda a ponto e pintadas na linha de pintura. Já a capota traseira de compósito de fibra de vidro era fixada por parafusos e placas de ancoragem na estrutura da carroceria e havia uma guarnição muito robusta entre a carroceria de chapa e a capota de plástico montando cada região sem espaço para impedir penetração de água.
No caso do Passo fino, como usou de base o chassi da cabine-simples 115” entre eixos e o Passo fino tinha 102” entre eixos, a BVE encurtava o chassi com uma emenda na longarina soldada na diagonal e acrescentando um reforço interno na longarina fixando-o com parafusos, dando total rigidez ao chassi. Deve ser observado que neste momento a GM ainda não tinha disponível para venda o chassi do Bonanza, também de 102” entre eixos.
Já o Manga Larga era montado sobre o chassi da cabine-dupla 4 portas sem modificação no chassi de 127” entre eixos.
O contrato de compra dos kits firmado entre a Brasinca e a GM previa que quando o Bonanza e o novo Veraneio entrassem em produção cessaria o fornecimento dos kits pela GM. Isso significava que a produção dos Brasinca Passo fino e do Manga Larga teria que ser encerrada quando os Chevrolet Bonanza e novo Veraneio começassem a ser produzidos.
Em 1986 foram lançados o Passo Fino e Manga Larga. Tinham ótimo acabamento, muito espaço interno e vários opcionais interessantes e exclusivos como refrigerador, videocassete, televisor, bancos de couro Recaro, e outros.
O sucesso destes veículos foi imediato e logo a BVE se firmou neste segmento de veículos.
Um diferenciador de desenho do Passo Fino e do Manga Larga era os vidros laterais traseiros envolventes que juntavam com o teto. Parecia uma coincidência de desenho muito feliz, mas na verdade era um detalhe para homenagear o Brasinca 4200GT de 1964 que tinha sua porta estendendo-se até o teto para facilitar o acesso ao interior do carro.
Ambos só tinham um problema que poderia desagradar alguns possíveis compradores: só eram oferecidos na versão a álcool ou a gasolina porque não eram considerados veículos transformados e sim veículos de produção, e caiam na categoria de carros de passageiros e não de carga. A versão a diesel não podia ser oferecida porque naquela época apenas picapes acima de 1.000 kg de carga útil ou com 4×4 com reduzida poderiam ter motor Diesel, ditado por uma portaria do então Conselho Nacional do Petróleo. A norma se aplicava também para peruas ou SUVs que tivessem carga útil de 1.000 kg.
Sendo assim, os veículos da BVE eram oferecidos apenas com o motor Chevrolet 6-cilindros de 4.100 cm³, o mesmo do Opala.
A inclusão de caminhonetas de uso misto acima de 1.000 kg de carga útil nos veículos que poderiam ter motor Diesel só foi permitida a partir de 1990. Com isso apenas os utilitários Bonanza e Veraneio, originais Chevrolet, passaram a ter essa opção.
Uma curiosidade pitoresca após o lançamento do Passo Fino e do Manga Larga é que entre nós na engenharia da Brasinca ficávamos de olho no mercado, principalmente no lançamento de picapes e peruas fora de série que seriam concorrentes dos veículos da BVE.
Uma perua que chamou a atenção na época foi a Engerauto Scorpion, criada por Anísio Campos. Nós da Brasinca observamos as cores da Engerauto Scorpion e lembramos de um quadro do programa do Chico Anísio onde o personagem se chamava Bento Carneiro, e aproveitamos a aparência do personagem para colocar o maldoso apelido de “Bento Carneiro”nessa perua.
Este fato virou uma brincadeira entre nós da engenharia da Brasinca, mas na verdade havia no mercado muitas opções de picapes transformadas e poucas opções de perua, e a Engerauto Scorpion poderia ter um veículo de concorrência direta com o Passo Fino e Manga Larga.
Brincadeiras à parte, o Passo Fino e Manga Larga foram fabricados até 1989, ano em que foi interrompida sua produção com o lançamento do Bonanza e do novo Veraneio pela GM.
Mas a BVE não se deu por vencida. Ainda durante a produção do Passo Fino e do Manga Larga a Brasinca firmou outro contrato com a GM, o de fornecimento de um kit composto pelo chassi da cabine simples caçamba curta de 115” entre-eixos para a produção de um novo veículo pela BVE, o Andaluz.
O Andaluz era uma picape cabine-dupla de duas portas que a GM entendeu que não brigaria diretamente com a picape cabine-dupla Chevrolet 4-portas.
O veículo possuía o mesmo e primoroso nível de acabamento do Passo Fino e do Manga Larga, mesmo detalhe do vidro lateral traseiro envolvente com o teto, rodas especiais e demais acabamento no padrão BVE.
O Andaluz saía com motor a álcool ou o gasolina, e como opcional havia o motor Diesel, a mesma motorização das picapes Chevrolet Série 20.
Entre os detalhes de design do Andaluz, um compartimento de bagagem atrás do banco traseiro, um local onde se poderiam colocar várias bolsas de mão e malas protegidas dentro da cabine. O acesso era pela cabine rebatendo o banco traseiro.
Um acessório inédito no Andaluz era um controlador automático de velocidade, ou seja, mesmo com o motor a carburador (lembrando que não se tratava de motor a injeção). O sistema da Albarus, mecânico, também possuía sensores elétricos para fazer o veículo trafegar em velocidade constante.
Havia um solenoide ligado ao vácuo do motor, um sensor no cardã para ler as suas voltas e mais alguns sensores espalhados no carro. Havia também uma central elétrica lendo os sensores e um sensor no pedal do freio e embreagem para que quando um dos pedais fosse acionado o sistema desligava voltando o comando de aceleração para o motorista.
Um detalhe curioso deste sistema mecânico era que após acionado quando o veículo iniciava uma subida e precisava de mais potência do motor, se observava o pedal do acelerador descer. e quando o veículo iniciava uma descida o pedal subia aliviando a potência.
Foi introduzida na coluna de direção do veículo mais uma alavanca contendo os comandos para esse controlador.
Este sistema foi oferecido em catálogo de vendas do Andaluz, eu dirigi alguns veículos na Brasinca com este sistema, mas nunca o encontrei em algum Andaluz nos encontros de carros antigos ou em veículos à venda pela internet.
Na época do Andaluz a Brasinca também criou outro veículo, o Marchador. Tratava-se de um veículo com cabine estendida todo de chapa de aço que usava o chassi da D-20 com 115” de entre eixos.
Esse veículo resolvia o problema de uma cabine simples contando com mais espaço interno para os ocupantes, espaço interno para bagagens e outros objetos que se desejava deixar dentro da cabine. Teve uma vende extremamente curta, com pouquíssimas unidades vendidas.
Talvez você esteja se perguntando por que todos os veículos da BVE tinham em seus nomes cavalos de raça? A resposta é simples: a família Moura, dona da Brasinca, possuía um haras no interior de São Paulo onde criavam cavalos de raça, daí a inspiração para o nome de seus veículos.
Outro veículo de muito sucesso feito pela BVE em parceria com a GM foi a ambulância tendo como base o novo Veraneio. Após o seu lançamento em 1989, ela era enviada para a BVE sem acabamento interno e na cor branca, e a BVE montava todos os equipamentos de uma ambulância como maca, suporte para a garrafa de oxigênio, armário, trilho da maca e demais equipamentos.
Um diferenciador desta ambulância é que havia um painel de compósito de fibra de vidro que forrava o assoalho no compartimento da ambulância e subia até à linha dos vidros. Ele era dividido na parte central e também foram moldados nestas peças três bancos para acompanhante.
Outra solução de engenharia foi o local do estepe, macaco e chave de roda, componentes problemáticos em uma ambulância e que devem ficar longe do compartimento do paciente.
A solução encontrada para estes objetos foi colocá-los logo atrás da porta lateral dianteira lado esquerdo, ou seja, ao abrir essa porta tinha-se acesso ao estepe, macaco e chave de roda isolados do compartimento do paciente por um painel divisor de compósito de fibra de vidro.
Na BVE também eram instalados a sirene e outras luzes da ambulância, que saía da BVE direto para as concessionárias e hospitais. Este veículo era comercializado pela GM.
A ambulância Veraneio foi o único produto que a BVE produziu conforme seu objetivo inicial, o de produzir veículos de serviço conforme especificações e necessidades do cliente.
Após 1989 a BVE colocou em seu catálogo um novo produto, mas que eu pessoalmente nunca observei fora da BVE. Tratava-se de uma Veraneio normal de produção com acessórios da BVE no mesmo padrão do Andaluz, ou seja, bancos em couro Recaro, carpete de melhor qualidade, rodas especiais e para-choques envolventes de compósito de fibra de vidro. Este veículo voltou a se chamar Manga Larga.
Entrando os anos 90, na era Collor, com a abertura das importações de veículos em 09/05/1990, no dia 28/07 seguinte desembarcou no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, o primeiro carro importado, um Mercedes 300 E 1990.
A partir daí os veículos fora de série incluindo as picapes transformadas e veículos da BVE perderam o fôlego em relação aos veículos importados.
A BVE produziu o Andaluz, Marchador e o Manga Larga (Veraneio GM com acessórios da BVE) até 1994 e depois disso encerrou suas atividades. As demais transformadoras na metade da década de 90 seguiram pelo mesmo caminho. Isso também se observou com os carros esportivos fora de série.
Uma questão é certa, não podemos nos esquecer que uma picape transformada e até os veículos da BVE eram veículos fabricados ou montados a partir de picapes para carga útil de 1 tonelada que foi transformada em cabine dupla ou perua de luxo. A configuração mecânica não mudava, apenas recebia uma cabine maior e mais luxuosa. Suspensão, motor, embreagem e freios ainda eram de uma picape aquela carga útil. Tudo isso sem contar com ABS e controle de tração que não eram equipamentos oferecidos em nenhum veículo no Brasil nesta época.
Com a reabertura das importações começaram a desembarcar por aqui a Mitsubishi Pajero e Nissan Pathfinder, veículos projetados para passageiros e off-road, motor Diesel, turbo, freio a disco nas quatro rodas, suspensão calibrada para passageiros, muito mais confortáveis e com dimensões mais proporcionais e preços parecidos com a das picapes transformadas.
Não houve como o proprietário de uma picape dessas resistir a toda esta oferta, e a migração para um carro importado foi quase imediata.
Além das importações mexerem com as picapes transformadas, também começaram a chegar aqui sedãs como Alfa Romeo 164, BMW 325i, Mercedes-Benz 320 E, Audi 80, e entre os esportivos o Chevrolet Calibra, Mitsubishi Eclipse e alguns Honda NSX. Estes carros acertaram em cheio os veículos fora de série no Brasil que era a opção até então para quem desejava um carro diferente como Puma, Miura, MP Lafer e dezenas de outras marcas de veículos fora de série que não resistiram à chegada dos carros importados.
O Collor chamava nossos carros de “carroças”. Certo ou errado, tanto os veículos fora de série quanto os veículos de fabricantes com sede fora do Brasil possuíam a mesma tecnologia e foram colocados no mesmo patamar de “carroças”.
Olhando os carros de hoje e lembrando que já se passaram mais de 25 anos desde o reinício das importações e término das picapes transformadas e dos veículos fora de série, não sei dizer se hoje temos carros modernos, compactos com direito a conectividade, ABS e airbag, ou se temos “carrocinhas” enfeitadas, cheias de fios, menos confiáveis e extremamente caras.
Para nós que vimos os anos 80 com tantas opções de carros de série, carros fora de série e picapes transformadas, muitas vezes dá uma saudade danada de uma “carroça”.
Uma questão é certa: as ruas eram mais coloridas e com muito mais opções de veículos para todos os bolsos. Desde Fusca, Chevette e Fiat 147, passando pelos veículos fora de série e picapes transformadas e tendo os sedãs de luxo como o Landau e Alfa Romeo Ti4.
Edson Stanquini
São Paulo – SP
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