O Projeto Tupi, que mais tarde se transformou no Fox, foi o projeto mais importante de que eu participei. Isso porque foi um projeto que nasceu numa happy hour em um dos restaurantes vizinhos da fábrica. Criamos o conceito, desenvolvemos o carro de fio a pavio, a ainda por cima o carro se tornou o primeiro da VWB exportado para a Alemanha.
LV
Eu e o Gérson Barone discutimos como poderia ser um carro, com características inovadoras, ideal para os grandes centros urbanos, com package flexível que pudesse acomodar com bom espaço quatro pessoas e que pudesse ser uma nova interpretação do Gol do futuro.
Já que teríamos um Polo, também na categoria A0, requintado e relativamente caro, queríamos criar um Gol mais curto e muito simples, mas com conceito diferenciado de tudo que existia até então.
Dessa conversa nasceu um desenho no guardanapo, onde todos estes conceitos estavam descritos, que levei comigo ao estúdio no dia seguinte.
Este carro não existia no nosso “cycle plan”, mas como chefe de estúdio eu tinha uma certa liberdade para gerar propostas, novas ideias de produtos para apresentar ao Board brasileiro.
Chamei, além do Gérson, alguns designers, e o Sr. Takeo, que era o responsável pela área de Package que pertence à estrutura do Design na VWB. Nas nossas anotações estavam os seguintes requisitos:
• Comprimento total menor que o Gol da época
• Ponto H mais alto +/- 80 mm, para que motorista e passageiros se sentassem em uma posição mais alta, como em uma van ou SUV, e desta maneira criar mais espaço na cabine. Eu chamo de posição de trabalho, melhor para quem dirige longos trechos.
• Assoalho traseiro plano para que quando se retirasse o banco traseiro você tivesse uma área perfeita para bagagem, sem acidentes na superfície do assoalho traseiro.
• Banco traseiro corrediço (150 mm) para criar mais ou menos espaço para os passageiros traseiros ou bagagem, assim como recolhimento e dobragem.
• Painel de instrumentos injetado em uma só peca
• Prateleira no lugar do porta-luvas e porta-luvas sob o banco do motorista
• Instrumentos combinados único com todas funções convencionais, porém de baixo custo
• Capô o mais curto possível e para-brisa o mais à frente e inclinado possível à procura de uma formato de cápsula ou monovolume
Batizamos o conceito de “Highroof”, que significa teto alto. Baseado nestas premissas, o grupo de package começou a desenvolver um possível de ser realizado em produção, e os designers começaram a desenhar algumas propostas de aparência possível dentro destes parâmetros.
A moral do estúdio cresceu imediatamente. A ideia de criar um carro do nada, a partir de um desenho em um guardanapo, era muito excitante. Além disso, o projeto era completamente ilegal.
Trabalhamos ao redor de um mês, mas precisávamos dar o próximo passo, e este seria decisivo, pois tínhamos que apresentar o material para meu chefe, o Sr. Hirtreiter, que era um sujeito imprevisível, mas também muito inteligente e sagaz.
Eu já havia percebido que ele adorava desafiar os alemães de Wolfsburg (Norte), já que ele vinha da Audi (Sul). Talvez este fosse o “approach” que tivéssemos que usar na apresentação do conceito.
Ele adorava uma boa encrenca, e nos tínhamos nas mãos um material que poderia ser altamente explosivo. Marquei uma apresentação secreta com ele. Na hora marcada ele apareceu no estúdio meio desconfiado, já que nossas caras não conseguiam esconder que estávamos fazendo “arte”, como meninos levados aprontando estripulias.
Aos poucos, eu fui descrevendo nossa ideia, começando com a explicação do package exótico e totalmente estranho para um Volkswagen. Depois descrevi as vantagens do ponto de vista de marketing, como uma coisa completamente nova no mercado e com um grande potencial de agradar o público brasileiro.
E finalmente os desenhos que mostravam a possível aparência que o conceito poderia conseguir, que, aliás, não tinha nada a ver com o carro que finalmente foi lançado no mercado brasileiro.
Quando eu terminei, ele ficou muitos minutos em silêncio total, apenas parado, pensando e apreciando os desenhos. Neste exato momento percebi a grande enrascada em que eu o estava metendo. Percebi que ele realmente gostou do conceito, pois se não fosse assim ele teria de cara descartado a ideia.
Mas como todo homem inteligente e consciente do processo de aprovação de um novo veículo, aparecer na Alemanha com uma ideia dessas, sem mais nem menos, seria suicídio.
Nos mal e mal respirávamos, pois não tínhamos a menor ideia do que ele faria no próximo segundo, e aquele silêncio sem fim não ajudava em nada. Então ele deu suas direções.
Pediu para envolvermos algumas poucas pessoas, do “product planning”, Engenharia e
Marketing para participar do estudo e pediu sigilo absoluto para todos os demais.
A ideia era montar um cenário, não só sobre o conceito de design, mas também com boa base de viabilidade técnica, custo e uma possível análise de mercado. Ele nos deu um mês para prepararmos este material da melhor maneira possível, pois ele iria apresentar a proposta ao Dr. Herbert Demel, o presidente da Volkswagen do Brasil naquela época.
Convoquei a reunião com os homens-chave das outras áreas, expliquei o problema e
começamos a trabalhar.
A Engenharia tinha basicamente que detectar o conteúdo do programa, quantas peças novas, que no caso eram muitas, um carro praticamente todo novo, mas usando peças básicas e essenciais de plataformas existentes em produção no Brasil, e calcular aproximadamente quantos milhões precisaríamos gastar, baseados na experiência que já tínhamos adquirido na família Gol.
Para o Marketing era criar uma situação hipotética de como esse carro se encaixaria na paleta da VW do Brasil e no mercado brasileiro. O problema é que como não existia referência para um tipo de conceito como este (alguns o entendiam como microvan), Marketing não sabia como se posicionar, pois Marketing só é capaz de analisar pelo que já existe, mas não é capaz de prever o futuro.
Em minha opinião, somente a área de Design pode prever o futuro, pois esta é a nossa
especialidade. Nós é que acompanhamos e criamos os “concept cars”, e mais que isso, imaginamos muito além do que a própria tecnologia pode nos oferecer.
Mas no caso do Tupi queríamos algo com nossa marca, um produto adequado, acessível, portanto, tinha que ser simples. Assim, no Color & Trim inovamos sem ser mais caros.
Criamos texturas baseadas na natureza, usando seções de folhas de bromélias como inspiração. Criar uma textura nova e bastante complicado, principalmente na VW, que praticamente só usava texturas de pele. Usar textura de plantas era um pouco demais para eles.
Os padrões de tecidos foram inspirados em florais brasileiros. Para cada tecido aprovado os fornecedores desenvolvem dezenas de padrões e amostras produzidas artesanalmente, mas que, porém, têm que apresentar características de resistência para produção em alta escala.
Significa que você tem que paralisar uma grande máquina de tecelagem, aplicar uma nova programação, carregar os fios, nas cores escolhidas e tecer algumas dezenas de metros de amostra. Depois, começar tudo novamente, com uma nova programação, etc, etc. Das dezenas de amostras apenas alguns cinco ou seis novos tecidos chegarão aos novos carros de produção.
O Fox, por ser um conceito original em termos de formato, demandaria um projeto completo, incluindo todo o “pacote” de desenvolvimento, testes e certificações. Dezenas de protótipos funcionais para os mais variados testes, incluindo crash, aerodinâmica, funcionais de peças móveis e estruturais para o corpo da carroceria.
O ponto H mais alto traz um comportamento do carro completamente diverso do carro convencional. Principalmente a estabilidade se torna um ponto crítico (problema que foi resolvido e comprovado nas pistas de alto padrão da VWAG).
Mas em contrapartida, oferece um visão privilegiada, uma “atitude” forte perante os outros carros no trânsito além de uma “posição de trabalho” muito boa, principalmente em longos períodos de pilotagem.
O acesso e saída do veículo também são privilegiados, pois o banco está “mais perto da bunda”, facilitando a “sentada” e o sair do banco.
Carros fantásticos como os Lamborghinis são quase impossíveis de se sair e não são recomendados para pessoas com problemas nas costas.
Para conseguir esta nova proporção, precisávamos “jogar” o para-brisa mais à frente e inclinar ao máximo a coluna A, para conseguir um perfil dinâmico e moderno, o que demanda uma nova caixa de ar que invade o compartimento do motor, colidindo com a cabeça de fixação das colunas de suspensão dianteira.
Os limpadores de para-brisa, devido à grande inclinação e área do vidro, necessitam de uma geometria de trabalho muito complexa, pois pela legislação deve-se limpar uma porcentagem determinada da superfície do vidro.
Pedais, coluna de direção e alavancas de câmbio e freio têm que ser reposicionadas conforme a nova posição do manequim.
Como os bancos são mais altos em relação ao assoalho, toda a base, que inclui os trilhos, tiveram que ser reprojetados, além das espumas de assento, que devido à nova posição podem influir negativamente na circulação das pernas.
O banco traseiro era inteiramente novo, com movimentação longitudinal e três opções de recolhimento. Todos comandos internos têm que ser posicionados observando-se a posição mais alta.
Enfim, um projeto complexo e desafiador.
Pois em um mês tínhamos um material bastante representativo, que além da parte técnica, já indicava direções de custo, e posicionamento de Marketing, o suficiente para apresentar o conceito para o Dr. Demel.
A reunião foi marcada e ele, como sempre, compareceu no horário marcado. O Sr. Hirtreiter apresentou o material para o Dr. Demel, que escutou tudo em silêncio. Os olhos azuis do austríaco brilhavam cada vez mais enquanto o meu chefe explicava a ideia.
Ele gostou da proposta e especialmente da nossa criatividade e arrojo, mas declarou que sem o apoio de um dos grandes chefes na Alemanha não íamos conseguir vencer esta batalha.
Foi aí que mencionei nosso bom relacionamento com o Warkuss, e que ele poderia ajudar. O Hirtreiter ficou encarregado de fazer o contato e assim foi. Antes de sair, o Demel, com seu sorriso enigmático, declarou: “Vamos roubar este cavalo dos alemães!”
E saiu com os olhos azuis faiscando de felicidade.
Depois que todos saíram do estúdio, dávamos pulos de alegria, e de lá fomos tomar um enorme porre, para lavar todo stress e aliviar o cansaço profundo de semanas de trabalho sem descanso.
Devo admitir que mesmo que não tivéssemos conseguido ir em frente, só o fato desses dois técnicos europeus de primeira linha terem apreciado nosso trabalho já seria elogio suficiente.
Mas este era só o começo. Nos próximos quatro anos iríamos viver uma aventura que não poderíamos ter imaginado nem no mais louco dos sonhos.
LV